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Água e soberania

Após debates no FAMA, movimentos tentam participar dos processos de decisão sobre uso da água em MT.

Por: Andreia Fanzeres

Cuiabá, MT – Tanto quanto o que foi e tem sido a luta pela terra, a luta pela água tem agregado cada vez mais. A água atravessa a superfície da terra e também suas profundezas, visita territórios e simplesmente flui em seu caminho incessante para o mar – mesmo quando tentam barrá-la. A água é bem comum de domínio público, portanto não está à venda. Ou não deveria estar.

Esta garantia está escrita no arcabouço legal brasileiro desde que foi publicada a Lei das Águas, em 1998, mas ela vem sendo paulatinamente desconstruída por interesses diversos. O loteamento dos rios, quando interrompidos por projetos hidrelétricos que inviabilizam outros usos; e a privatização da água por empresas multinacionais mobilizaram, em março, milhares de pessoas em Brasília durante o Fórum Alternativo Mundial da Água (FAMA). Mas poucas delas conseguiram ser ouvidas.

“Queremos ser protagonistas. Tomei um susto quando entrei aqui [no Centro de Convenções Ulysses Guimarães, onde acontecia o Fórum Mundial da Água]. Parece que não estou no Brasil. As vozes que precisam estar aqui não estão”, denuncia Marta Tipuici, do povo Manoki e representante da Rede Juruena Vivo. Para uma das principais lideranças do movimento de resistência contra a usina de Belo Monte, Antônia Melo, não há legitimidade entre os governantes para discutir a água com as empresas em nome dos brasileiros. “A água é nossa soberania, a nossa vida. Nenhuma gota a mais será destruída em nome de um desenvolvimento criminoso”, afirmou.

Marta Tipuici Manoki fala no Fórum Mundial da Água. Foto: Artema Lima/OPAN

A agropecuária, que é responsável por ¼ do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil, é também a atividade que consome mais de 70% das nossas águas. Sua contribuição ao desenvolvimento se expressa, entre outros aspectos, elevando o país à posição recordista mundial de violência no campo, de sétimo maior emissor de gases de efeito estufa do planeta e maior destruidor de florestas do mundo (só em 2017 foram perdidos 6.600 km2 na Amazônia).

De acordo com recente artigo de Carlos Rittl e Raoni Rajão publicado no jornal Valor Econômico, o Brasil tem 65 milhões de hectares ocupados pela agricultura e 230 milhões pela pecuária (33% do território nacional), sendo que o crescimento do gado na Amazônia segue três vezes maior do que a média do país. “Ao longo de 2017, em troca de votos no Congresso, a bancada ruralista pediu ao presidente Michel Temer – e recebeu – a legalização da grilagem em grandes áreas, o afrouxamento do conceito de trabalho escravo e a retirada dos direitos de populações indígenas que foram expulsas de suas terras antes da Constituição de 1988. E vem à carga total já neste início de 2018 para afrouxar o licenciamento ambiental, legalizar o agronegócio dentro de territórios indígenas e permitir a venda de grandes extensões de terras brasileiras ao capital estrangeiro”, elenca o artigo.

“Tudo isso…em nome de quê?”, indagou Sonia Guajajara, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). “Precisamos mudar o rumo. Chegamos aqui na resistência e devemos insistir na mudança na forma de consumo, no modelo de desenvolvimento, senão não vamos muito longe”, considera Sonia. “A luta pela demarcação é pela água que chega em Brasília, em São Paulo. E as pessoas insistem em acreditar que a água nasce na torneira. A água que nasce está dentro desses territórios que nós protegemos com a nossa própria vida”, lembra.

Lições de união 

Povos indígenas e comunidades tradicionais divulgam desafios regionais no FAMA. Foto: Catiuscia Custodio/OPAN

Quanto mais se flexibilizam as garantias protetivas ao meio ambiente e às populações, aumenta a incerteza quanto à viabilidade socioambiental dos empreendimentos – de agora e do futuro. Aí, o preço da inconsequência é pago por todos. Este tem sido o caso da criminosa operação das usinas de Santo Antônio e Jirau, no rio Madeira, que teve um conturbado processo de licenciamento ambiental entre 2006 e 2010. Naquela época, pareceres técnicos do Ibama foram rasgados por políticos que influenciaram a autorização para o funcionamento das usinas e, diante dos altíssimos riscos envolvidos na construção dessas hidrelétricas, o governo adotou a tática de contratar “consultores externos” até que algum atestasse aquilo que se desejava. Deu no que deu.

