OPAN

A escola que o povo Katukina quer

Educação na TI Rio Biá precisa atender diretrizes dos indígenas.

Educação na TI Rio Biá precisa atender diretrizes dos indígenas.

Por: Dafne Spolti/OPAN*

Jutaí (AM) – Em 2002, o povo Katukina recebeu, pela primeira vez, uma escola indígena na TI Rio Biá, que fica a cerca de três dias da cidade de Jutaí, no Médio Solimões. Depois de 14 anos, apesar de ganharem mais escolas, pouco mudou no ensino dos Katukina. Como frequentemente ocorre no Brasil, a educação escolar no Rio Biá vive um contexto em que o Estado parece ter renunciado ao seu papel. Mas este ano a Secretaria Municipal de Educação de Jutaí (Semed) está disposta a dirigir esforços para mudar essa realidade. Os desafios são imensos. As necessidades das aldeias Boca do Biá, Gato, Janela e Sororoca, em que há escolas, são tantas que podem ser comparadas às das aldeias Bacuri, Santa Cruz e Terra Alta (Surucucu), as mais distantes e desassistidas, onde sequer há professores ou salas de aula. Muitos são os problemas estruturais, mas o que falta mesmo é construir e colocar em prática uma política de educação que atenda às necessidades do povo Katukina.

“A gente quer professor Katukina pra falar de cultura. Nossa cultura tem muita coisa, não pode deixar nada. Se esquecer, patyin [criança] não vai saber”, disse Kododon Katukina, tuxaua da aldeia Gato. O que ele aponta não é novidade. O povo Katukina já definiu diretrizes como essa em diversos momentos, ao longo de dez anos. Em 2006, primeira vez que discutiram sobre as suas escolas, estabeleceram alguns caminhos para a educação, deixando claro que eles próprios queriam assumir as aulas após momento transitório de formação de professores e que a primeira língua trabalhada seria o seu idioma Katukina.

Kododon Katukina (à direita). Foto: Dafne Spolti/OPAN.

Na cartilha Tukuna Nowa Koni”, de 2009, são apresentadas orientações e metodologias para a alfabetização na língua dos Katukina. No plano de gestão territorial, publicado em 2011, os indígenas disseram que querem falar de suas tradições nas aulas, reafirmaram que a alfabetização deve ocorrer primeiro no idioma tukuna e que, na sequência, viria o ensino de português e matemática. Retomar o que já foi feito durante esses anos poderia ser um passo para começar o Projeto Político Pedagógico (PPP), uma das maiores urgências, conforme explicou Genoveva Amorim, membro da OPAN que apoiou, com a instituição, os momentos-chave da educação Katukina, como a construção da grafia e a elaboração de publicações relativas ao povo. Ela acrescentou que, além do PPP, é preciso garantir a formação de professores Katukina e a produção de materiais didáticos específicos para eles.

Katukina fazendo wankirakon – aldeia Terra Alta. Foto: Rodrigo Tawada/OPAN.

Até hoje as aulas na TI Rio Biá são ministradas quase exclusivamente por professores de fora e este é um dos principais motivos de frustração para a educação escolar Katukina. A problemática foi descrita ainda em 2006. “O nível de alfabetização permanece quase 0%. Provavelmente a principal causa é o fato de as aulas serem dadas em português, por professores que não falam Katukina”, apontava a equipe indigenista da OPAN dez anos atrás, sem imaginar que a realidade iria continuar por mais de uma década. Naquela época constatou-se que, dos 80 alunos da aldeia Boca do Biá, uma das mais populosas da TI, apenas quatro eram alfabetizados – número que se mantém até hoje, como revelou o tuxaua da comunidade, Aiobi Katukina, reforçando novamente a importância da comunicação na sala de aula.

Aiobi Katukina (segundo, da esquerda para a direita). Foto: Rodrigo Tawada/OPAN.

