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Discussão amarga, mas necessária

Tema do 3º encontro do curso sobre mudanças climáticas, regulamentação do mercado de carbono na COP26 enseja preocupação quanto à garantia de respeito aos direitos indígenas.

Andreia Fanzeres/OPAN

Um dos assuntos mais aguardados para discussão na COP26 será a regulamentação do Artigo 6 do Acordo de Paris. Popularmente conhecido como o mercado de carbono, trata-se da possibilidade de cooperação entre todos os países de modo voluntário na implementação de suas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs). Ou seja, transferindo resultados de mitigação, devendo promover o desenvolvimento sustentável, assegurar a integridade ambiental e transparência com cuidado para que não haja dupla contagem, ou seja, que uma mesma ação de redução de emissões num lugar seja contabilizada em outro, entre mais condições que ainda suscitam dúvidas sobre como esse sistema deverá operar na prática. Debatê-lo não é nada fácil. 

Para entender melhor sobre as ameaças e oportunidades da regulamentação do Artigo 6 do Acordo de Paris, as lideranças indígenas que participam da capacitação “Rumo à COP26” receberam Carlos Rittl, conselheiro sênior em política da Fundação Rainforest da Noruega, e Johnson Cerda, diretor da DGM Global na Conservação Internacional, na terceira sessão do curso, mediada por Élcio Manchineri, assessor político da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e diretor de Territórios e Recursos Naturais da Coordenadoria das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica (Coica).

Carlos Rittl, conselheiro sênior em política da Fundação Rainforest da Noruega. Foto: Envolverde

Rittl, que falou primeiro, fez um retrospecto sobre como as metas de redução de emissões foram definidas e funcionavam desde 1997, quando foi formulado o Protocolo de Quioto, demarcando as diferenças fundamentais entre o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), estabelecido naquela época, e o novo sistema que precisa ser regulamentado no âmbito do o Acordo de Paris. “Pelo Protocolo de Quioto, países desenvolvidos [com metas obrigatórias para redução de emissões], poderiam apoiar projetos em países em desenvolvimento [que não tinham metas obrigatórias] e a redução de emissões provenientes desses projetos seria atestada por uma entidade no âmbito da Convenção, gerando créditos de carbono. Valia fazer plantios de pinus, eucalipto, mas naquela época redução de emissões por desmatamento evitado não entrava”, explicou. Hoje, todos os países têm metas de redução e, portanto, todos podem gerar ou receber os créditos, inclusive empresas. “Qualquer um dos 191 países que ratificaram o Acordo de Paris pode gerar essa moeda de troca se tiver cumprido sua meta e for além daquela redução, o que chamamos de resultado de mitigação internacionalmente transferido (ITMO, na sigla em inglês)”, continuou Rittl.

Segundo ele, parte do recurso arrecadado nesse mercado deverá alimentar um fundo de adaptação criado em COPs anteriores e que até hoje conta com pouco recurso, embora países menos desenvolvidos, que historicamente não têm culpa pelo problema do aquecimento global e que sofrem as maiores consequências, precisem muito. Mas tudo isso precisa ter regras claras. 

Conforme Rittl, o Brasil é o único país que defende que se um projeto tem sua redução de emissões certificada, isso já seria uma garantia de que ela é adicional à sua NDC. Só que nem tudo é tão simples. “Se você não sabe qual é a emissão anual de cada país, ou a quantidade de emissões num determinado período, fica difícil saber o que é adicional ou não”, pondera. Com desmatamento acima de 10 mil km2 há mais de três anos, denúncias em órgãos internacionais sobre violação aos direitos humanos e os piores retrocessos socioambientais, o Brasil prepara sua participação na COP26 se pintando de verde da cabeça aos pés. “O Brasil vai para a COP com muito dinheiro, estruturando o maior pavilhão do Brasil na história das COPs e vai fazer isso com apoio da indústria e do agronegócio para mostrar que respeita o meio ambiente, que tem muita floresta”, conta Rittl. 

Maria Betânia Mota de Jesus, do Conselho Indígena de Roraima (CIR) levantou a preocupação de haver povos indígenas endossando essa narrativa. “Há quem considere que soja, mineração e hidrelétricas dentro dos territórios é desenvolvimento. Temos que estar preparados sempre para defender a nossa mãe terra”, afirmou. “Precisamos mostrar a realidade dos povos indígenas, de que o Estado não respeita nossos direitos. São quase 600 mil mortos na pandemia. É um governo que desrespeita a vida e destrói um trabalho conquistado”, concorda Manchineri. “Com esse desempenho ruim, tanta queimada e desmatamento, o Brasil não vai cumprir o Acordo de Paris. Facilitaria muito se fossem demarcadas as terras indígenas e as reservas extrativistas”, sugeriu.  