Em 2014 Porto Velho e região enfrentaram a maior enchente da história, as represas alagaram território boliviano e vêm provocando inúmeros conflitos locais e internacionais, confirmando todos os riscos apontados pelas inúmeras ações do Ministério Público e pela experiência dos comunitários. “Depois que as usinas saíram, perdemos apoios. Hoje nós fazemos trabalho de formiguinha, buscamos sensibilização para criação de um comitê de bacia”, explica Iremar Ferreira, do Instituto Madeira Vivo.

Para Iremar e tantos outros representantes que enfrentam os efeitos da irresponsabilidade na gestão das águas Brasil afora, ouvir a experiência de quase 20 anos do comitê de bacia do rio Macaé, no Rio de Janeiro, foi um alento, uma esperança. Nas palavras de Maria Inês Paes Ferreira, vice-presidente deste que é o segundo comitê mais antigo do país, é a sociedade civil que dá o tom dos trabalhos e isso é fruto de muita luta. “Tudo só está dando certo porque os grandes usuários sabem que, no caso de escassez, a prioridade é para o abastecimento humano. E sem a água do rio Macaé param as atividades petrolíferas”, explica. Segundo ela, o comitê pode elaborar resoluções que restringem uso da água para determinadas atividades. Tudo tem que estar de acordo com um plano de bacia. Como lembra João Gnadlinger, gestor de meio ambiente e água do Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (IRPAA), do rio São Francisco, “o comitê é o órgão soberano da bacia”.

Darlisson Apiaká fala sobre violações aos direitos indígenas decorrentes da implantação das usinas de Teles Pires e
São Manoel. Foto: Andreia Fanzeres/OPAN

Para José Aparecido Macedo, presidente do comitê de bacia do rio Cabaçal (MT), foi difícil montar o comitê. “As nascentes do rio Paraguai começaram a secar, e havia projeto de seis hidrelétricas. Busquei conhecimento, conheci pessoas, cada um de nós tinha que fazer alguma coisa”, relatou. É comum ouvir sobre o longo processo e a burocracia envolvida na constituição de um comitê de bacia, mas é preciso cuidado com tal discurso. “Esse papo de que os comitês de bacia não funcionam na Amazônia é balela. Os interesses são muitos, mas esta segue sendo uma ação fundamental”, disse Maria Inês para uma sala lotada na Universidade de Brasília (UnB) que sediou o encontro promovido pelo Fórum Mato-grossense de Meio Ambiente e Desenvolvimento (Formad), Rede Juruena Vivo e Fórum Teles Pires, durante o FAMA.

Em Cáceres, o comitê popular do rio Paraguai surgiu a partir da demanda de 8.500 pessoas que elencam num estalar de dedos as cinco principais ameaças ao Pantanal – hidrovia, hidrelétricas, esgoto/poluição, agrotóxicos/agronegócio e desmatamento. Mas, conforme explica Salomão Isidoro, isso não é tudo. “Quem hoje enxerga a água sem a espiritualidade – mesmo quem entende a água como um direito, mas sem a mística – precisa ir muito longe ainda”, considera.

Com duas usinas gigantescas em operação e a poucos metros das terras indígenas Kayabi e Munduruku, no rio Teles Pires, preferiram retalhar o comitê. “Criaram um comitê da margem esquerda do baixo Teles Pires, mas não tem plano de bacia. O que seria um espaço de governança não funciona”, conta João Andrade, do Instituto Centro de Vida (ICV). “O empreendedor dá as regras, apresenta os programas, faz várias ações, mas os resultados não são bons para a comunidade. Agora estão com a Força Nacional impedindo nosso acesso ao empreendimento. Nós representamos ameaça ao governo, temos que chegar na aldeia passando pelas barreiras como se fôssemos os inimigos do Estado. Dependemos do rio todos os dias”, denunciou Darlisson Apiaká (http://apib.info/2018/04/03/governo-usa-forca-nacional-para-manter-ilegalidades-na-construcao-de-hidreletricas-no-rio-teles-pires/).

Troca de experiências sobre comitês de bacia lota sala da UnB. Foto: Andreia Fanzeres/OPAN

Preocupados com as pressões políticas e as tentativas de descaracterizar a Lei das Águas (9423/1998), como é o caso do PL 495/2017 de autoria do senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), a troca de experiências em Brasília representou também uma reunião de forças. “A política de recursos hídricos é nova como é a democracia no Brasil. Não podemos recuar e deixar a democracia ser deteriorada, deixar de estar nesse espaço”, avalia Solange Ikeda, bióloga do Instituto Gaia e professora da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat). Em poucas e boas palavras, o fundador do Fórum Nacional da Sociedade Civil nos Comitês de Bacia Hidrográfica (Fonasc-CBH) resume: “Aonde houver espaço para incidência política, temos de estar e devemos ser competentes”, disse João Clímaco.

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