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Povos indígenas do Brasil participam de capacitação sobre mudanças climáticas

Curso aborda temas estratégicos para a COP26, como a necessidade de valorização do conhecimento tradicional, mercado de carbono e metas globais para conter o aquecimento do planeta.

ANDREIA FANZERES/OPAN

“Sem nossos territórios, não há solução para a crise climática e ambiental em que vivemos. Então, se o mundo está discutindo esse tema, nós temos que estar presentes”. Com esta frase, Sonia Guajajara, coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), abriu oficialmente o curso de capacitação “Lideranças Indígenas rumo à COP26”, para um público de 65 participantes de todos os cantos do país. A iniciativa representa um novo esforço na preparação para incidência na pauta climática, iniciada desde que o primeiro representante indígena brasileiro foi a uma Conferência do Clima, em 2001. Na última, a COP25, realizada em Madri em dezembro de 2019, o Brasil levou sua maior delegação indígena e conseguiu destaque em espaços oficiais, como a Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas, eventos paralelos, coletivas de imprensa e em manifestações de rua junto com outras organizações da sociedade civil. “Participar desses espaços é necessário, mas para isso precisamos entender conceitos técnicos que são colocados lá e elaborar nossa mensagem em conjunto”, disse Sonia.

Sonia Guajajara, coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), abriu o curso de formação. Foto: Mídia Ninja.

Por isso, para iniciar a capacitação, foram convidados dois grandes especialistas para o diálogo com as lideranças indígenas, Paulo Artaxo, professor titular do Departamento de Física Aplicada da Universidade de São Paulo (USP) e membro do Painel Intergovernamental de Mudança Climática (IPCC) e Ane Alencar, Diretora de Ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), que apresentaram o que o conhecimento científico tem de mais atual e consagrado sobre a importância da Amazônia e das terras indígenas para as discussões climáticas.

Artaxo explicou como a Amazônia influencia o clima no planeta ao mesmo tempo em que é afetada por ele, sendo peça fundamental em qualquer cenário. Segundo menciona o último relatório do IPCC, publicado em agosto, a região teve um clima estável ao longo dos últimos 30 mil anos, com poucos extremos de calor e chuva, mas nós estamos mudando essa condição. “A menos que haja reduções imediatas, rápidas e em grande escala nas emissões de gases de efeito estufa, limitar o aquecimento a 2 graus Celsius pode ser impossível”, cita, reiterando que é indiscutível que as atividades humanas estejam causando mudanças climáticas, perfeitamente perceptíveis hoje na medida em que uma vasta diversidade de estudos aponta para a emergência da escassez hídrica e do alcance de um ponto de não retorno para a Amazônia. As informações que endossam as afirmações do relatório do IPCC foram detalhadamente explicadas por meio de gráficos e análises de cenários menos e mais otimistas aos cursistas, que identificaram a necessidade de um diálogo mais profícuo entre a produção científica e o conhecimento indígena.

Paulo Artaxo, professor do Departamento de Física Aplicada da USP e membro do Painel Intergovernamental de Mudança Climática, participou do diálogo com as lideranças indígenas. Foto: The Shift

Sob a condução de Ane Alencar, as lideranças tiveram uma verdadeira aula sobre mudanças climáticas, os processos que acarretam o aquecimento global, seus efeitos, o papel das árvores e, mais especificamente, da Amazônia e das terras indígenas. “As terras indígenas são barreiras efetivas ao desmatamento e funcionam como um regulador climático”, afirmou. Ane Alencar explicou, ainda, como o fogo na Amazônia torna a floresta mais sensível e porque, hoje, essa é uma questão tão relevante. “A Amazônia não queima. Mas a gente está queimando a Amazônia. Para reduzir o fogo, precisamos diminuir as fontes de ignição e isso tem tudo a ver com o desmatamento”, disse.

Nedina Yawanawa, coordenadora da Sitoakore (Organização de Mulheres indígenas do Acre) elogiou a importância da formação e do compartilhamento das informações científicas sobre clima. “Temos um sentimento de muita tristeza ao saber que a Amazônia está perdendo carbono para a atmosfera. As pesquisas demonstram essa preocupação. Então, o que precisa mais acontecer para que as autoridades entendam?”, questionou.

