OPAN

Direito roubado

Avaliação de indígenas e indigenistas sobre perda de direitos territoriais e regime de exceção do país.

Por: Dafne Spolti/OPAN

Cuiabá (MT) – O grave momento político vivido atualmente pelo Brasil vai muito além das malas de dinheiro, das doações de campanha, das relações promíscuas entre empresários, parlamentares, servidores públicos federais e o judiciário. A promoção e a garantia de direitos sociais e ambientais também estão em jogo, sobretudo aquilo que envolve as populações e os territórios mais vulneráveis em nosso país. Nesta reportagem, a palavra está com expoentes e referências do indigenismo brasileiro hoje em dia. Entre várias análises, eles apontam de que maneira o poder público tem funcionado como espaço de ascensão de interesses privados, reconhecem os avanços da mobilização indígena, defendem que os povos se organizem para impedir retrocessos como o desmonte da Fundação Nacional do Índio (Funai) e que avancem no rompimento com um Estado tutelar e na consolidação de seu protagonismo.

Acampamento Terra Livre 2017. Foto Mídia Ninja/Mobilização Nacional Indígena.

A celeridade do desmonte

Recapitulando os fatos do último ano para além da própria entrada do Michel Temer interinamente em maio e oficialmente na presidência a partir de agosto de 2016; e do ministro da Justiça, Osmar Serraglio (PMDB-RS), em fevereiro deste ano, que já assumiu sua função dizendo que “terra não enche barriga”, é preciso destacar as diversas ações realizadas e que se sozinhas já são desastrosas, em conjunto de fato parecem fechar o cerco contra os povos indígenas e consequentemente para quem os apoia.

Na Funai, houve nada menos que cinco trocas de presidente em um ano. João Pedro Gonçalves foi o primeiro. Na sequência, Artur Nobre Mendes, exonerado após manifestação da Funai em prol do respeito aos indígenas perante as Paralimpíadas realizadas no Rio de Janeiro. Em seu lugar entrou Agostinho do Nascimento Netto, um assessor desconhecido do Ministério da Justiça durante o mandato de Alexandre de Moraes, que agora está no Supremo Tribunal Federal (STF).

A penúltima troca foi por Antônio Fernandes Toninho Costa, pastor evangélico. Mas ele também foi demitido, no começo de maio, por não ter acatado pedidos de nomeação de assessores do Partido Social Cristão (PSC) – o mesmo de Jair Bolsonaro – para a Funai apesar da pressão que recebia de seus pares. Agora um general do Exército, Franklimberg Ribeiro de Freitas, que há tempos vem rondando o órgão indigenista assumindo recentemente a Diretoria de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável, chegou enfim ao topo da Funai, causando grande revolta nos povos indígenas e remontando à época em que os militares estavam à frente do órgão indigenista.

Neste período recente ocorreu na Funai um corte de 44% do orçamento, mais exonerações de dezenas de servidores e o fechamento de 51 coordenações técnicas locais (CTLs), entre elas, duas vinculadas à Coordenação Regional (CR) Alto e Médio Solimões, no município de Tabatinga (AM), responsável pelo atendimento a 85 mil indígenas. Também se criou no Ministério da Justiça um grupo de trabalho que tem o poder de relativizar, por meio da Portaria 80/2017, o trabalho feito pela Funai no processo de demarcação de terras. Além disso, os concursados no processo seletivo de 2016, que teve resultado publicado em janeiro deste ano, ainda não foram chamados e não têm nenhuma perspectiva de que ajudarão, através de seu trabalho, a garantir as mínimas condições para a plena execução da política indigenista no Brasil.

Indígenas se manifestando contra o fechamento das CTLs em frente ao Ministério Público Federal em Tabatinga (AM). Foto: CR Alto e Médio Solimões.

“A gente tinha essa garantia que vem acabando. Está acabando a autonomia da Funai”, diz Josimar Lopes de Oliveira, do povo Kokama, presidente do Conselho dos Povos Indígenas de Jutaí (Copiju) e que sente de perto a ausência da instituição em seu município, cuja CTL criada ainda em 2014 nunca chegou a funcionar. Agora, as consequências do fechamento das coordenações vinculadas à CR Alto e Médio Solimões diminuem a pouca atenção do Estado a quase nada.

O ex-presidente Antônio Fernandes Toninho Costa também fez uma avaliação sobre o sucateamento da Fundação, durante sua entrevista coletiva realizada à porta da Funai no dia da exoneração: “Eu entrei aqui diante de uma Funai fragilizada ao longo dos tempos, de uma Funai que foi esquecida pelo Estado brasileiro, não só por este governo, como governos anteriores e que deixaram a instituição numa situação caótica”.

Sucateamento mais que conveniente

Associando ao enfraquecimento da Funai outras propostas em prol de seus projetos de desenvolvimento, o grupo político que está no poder alça dia a dia cenários cada vez mais inclassificáveis. “Os indígenas são prioridade do governo, mas na contramão da política indigenista”, destacou Adriana Ramos, coordenadora do Programa de Política e Direito Socioambiental do Instituto Socioambiental (ISA). Ela chamou atenção para a tese do marco temporal, que vem sendo utilizada em decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), segundo a qual os indígenas só podem ter demarcadas terras que estivessem ocupando na data da promulgação da Constituição Federal, o que suprime o direito originário dos povos ao seu território, reconhecido na Carta Magna.