Inclusão dos povos indígenas na discussão do Artigo 6

Observadores na COP26 terão não apenas a função de contrapor as mentiras que o governo brasileiro prepara para levar à Glasgow, mas de também tentar acompanhar bem de perto o modo como a garantia de respeito aos direitos humanos, e, em particular, os indígenas, constará nos termos da regulamentação do Artigo 6. 

A honrosa participação internacional de Johnson Cerda na capacitação proporcionou a compreensão do quão importante a inclusão dos povos indígenas na discussão do Artigo 6 está sendo encarada pelo Caucus Indígena, o Fórum Internacional de Povos Indígenas sobre Mudanças Climáticas. Pertencente ao povo quéchua, do Equador, Cerda historicizou o modo como os povos indígenas eram encarados pela Convenção do Clima até os dias atuais. “Desde Quioto, defendíamos que muitos projetos de MDL afetavam as comunidades indígenas, como hidrelétricas, plantio de eucalipto nas montanhas. Alguns indígenas estavam se tornando guardiões de monocultivos. Devíamos, portanto, rechaçar qualquer continuidade do MDL”, contou.

Para Cerda, embora a discussão do Artigo 6 seja bastante técnica, é possível resumir em 1 minuto o que desejam os povos indígenas. “Queremos que os direitos dos povos indígenas sejam reconhecidos ali, como o direito ao território, à consulta. Que o direito dos povos indígenas esteja protegido na implementação desse artigo”, resume. Mas isso não é tudo. “Em Madri, na COP25, em algum momento entre tantos textos, a menção ao direito dos povos indígenas apareceu no preâmbulo do artigo 6, mas foi retirado no final”, lembra. É necessário acompanhar as negociações bem de perto.

Dentro do Caucus Indígena, Cerda pontua que há quem proteste e quem veja o mercado de carbono como oportunidade. “Sempre devemos respeitar a livre determinação de cada um dos povos, sendo seus direitos reconhecidos em todos os casos. Há expectativa de que venham recursos para processos de reconhecimento territorial”, disse. Entre as ameaças, ele conta que representantes indígenas da América do Norte relataram que um problema do mercado de carbono é a ameaça de realização de ações nos territórios sem que os países desenvolvidos reduzam de fato suas emissões. “Estão querendo tirar dinheiro para compartilhar, mas não estão comprometidos em reduzir. Devemos pressionar os países desenvolvidos com compromissos sérios”.

Na estratégia de tentar influenciar o texto da regulamentação do Artigo 6, as lideranças indígenas no Cáucus se debruçam sobre a questão da especificidade dos direitos indígenas dentro quando se fala em direitos humanos. “Na Convenção do Clima existe um grupo constituído de direitos humanos, mas não dão prioridade aos direitos indígenas. Temos que cuidar com a linguagem. Estamos no Cáucus falando com os governos que queremos que se integre o tema dos direitos indígenas no preâmbulo do documento”, detalha. Em sua avaliação, não é suficiente que a menção aos indígenas conste apenas no preâmbulo do Acordo de Paris, pois é certo que os projetos oriundos do mercado de carbono poderão afetar as comunidades.

Além do desafio do acesso das comunidades indígenas a fundos ligados à mitigação e adaptação às mudanças climáticas, Cerda sinalizou a necessidade de maior envolvimento dos povos indígenas na discussão sobre soluções baseadas na natureza, que está em alta. “Estão vendendo esse tema das soluções baseadas na natureza, mas qual é o papel dos povos indígenas, que são os principais atores? Como eles veem isso? Não vão achar uma solução com discursos”, afirmou. 

O curso “Lideranças indígenas rumo à COP26” prevê sete encontros virtuais até as vésperas da Conferência do Clima, a ser realizada na cidade escocesa de Glasgow, entre 31 de outubro e 12 de novembro de 2021. É promovido pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) Rede de Cooperação Amazônica (RCA), Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Operação Amazônia Nativa (OPAN), Uma Gota no Oceano e conta com apoio de Fastenopfer, da Fundação Rainforest da Noruega e da Fundação Ford.