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Projeto que flexibiliza licenciamento ambiental em MT é aprovado às pressas, sem participação da sociedade, em plena pandemia

Projeto de lei complementar 17/2020 apresenta retrocesso em mudanças no licenciamento ambiental e pode prejudicar comunidades tradicionais.

Por Beatriz Drague Ramos/OPAN, Júlia de Freitas/ICV e Lívia Alcântara (Formad)

São Paulo (SP) – Foi aprovado nesta quarta-feira, 8 de julho, na Assembleia Legislativa de Mato Grosso o Projeto de Lei Complementar nº17/2020, de autoria do governador Mauro Mendes (DEM) com 13 votos a favor, 4 contra, 3 abstenções e 4 ausências. A proposta gerou polêmica desde o início da sua tramitação, pois em seu texto inicial autorizava o registro do Cadastro Ambiental Rural (CAR) de propriedades em sobreposição a terras indígenas não homologadas. Por grande pressão do movimento indígena e da sociedade civil, este conteúdo foi excluído. 

No entanto, de acordo com especialistas, a terceira versão do projeto aprovada apresenta gravíssimos problemas ao propor mudanças no licenciamento ambiental. Carolina Reis, advogada do Instituto Socioambiental (ISA), alerta: “é um projeto extremamente prejudicial num estado como Mato Grosso, que vem tendo uma escalada no desmatamento”.

Além disso, o projeto de lei complementar foi aprovado sem a devida participação social. A votação ocorreu sem que houvessem audiências públicas ou assembleias com participação da sociedade e sem um processo de consulta livre, prévia e informada dos povos indígenas, quilombolas, e povos e comunidades tradicionais que serão significativamente afetados pelas alterações legislativas. Tampouco foi discutido no Conselho Estadual de Meio Ambiente (Consema) de Mato Grosso, instância que tem o papel de assessorar a Secretaria de Meio Ambiente nos temas ambientais. 

O projeto não estava na pauta de votação da Assembleia Legislativa de Mato Grosso desta quarta-feira (08) e a votação não pôde ser acompanhada pela população por meio de transmissão nos canais digitais. 

Entenda os três grandes problemas que o Projeto Complementar de Lei 17/2020 gera se for sancionado pelo governador Mauro Mendes:

Remoção de vegetação em APPs sem validação do CAR

O Cadastro Ambiental Rural (CAR) é um registro dos imóveis rurais com a finalidade de integrar as informações ambientais e monitorar o desmatamento. Pelo caráter autodeclaratório da ferramenta instituída pelo Código Florestal, os proprietários rurais podem incorrer em erros, omissão ou falseamento de dados. O PLC 17 passa a permitir a remoção de vegetação em Áreas de Preservação Permanente (APP) de projetos considerados de “baixo” impacto ambiental, interesse social ou em casos de intervenção de utilidade pública, sem a confirmação dos dados do CAR. 

No entanto, “somente mediante a verificação do CAR é possível saber se o imóvel rural está de acordo com a legislação e que não está sobreposto a uma área da União ou de uma área grilada”, explica a advogada Carolina Reis, do Instituto Socioambiental (ISA). 

“Se o Estado não cumpre sua  obrigação de analisar e validar os dados declarados no CAR, verificando a veracidade das informações declaradas, e emite autorizações licenças ambientais sem essa conferência, incorre no risco de viabilizar a degradação ambiental, em violação à legislação”, ressalta a advogada Adriele Andrade Précoma, da Operação Amazônia Nativa (OPAN). A supressão vegetal em áreas de APP é apenas uma das quatro exceções de dispensa de validação do CAR para supressão de vegetação que o PLC 17 permite, colocando o Estado de Mato Grosso e seus agentes públicos sob o risco de autorizar atividades e empreendimentos com potencial de degradação do meio ambiente. 

O desmatamento ilegal da Amazônia mato-grossense tem aumentado nos últimos anos, de acordo com relatório técnico do Instituto Centro de Vida (ICV). Pelos dados relatados, entre agosto de 2018 e julho de 2019, 85% dos desmates mapeados pelo Instituto Nacional de Pesquisa Espacial (Inpe) no estado foram ilegais, no bioma Cerrado o número sobe para 88%. O estudo revela que as taxas de desmatamento seguem alarmantes e aponta para a necessidade de uma maior fiscalização por partes dos órgãos competentes, exatamente na contramão do que o PLC 17/20 propõe. 

Desmonte do licenciamento ambiental

O licenciamento ambiental é um instrumento da administração pública que permite o controle das atividades humanas que podem causar degradação do meio ambiente. É essencial, na análise dos impactos dos projetos de empreendimentos e obras de infraestrutura, bem como na avaliação de medidas para evitar danos ambientais. 

Atualmente, o licenciamento ambiental deve ocorrer, de acordo com o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), em três fases: Licença Prévia (LP), Licença de Instalação (LI) e Licença de Operação (LO). O PLC 17/20 aprovado altera esta estrutura, permitindo que a Secretaria de Estado do Meio Ambiente (SEMA) emita licenças que simplificam o processo de licenciamento ambiental, adotando as modalidades da Licença Ambiental Simplificada (LAS), que suprime fases importantes do licenciamento, e da Licença por Adesão e Compromisso (LAC), na qual o órgão ambiental apenas avalia os documentos providenciados pelo empreendedor sem verificação no local pelos órgãos fiscalizadores do Estado. 