Atualmente, apenas os professores Carlos Filho, que é do povo Katukina, e Mauricioney Curintima, indígena Kokama, possuem um bom diálogo com os alunos. “Nós, professores, estávamos precisando de uma oficina de capacitação para gente manter mais contato com os alunos, conversar mesmo com eles. Se o professor novo vem pra aldeia e não tem conhecimento da língua indígena, como é que ele vai escrever na língua indígena?”, questiona. Apesar de pautar a formação, Mauricioney e outros professores da TI Rio Biá, também defendem que o ideal é a contratação de pessoas do próprio povo. E Kododon, da aldeia Gato, aponta mais um motivo para isso: “queremos professor do povo Katukina pra dar aula porque gente de fora fica ruim, porque sai, vai embora”. Sua preocupação é fundamentada em experiências reais como da aldeia Bacuri, que teve aulas por um período curto de tempo já que o professor acabou desistindo do trabalho no local, uma das aldeias mais distantes da cidade.

Apontamentos como esse também foram feitos pelos Katukina na assembleia do Conselho dos Povos Indígenas de Jutaí (Copiju), realizada na TI Rio Biá, em novembro do ano passado – já com resultados. Na ocasião, falaram sobre suas escolas, reconhecendo-as como uma grande conquista, contou o coordenador de campo, Leonardo Pereira Kurikara, que participou da assembleia durante atividade do projeto “Arapaima: redes produtivas”, executado pela OPAN com recursos do Fundo Amazônia. Entre as questões tratadas na assembleia, Leonardo destacou a frequente evasão escolar, que acredita ocorrer por conta do distanciamento entre o formato das aulas e a realidade dos Katukina, seu dia a dia e sua cultura.

“É preciso brincar com o fato real, concreto e objetivo. A partir de um fato, surgem desenhos, aí vem a escrita de assuntos que interessam, arte e tudo o mais. Assim se estimula que as pessoas aprendam a escrever e se incentiva também a oralidade”, afirma Ivar Busatto, coordenador geral da OPAN, mostrando que isso tudo só é possível com o conhecimento e a convivência no cotidiano da aldeia.

A educação ideal

Da maneira que está, o povo Katukina não vem sendo atendido com o que preconizam os instrumentos legais sobre a educação indígena, como a Constituição Federal/1988, a Lei de Diretrizes e Bases/1996 (LDB), o Plano Nacional de Educação (PNE/2004) e o Plano Estadual de Educação do Amazonas/2015. Eles garantem esse formato da educação escolhido pelo próprio povo e que a alfabetização possa ser bilíngue e primeiro na língua materna, conforme decisão das comunidades. A indigenista Adriana Werneck Regina, membro da OPAN com importante atuação na área de educação escolar indígena, destacou que esses instrumentos, conquistados a partir de muita luta, também apontam a necessidade de contratação de funcionários públicos para trabalhar especificamente na educação escolar indígena, oferecendo assessoria pedagógica e administrativa e indo às aldeias – o que tem sido outra demanda dos povos indígenas. “As secretarias têm o dever de cumprir sua função minimamente. Os municípios recebem recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) e têm que dar conta disso, de pagar os professores e viabilizar um atendimento qualificado”, disse ela.

A partir do diagnóstico “Avaliação do PNE Indígena no contexto das escolas municipais indígenas do Mato Grosso” realizado em 2010 pela Fundação Nacional do Índio (Funai) e pela Fundação Ajuri, em que trabalhou como consultora, Adriana observa que os problemas são comuns a outras escolas do país e que talvez ainda não exista nenhum modelo ideal de educação no Brasil. Para a concepção de uma boa escola indígena, explica, é necessário ouvir mais as comunidades, oferecendo atendimento adequado às demandas locais, respeitando suas percepções políticas e pedagógicas.

Crianças da aldeia Sororoca: Foto: Dafne Spolti/OPAN.

A indigenista aponta também outras questões que prejudicam a educação escolar indígena, como o contexto de trabalho dos professores, muitas vezes contratados a partir de um sistema pouco transparente. “Não tem concurso e a estabilidade de sua condição como professor da comunidade local é oscilante de acordo com um jogo político, onde os interesses dos gestores públicos locais são forças atuantes”, disse. Além disso, apesar de os indígenas geralmente buscarem uma escola pensando em ter maiores possibilidades de defender seus territórios e a sua forma de vida, na prática, a proposta curricular não se orienta para isso no cotidiano escolar.