Nedina Yawanawa, coordenadora da Organização de Mulheres indígenas do Acre. Foto: Blog do Altino Machado

Lúcio Xavante, secretário da Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso (Fepoimt), comentou sobre o efeito das mudanças climáticas sobre a cultura. “As mudanças climáticas impactam nossa tradição também. As chuvas não estão mais batendo com o calendário indígena. O sapo e a cigarra devem chamar a chuva no tempo certo e sabemos quando é hora de fazer o plantio tradicional”, relatou.

Já a coordenadora de gestão territorial e ambiental do Conselho Indígena de Roraima (CIR), Sineia do Vale Wapichana, trouxe para a discussão a necessidade de alinhar melhor o conhecimento científico com o indígena. “Ainda tenho um sonho de nivelar as informações científicas com as tradicionais. Temos que fazer esse caminho de volta para as comunidades. Precisamos saber sobre a questão científica sim, para discutirmos de igual para igual, mas gostaria de ver os estudos feitos juntamente com os povos indígenas”, sugere. Tipuici Manoki, que representa a Rede Juruena Vivo, no noroeste de Mato Grosso, chamou essa fusão de “conhecimentos científicos-indígenas”. Ela lembrou que não é de que hoje que os povos indígenas denunciam sobre mineração, desmatamento, hidrelétricas, incêndios, contudo, acredita que a academia devia ampliar sua própria perspectiva para compreender como a visão dos povos sobre esses temas é também uma forma de conhecimento científico. “Esses são conhecimentos milenares. Para a gente é uma ciência. Temos que aproximar esses conhecimentos de forma conjunta”, concordou.

As desigualdades sociais associadas às mudanças climáticas são uma pauta relevante para a COP26, como disse Artaxo. E, para lidar com isso, a resposta vem também do local. “Infelizmente não vamos mudar esse sistema em que, por causa das desigualdades, os impactos são maiores para os mais vulneráveis. Mas é possível lutar pelos nossos modos de vida e para que sejam implementadas políticas públicas que venham amenizar essa situação, apesar de o governo tentar flexibilizar ainda mais as leis que protegem o meio ambiente”, Nedina Yawanawa. Artaxo corroborou dizendo que é essencial termos programas de adaptação a mudanças climáticas e redução de emissões, freando a destruição de todos os ecossistemas brasileiros.

“A mudança do tempo traz preocupação para nós”, avalia Roseno Wajãpi, da Apina (Conselho das Aldeias Wajãpi). Do ponto de vista dos efeitos sobre os povos indígenas isolados, a situação fica ainda mais dramática, como lembrou Bitate Uru Eu Wau Wau. “As mudanças climáticas já estão afetando os modos de viver dentro das aldeias”, disse. “É muito forte ouvir da minha sogra que meu filho não vai poder brincar na água. A gente achava que nunca ia ver isso, mas infelizmente está acontecendo na nossa casa, no nosso território, na nossa aldeia. Como vamos resolver isso?”, indaga Watatakalu Yawalapiti, coordenadora da ATIX Mulher. “As florestas queimarem de um jeito que a gente nunca viu. Não é nossa culpa. Não é justo que nossos netos paguem por isso”, afirmou.

Watatakalu Yawalapiti, coordenadora da ATIX Mulher. Foto: Matilda.my

Os depoimentos das lideranças emocionaram os painelistas. “O que vocês estão sentindo na pele são as mudanças climáticas, que eram questões do futuro e agora são do presente”, reconheceu Artaxo. E, para ele, só há um caminho. “A tendência é que a pressão política e econômica para que o Brasil pare o desmatamento na Amazônia aumente, afetando o agronegócio e a indústria. No mundo dos brancos, vamos ter que mudar muito nosso sistema socioeconômico porque ele não é sustentável nem mesmo no curtíssimo prazo, como estamos percebendo hoje”. Além disso, Artaxo considera que deveremos mudar nosso modelo de governança global, reduzir as desigualdades e melhorar a democracia. “Falta um planejamento de médio e longo prazo para o planeta como um todo. Ninguém tem a solução e a COP26 vai ser uma reunião chave para a gente desenhar um futuro com uma mínima chance de sucesso para o planeta e para os povos indígenas”, disse.

O curso “Lideranças indígenas rumo à COP26” prevê sete encontros virtuais até as vésperas da Conferência do Clima, a ser realizada na cidade escocesa de Glasgow, entre 31 de outubro e 12 de novembro de 2021. É promovido pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) Rede de Cooperação Amazônica (RCA), Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Operação Amazônia Nativa (OPAN), Uma Gota no Oceano e conta com apoio de Fastenopfer, da Fundação Rainforest da Noruega e da Fundação Ford.