Essa experiência já existe e foi trágica. Entre 2012 e 2018, na Bahia, o primeiro estado a prever essa modalidade de licença, identificou-se que 89% dos empreendimentos fiscalizados estavam irregulares. “A LAC é extremamente problemática pois, na prática, se trata de auto licença. Ela desconsidera importantes questões como a fragilidade do ecossistema e a importância de avaliar alternativas locacionais, incentiva fraude e limita totalmente o processo de participação popular no licenciamento”, nota a advogada Anna Maria Cárcamo, da International Rivers.

Julgados já apontam para a inconstitucionalidade dessas modalidades de licenças, por desrespeitar a norma geral federal, como na Ação Direta de Inconstitucionalidade do Amapá (ADI 5.475-AP). Em outros estados também estão sendo questionadas essas modalidades de licenças no STF, o que revela um questionamento nacional a essas alterações.

Além disso, está em tramitação no Congresso Nacional o projeto de Lei Geral do Licenciamento, que pode vir a tornar ilegal essas figuras de LAC e LAS, ou limitá-las. “Tudo isso gera uma profunda insegurança jurídica, ao tentar implantar no âmbito dos estados da federação normas que estão sendo questionadas no Judiciário e no Congresso Nacional”, ressalta Anna Cárcamo. 

O Licenciamento Ambiental é um dos instrumentos preventivos mais importantes no nosso ordenamento jurídico, e a sua fragilização pode trazer graves consequências para o meio ambiente e para a saúde humana. 

O PLC também dispensa a análise, por parte do órgão ambiental, dos estudos de impactos ambientais requeridos para a autorização e licença ambiental. Os estudos  são indispensáveis para dimensionar os impactos ao meio ambiente das atividades que requerem licenciamento ou autorização, de modo a evitar danos, reduzi-los ou compensá-los. Os estudos são apresentados pelo próprio interessado no empreendimento, e o órgão ambiental competente tem a obrigação de analisar esses estudos, verificando o cumprimento de todos os requisitos legais. Somente após essa verificação, pode prosseguir com a outra etapa da licença. 

“Autorizações sem as avaliações técnicas dos estudos ampliam os riscos de não haver o dimensionamento adequado dos impactos da obra ou da atividade, impossibilitando que danos sejam evitados”, explica Adriele Pŕecoma, da OPAN.

As especialistas também consideram grave a dispensa de renovação de licença ambiental e florestal para obras e atividades de infraestrutura, cujos impactos sejam restritos à fase de implantação dos empreendimentos. “Isso é muito complicado porque dificilmente obras de infraestrutura têm impactos que ficam restritos à fase de implantação. A maioria tem impactos contínuos e até irreversíveis, que às vezes se estendem para a fase de operação”, alerta Carolina Reis.

“Ao propor um desmonte do licenciamento, a desobrigação do Estado na análise dos estudos ambientais e da especificação de prazos das licenças ambientais, o governo de Mato Grosso extrapola sua competência constitucionalmente definida no artigo 24 da Constituição Federal, legislando em violação à Constituição Federal e às normas federais, com implicação de graves retrocessos na proteção ambiental garantida em nosso país”, assevera Adriele.  

Territórios quilombolas e comunidades tradicionais desprotegidas

O projeto ainda deixa sem amparo os quilombolas e outras comunidades tradicionais, pois permite licenças ambientais em seus territórios. 

Em Mato Grosso estima-se que existam 134 comunidades quilombolas. Segundo dados de janeiro de 2019 do Incra, embora 78 sejam certificadas pela Fundação Cultural Palmares, nenhuma destas possui o título de suas terras, em desrespeito ao artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição Federal que garante: “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.

Essas comunidades enfrentam um tortuoso processo para garantia de proteção de seus territórios, permeado por conflitos fundiários, violência e espoliação. Quando algum empreendimento é autorizado em seus  territórios,  viola diretamente seus direitos garantidos na Constituição.

“A forma como o licenciamento ambiental está já tem trazido vários impactos negativos dentro das comunidades quilombolas. Nós já sofremos com a introdução da soja, da mineração, do gasoduto que passou por dentro de áreas quilombolas. Temos tido vários impactos negativos com a pulverização de venenos (agrotóxicos) constantemente”, explica Laura Ferreira da Silva, quilombola da comunidade Mutuca, município de Nossa Senhora do Livramento, MT. 

Para Herman Oliveira, representante do Instituto Caracol no Conselho Estadual de Meio Ambiente (Consema/MT) e secretário executivo do Fórum Mato-grossense de Meio Ambiente e Desenvolvimento (Formad), o projeto de lei complementar “não faz nenhum sentido do ponto de vista ecológico e socioambiental, já que as normas não têm um efeito positivo para os pequenos agricultores, para os povos e comunidades tradicionais e para as unidades de conservação. Só faz sentido para o empreendedor, para este modelo de uso e ocupação do solo altamente impactante para os ecossistemas”. 

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