“Querem escolas porque existem pressões e ameaças em função do contato com a sociedade urbano-industrial, porque querem se defender. Querem uma escola por um propósito, que ensine também a dar troco, que sirva ao que cada um quer, de verdade. Isso é o ideal. E no fim vai ver e é uma aula sem política nenhuma. ‘Não é uva, é buriti’”, diz ironicamente, se referindo à transposição de elementos da educação escolar não indígena para a indígena em contraposição ao aprofundamento em uma construção e prática pedagógica específicas. Adriana reforçou que o ideal é que a educação escolar indígena, de fato, tenha autonomia.

Na TI Rio Biá, além da política pedagógica, a falta de materiais é um grande problema para a educação. “Não tem material para trabalhar com as crianças. Não tem lápis, não tem caderno”, conta o professor José Ribamar Vasques Carvalho, da Boca do Biá. De acordo com ele e com o professor Mauricioney, quando vão à Jutaí só conseguem um pouco de material, que não é suficiente para todos. Por isso tem sido necessário, muitas vezes, dividir um lápis ao meio para que possa ser utilizado por dois alunos. Na aldeia Sororoca, há um ano com escola, não há nem mesmo lousa ou giz. “A gente quer escola, caderno, cadeira, livro, lápis, borracha. Todo esse material Katukina quer”, disse Kododon Katukina, o tuxaua da aldeia Gato. Outra questão diariamente problemática é a da merenda escolar, que, quando vem, é muito pouca.

Escola da aldeia Gato (esquerda) e da Sororoca (direita). Fotos, respectivamente: Rodrigo Tawada e Dafne Spolti/OPAN.

Grandes passos

Os problemas históricos da educação da TI Rio Biá, foram apontados pelos Katukina durante a Assembleia do Conselho dos Povos Indígenas de Jutaí (Copiju), realizada em novembro do ano passado. A partir daquele momento, o Copiju acolheu as demandas e começou a dar encaminhamento a elas na Secretaria de Educação. De acordo com o vice-presidente do Copiju, Josimar Lopes de Oliveira, representante do Núcleo de Educação Escolar Indígena da Semed, isso já trouxe resultados. Este ano irão (tanto Copiju quanto Semed) focar em uma formação específica para professores Katukina e também convidarão potenciais professores da aldeia – a serem escolhidos pelo próprio povo Katukina – a participar de um curso de formação denominado Pirayawara, realizado pela Secretaria de Estado de Educação do Amazonas (Seduc-AM) em vários módulos.

Josimar, durante assembleia do Copiju. Foto: Dafne Spolti/OPAN.

O secretário de educação de Jutaí, Márcio Alexandre Gonçalves, se mostrou igualmente empenhado em sanar os problemas da educação dos Katukina. Explicou que os materiais escolares não foram bem distribuídos por problemas de organização interna e que este ano haverá controle sobre isso. A merenda escolar, contou ele, é algo difícil por conta da logística para a entrega, mais cara do que a própria merenda. Ele disse que não há recursos para transporte, mas que também irão providenciar melhorias nesse sentido em 2016.

Márcio Alexandre contou que pretendem contratar este ano um profissional da pedagogia para construir o PPP com os Katukina e com outros povos da região. Também afirmou que irão contratar um supervisor e um coordenador pedagógico para acompanhar a educação in loco, nas aldeias. Ele enfatizou, por fim, que há três anos na gestão municipal tentam, cada vez mais, se aproximar dos Katukina, ressaltando novamente as questões de logística e a falta de recursos para tal. “Se não conseguimos fazer mais, não foi por falta de vontade”, concluiu ele, mostrando-se comprometido com a educação dos Katukina.

*Esta reportagem foi realizada no âmbito do projeto “Arapaima: redes produtivas”, executado pela OPAN com recursos do Fundo Amazônia, para apoiar a consolidação de cadeias produtivas da sociobiodiversidade e o fortalecimento de organizações indígenas e extrativistas no Médio rio Solimões e no Médio Juruá.

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