Continua em voga atualmente também a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215/2000, que teve o ministro da Justiça como relator e que pretende passar para o legislativo o poder de decidir sobre a demarcação de terras indígenas. Além disso, está em jogo um dos principais instrumentos no controle para exploração de recursos naturais: o rito do licenciamento ambiental. Há diversas tentativas de anulá-lo, utilizando-se especialmente do argumento de garanta à celeridade dos processos.

Está em plena discussão neste sentido o projeto de lei 3.279/2004 com substitutivo do deputado Mauro Pereira (PMDB-RS). Ele prevê a dispensa geral e irrestrita de licenciamento para atividades agrícolas, independente dos impactos provenientes de sua instalação e manutenção; retira dos critérios para a licença a característica do local de interesse para a atividade, de forma que não faz mais diferença estar ou não nos limites com terras indígenas e comunidades quilombolas.

A proposta prevê que diante da demora na emissão de pareceres de órgãos intervenientes – como é o caso da Funai, em se tratando de licenciamentos que impactam indígenas – o processo pode continuar livremente e até ser autorizado a funcionar, uma estratégia perfeita diante de uma Funai sucateada. Mesmo havendo o parecer, não necessariamente este precisaria ser considerado no processo. “Eles destruíram nos últimos 40 anos praticamente toda a biodiversidade do país e sobraram as áreas indígenas. Como ainda não estão contentes querem destruir o resto”, diz Egydio Schwade, um dos fundadores da OPAN e do Conselho Indigenista Missionário (CIMI).

Também as unidades de conservação não estão seguras. Por meio de medidas provisórias de Michel Temer, o equivalente a 80 mil quilômetros quadrados de áreas protegidas do Amazonas, Pará e Santa Catarina, correm risco de acabar. Uma contradição para um país que se comprometeu em 2016, na Conferência do Clima (COP-21) em Paris, a diminuir em 43% até 2030 emissões de gás do efeito estufa.

É necessário lembrar ainda que este ano o Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI), órgão consultivo que auxilia no monitoramento, elaboração e implementação de políticas públicas voltadas aos indígenas, não teve até agora sua primeira reunião do ano, como informou Sandro Luckmann, assessor indigenista do Conselho de Missão Entre Povos Indígenas (Comin), que é membro do CNPI. Observa-se que no último encontro do Conselho, em 2016, foi redigida uma nota de repúdio contra as ameaças da presente reestruturação da Funai. Luckmann destacou ainda a exoneração da secretária executiva do CNPI, Teresinha Gasparin Maglia.

Insegurança jurídica e aumento dos conflitos no campo

A cada momento desde a entrada de Temer no poder e da aproximação entre setores privados e o poder público, o que se intensificou com sua ascensão, aumenta o clima de insegurança dos que se opõem aos projetos desenvolvimentistas. Ativistas de direitos humanos, militantes diversos ou profissionais simplesmente exercendo seu trabalho viraram alvo dessa minoria que está no poder.

Já não bastasse o sucateamento da Funai, as exonerações de servidores e presidentes, as tentativas de acabar com a demarcação de terras e as propostas de flexibilização do licenciamento ambiental, o grupo político que ocupa majoritariamente o Congresso Nacional (e o governo) está mirando em indígenas, indigenistas, procuradores, antropólogos e servidores da Funai, numa Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que tem como relator o deputado federal Nilson Leitão (PSBD-MT), que há muito se coloca contra os indígenas pelo interesse de que suas terras sirvam ao agronegócio. Leitão também é quem apresentou o Projeto de Lei (PL) 6442/2016 para, entre outras coisas, que seja permitido remunerar trabalhadores rurais não necessariamente com salários, mas com casa e comida, de forma a legalizar algo muito semelhante ao trabalho escravo.

Presidem a CPI da Funai o deputado Alceu Moreira (PMDB-RS), que incitou a violência de fazendeiros contra os indígenas em uma reunião no município de Vicente Dutra (RS), em 2013, ao dizer “se fardem de guerreiros e não deixem um vigarista desse dar um passo na sua propriedade” e Luiz Carlos Heinze (PP-RS), que no mesmo evento declarou serem “índios, gays e lésbicas, tudo o que não presta na sociedade”.

“Me veio a sensação parecida de uma época de ditadura, principalmente quando saiu a lista de indiciados na CPI da Funai”, contou Rinaldo Arruda, que conhece muitos dos antropólogos ali indiciados pelo simples fato de estarem fazendo seu trabalho. “É uma perseguição do exercício da profissão. Não só dos antropólogos, mas dos procuradores, de quem faz a luta pela legalidade”, enfatizou.

Trabalho de demarcação da TI Deni (AM) – 2001. Foto: Arquivo/OPAN.

