Mulheres Xavante superam adversidades e coletam mais de uma tonelada de sementes
Grupo de coletoras atua na TI Marãiwatsédé. Atividade fortalece tradição, promove reflorestamento e gera renda.
Helson França/OPAN
Em 2020, diante de um cenário pandêmico ainda repleto de incertezas, um coletivo de mulheres Xavante da Terra Indígena (TI) Marãiwatsédé se organizava para entender melhor como lidar com a mais nova ameaça que se apresentava em forma de vírus. A morte por covid-19 de uma de suas lideranças, Mônica Renhinhãi’õ, 25 dias antes de completar 100 anos, e de outros companheiros, reforçou a percepção de que a adoção de cuidados era necessária. Decidiram, então, que enfrentariam a situação por meio da continuidade da atividade que ajuda a manter o grupo unido: a coleta de sementes.
Dessa forma, também honrariam a memória de Mônica, que trabalhava diariamente e ainda se destacava como uma das melhores coletoras, apesar da idade quase centenária.
“Sabíamos que seria desafiador. Redobramos a atenção e intensificamos os esforços. Uma sempre ajudando a outra”, afirmou a cacica Carolina Rewaptu. Há seis anos ela lidera o grupo das Mulheres Xavante Coletoras de Semente – Pi’õ rómnha ma’ubumrõi’wa, na língua original do povo.
Munidas com álcool em gel e máscaras, materiais que foram doados, as mulheres das oito aldeias que compõem o território foram à mata.
O empenho do grupo foi recompensado e resultou numa coleta de 1.324 toneladas de sementes. Foram catalogadas 34 espécies, dentre elas o buriti, jatobá, caju, copaíba e pequi.
Do total, 294 kg foram destinados para o reflorestamento da TI, que teve 75% de sua vegetação nativa suprimida por áreas de pastagens, devido à presença de latifundiários.
Durante a Ditadura Militar, os Xavante foram expulsos de Marãiwatsédé. A retomada de seu local de origem demorou 53 anos, sendo efetivada em 2013, com a desintrusão dos invasores, sob determinação da Justiça Federal. Homologada pela Fundação Nacional do Índio (Funai), a área de 165 mil hectares, localizada na região Nordeste de Mato Grosso, abriga hoje 1.108 indígenas, conforme dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai).
O restante do material coletado no ano passado foi separado pelas mulheres em garrafas de plástico, com etiquetas que levavam o nome da respectiva coletora, aldeia e espécie da semente. Indigenistas da Operação Amazônia Nativa (OPAN) fizeram o traslado dos produtos da TI para a Casa de Sementes, onde, depois da pesagem, foram estocados.
As sementes começaram a ser comercializadas neste mês, com o auxílio de equipes da OPAN. Ao todo, a coleta rendeu R$ 30 mil. O valor gerado no negócio é revertido integralmente às coletoras, sendo dividido e servindo como um importante complemento da renda.
Fortalecimento de relações
Entre as mulheres Xavante, a coleta de sementes é um costume que é passado de geração em geração. A atividade, assim, envolve todo um contexto de partilha e troca de saberes, que propicia o fortalecimento da cultura tradicional e relações, além de um maior conhecimento do território e seus recursos. Em seu estágio inicial, o grupo contava com 18 anciãs. Atualmente, integram o coletivo 90 mulheres, de diferentes idades.
A busca pelas sementes geralmente é dividida por famílias. As incursões podem durar dias e quando isso ocorre as coletoras acampam na mata.
Todas as mulheres adultas do grupo, assim como o restante dos homens que vivem na TI Marãiwatsédé, já receberam a segunda dose da vacina contra a covid-19.
Em Mato Grosso, os Xavante foram o povo mais afetado pela pandemia. Dados do Comitê Nacional de Vida e Memória Indígena, vinculado à Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), contabilizam até o momento 79 óbitos.
Voz ativa
Formada em Ciências Sociais pela Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat), a cacica Carolina também é professora na aldeia. Em suas aulas, como também nos demais momentos de interação, procura estimular alunos e companheiras à reflexão sobre o papel da mulher no ambiente indígena e fora dele.
“Nós (as mulheres) temos participado mais de espaços antes ocupados apenas por homens, como reuniões para a tomada de decisões. Porém, ainda há muito o que avançar”, diz.
Carolina tem quatro filhos e uma filha. “É preciso incentivar os mais jovens desde cedo, sobretudo as meninas, à busca por conhecimento, para que tenham voz ativa”, observou.
Um dos filhos da cacica, Cosme Rité, é mestre em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília (UnB). Sua dissertação, defendida em 2017, abordou sobre a reocupação de Marãiwatsédé por seu povo.
“Os fazendeiros que ocuparam o nosso território pensam em um tipo de produção, destruíram os rios, as matas. (…) Reocupamos a terra, mas não havia mais nada do que existia antes. Agora, iremos cuidar da terra para que ela possa cuidar da gente, com o que ela nos oferece, com suas plantas, alimentos, tintas, caça, pesca”, pontua Cosme, em trecho do trabalho.
Grupo bem estruturado
Desde o seu início, o grupo das Mulheres Xavante Coletoras de Sementes vem se estruturando. Para este ano, a expectativa é de que o comércio supere duas toneladas e gere um retorno de R$ 40 mil, conta Elizabete Carolina Pinheiro Zaratim, indigenista da OPAN.
Ela é uma das responsáveis em administrar os pedidos repassados ao grupo, além de auxiliar no suporte às coletoras e no processo de venda das sementes. Elizabete explica que grande parte dos compradores são fazendeiros, obrigados por lei a reflorestar uma área degradada.
A atividade ainda permite às coletoras trazer os grãos de espécies alimentícias para serem cultivados em locais mais próximos às aldeias em que vivem, o que contribui para o enriquecimento da dieta alimentar das famílias. A desnutrição infantil em Marãiwatsédé, que em 2013 chegou a atingir índices alarmantes (80% das crianças), hoje encontra-se praticamente erradicada, detalha Elizabete.
Desde o início dos trabalhos até o momento, 5.524 toneladas de sementes foram coletadas.
O grupo integra a Rede de Sementes do Xingu (ARSX), cadeia de trocas e encomendas que, além do Xingu, engloba as regiões do Araguaia e Teles Pires.