A CPI divide espaço e toma uma dimensão de insegurança ainda maior por conta de outras investidas brutais que vem sendo reproduzidas agora nos campos do cotidiano individual e coletivo, local e regional, em todas as esferas. O ataque ao povo Gamela no Maranhão e o massacre a agricultores familiares de Colniza, no extremo norte de Mato Grosso, estão ecoando nos pensamentos Brasil afora. “O suprassumo do governo Temer é a violência quanto aos índios, e também contra os agricultores”, destacou Egydio Schwade, ele mesmo vítima de uma outra forma de coação recente, quando foi expulso à força de uma audiência em que defendia moradores despejados da comunidade Terra Santa, em Presidente Figueiredo (AM).

A violência também estava instaurada no Acampamento Terra Livre, onde um enorme grupo de policiais foi para cima dos participantes com bombas de gás lacrimogênio, balas de borracha, helicópteros e cavalaria, após manifestações pacíficas. “Estão tirando a voz dos indígenas. A voz estava garantida, efetiva, e vem e se corta. Com isso se quer jogar comunidades para a invisibilidade”, avalia Sandro Luckmann, em relação à perseguição aos povos, aos indigenistas e ao cerco que o Estado vem promovendo junto à bancada ruralista – ou a bancada ruralista por meio do Estado.

Bombas de gás lacrimogêneo no Acampamento Terra Livre 2017. Foto: Giovanny Vera/OPAN.

Novos caminhos

Este momento de desmonte tem suscitado antigas discussões sobre o encaminhamento ideal para a política indigenista. Defender a Funai é necessário. E junto com ela, em atividade plena e contribuindo para que os povos indígenas digam o que querem e pautem suas próprias vidas, é preciso continuar pensando em outros rumos e melhorias. “Preparar indígenas para serem protagonistas, autônomos e defenderem seus direitos. Esse é o papel da Funai, de defender os direitos perante o Estado”, diz Mislene Mendes, do povo Tikuna, coordenadora da CR Alto e Médio Solimões.

Isso quer dizer que, como apontam algumas organizações, a Funai é parte do processo de construção para algo em que os povos tenham um espaço reconhecido e consolidado. Rinaldo Arruda avalia que a Funai é uma face de um Estado que não envolve em seu conceito de nação a imensa diversidade de povos que existem no país e que, portanto, ela não representa os indígenas. Ele destacou a importância dos indígenas do Brasil se articularem também com povos de outros países – o que marcadamente ocorreu no Acampamento Terra Livre –, contando sobre alguns Estados plurinacionais e com outra forma de reconhecimento às populações tradicionais e até as suas experiências de mundo. “Não pode pegar a ideia de desenvolvimento e colocar como universal”, disse.

Diante dessas críticas históricas, organizações indigenistas têm defendido que os povos indígenas possam se colocar de forma ainda mais organizada. “É passada a hora das comunidades indígenas serem atuantes nesse processo, a partir de suas visões, de suas dinâmicas”, defende Sandro Luckmann, do Comin. Também para Egydio Schwade é pela via dos movimentos que será possível ter sucesso. “Vejo que estamos num momento em que essa unidade dos anos 70 entre os indígenas e ONGs se devam unir fortemente e como no início, em que se organizavam em assembleias indígenas no estilo indígena e em que não se voltou tanto para Brasília para se perder no mar de lama”, disse.

Assembleia do Copiju com os povos Katukina, Kanamari e Kulina – TI Rio Biá, 2016. Foto: Dafne Spolti/OPAN.

Apesar de acreditar que não há conquistas pelo viés da política indigenista oficial e que também não será da Funai a solução para os povos indígenas, Schwade defende seu funcionamento para que exista controle em relação a interferências do poder empresarial – embora isso seja difícil neste exato contexto – e que com ela mais forte, com um quadro bem formado de servidores, pode haver muitos avanços. “Tem que estar por detrás das pessoas uma convicção de que a sabedoria repousa nos indígenas e por aí afora”, disse, defendendo que visão deve permear a mentalidade do corpo técnico da Funai.

Muitas possibilidades de modelo podem ser trazidas pelos povos nessa longa busca por seu protagonismo, afinal, são inúmeras as formas de se organizarem. Dentro da estrutura de democracia representativa, que nem mesmo aos não indígenas está bem neste formato, é inviável conseguir a não ser espaços muito pequenos. Se é o caso de ter um parlamento indígena, ou se seria outra a forma de participação, isso está ainda por vir.

Para o coordenador geral da OPAN, Ivar Busatto, é preciso haver uma discussão maior. “Não vai ter ninguém nesse país ou em qualquer lugar do mundo que dê a solução correta a isso dadas as diversidades, dados os interesses que estão em jogo em cada região e dadas as culturas e os processos históricos de cada um dos povos que estão ali. Se não houver a participação e engajamento dos próprios indígenas, em cada lugar vai precisar de ter pessoas do Estado que possam fazer o que nós já fizemos no início do indigenismo. Quer dizer: parar e tentar se despir de toda a carga ideológica e cultural que a gente tem, para tentar ouvir a perspectiva daqueles grupos e com ela construir as soluções”, concluiu.

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