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“É uma gente que derruba tudo para pegar madeira, colocar boi e porteira”, diz sobrevivente Piripkura

Rita é uma das últimas remanescentes conhecidas de um povo indígena originário da floresta amazônica. Seu sobrinho e irmão vivem isolados, cercados por invasores.

HELSON FRANÇA/OPAN

Sob a sombra de uma mangueira de 20 metros de altura posicionada próxima às margens amazônicas do rio Jaci-Paraná, que banha a aldeia Karipuna, em Rondônia, Rita Piripkura muda o semblante. Séria, lembra que dias atrás Aripã, seu marido, lhe perguntou o porquê de ela estar brava. “Respondi que não estava brava, mas sim preocupada. Preocupada com os dois que estão lá na minha terra, porque o homem branco está derrubando tudo, arrancando todo o mato. Vão matar eles”, explicou.

O nome de nascimento da sobrevivente Piripkura é Irmana. Ela passou a ser chamada de Rita quando foi levada para uma das fazendas que praticam atividades ilegais no território de seus ancestrais. Foto: Helson França (OPAN).

Eles, a quem ela se refere, são Tamandua e Baita, seu sobrinho e irmão, respectivamente. Ambos são indígenas isolados que vivem na Terra Piripkura, localizada na porção amazônica de Mato Grosso (região noroeste) e muito cobiçada por madeireiros, grileiros, fazendeiros e garimpeiros. Os dois e mais Rita são os últimos remanescentes conhecidos de um povo quase todo exterminado pela ação violenta de invasores.

“Primeiro, foram as doenças. Gripe, principalmente. Eu era muito pequena. Morreu muita gente. Depois, foram os ataques. Mataram todo mundo. Foi minha avó que me falou”, recorda a indígena.

Em seus primórdios, Rita era Irmana – nome que lhe foi dado por sua mãe com a conivência do pai. Passou parte de sua infância e juventude na companhia das árvores, igarapés, animais e rios, tendo por perto a presença da família: os pais, irmão, sobrinho e avó, além de outros Piripkura de diferentes grupos.

A partir da década de 60, invasores, em conformidade a uma lógica desenvolvimentista patrocinada pelo governo brasileiro à época, passaram a intensificar o avanço ilegal sobre o território Piripkura, na ânsia por explorar seus recursos naturais.

“O homem branco vem e derruba tudo, para pegar madeira e colocar boi. Acabam com todo o mato. É uma gente que derruba tudo para colocar porteira”, resume a sobrevivente Piripkura, a respeito do modo de agir dos invasores.

Para tentar escapar ao cerco que avançava, os indígenas buscavam se isolar nas partes mais densas e remotas da floresta. Porém, os contatos aconteciam, sempre com um histórico de muita violência, que resultava também em uma desorganização social entre os grupos nativos.

Nesse contexto, Irmana foi parar em uma das 15 grandes fazendas sobrepostas no território de seus ancestrais. Lá, passou a ser chamada de Rita e foi submetida a anos de trabalhos forçados, até ser resgatada pelo indigenista da Operação Amazônia Nativa (OPAN), João Lobato, no início da década de 80. Foi quando ela ganhou um amparo da Fundação Nacional do Índio (Funai) e começou a ter acompanhamento médico regular, pela Casa de Apoio à Saúde do Índio (Casai), em Porto Velho (RO).

Em um desses atendimentos, conheceu a liderança Tîu Karipuna, com quem se casou. Os Karipuna e os Piripkura têm em comum a mesma matriz linguística, que vem do grupo Kawahiva. Após o falecimento de Tîu em um acidente de barco, em 1995, Rita casou-se com o primo dele, Aripã, com quem vive até hoje na aldeia Karipuna.

Vida na aldeia

“Ah, então pega o balde aqui. E não, não é assim que carrega ele. Tem que levar ele na cabeça”, demonstrou Rita a uma interlocutora, que havia se prontificado a ajudá-la a lavar a louça em um igarapé próximo da habitação em que a indígena reside As duas seguiram então para a atividade. A visitante, com sua vestimenta formal e tentando equilibrar o balde na cabeça, arrancava risadas discretas de Rita – como que para não constranger a convidada que estava lá para passar uma tarde com ela.

Naquela manhã de sábado, Rita havia estado durante toda a primeira parte do dia trabalhando na roça que mantém, quase sozinha, na aldeia onde vive. Ela cultiva mandioca e macaxeira. Aripã, que costumava ser o seu parceiro nas atividades diárias, está parcialmente cego, em razão de uma catarata e aguarda atendimento médico há mais de um ano. Rita é quem cuida dele.

Rita não gosta do barulho da cidade. Vai ao centro urbano apenas para acompanhar o marido Aripã em consultas médicas. Foto: Helson França/OPAN

“Em janeiro vamos à cidade para Aripã ir ao médico. Não gosto da cidade. Tem muito barulho lá e é muito quente. Mas Aripã precisa de um atendimento”, disse Rita, no caminho para o igarapé. Na ausência de Aripã, o filho mais velho dele, Batiti, é quem às vezes ajuda Rita na roça.

Quem a vê pela primeira vez depara-se com uma mulher de expressão sisuda – que carrega consigo as marcas de uma vida de superação. Porém, à medida que as interações começam a fluir, por meio da troca de impressões, o semblante de Rita dá lugar a traços serenos. E ela também se torna mais à vontade. 

Comunicativa, a indígena se expressa em um português de poucos vocábulos, mas de forma objetiva e contundente. A liderança Adriano Karipuna se fez presente na ocasião de nosso encontro, servindo de tradutor às vezes e deixou Rita mais confortável, sobretudo no início da conversa.

Ela não sabe ao certo a idade que tem, mas por meio de seus relatos e aspecto físico aparenta ter aproximadamente 60 anos. Rita demonstra estar saudável. Foi vacinada contra a covid-19, enxerga bem sem óculos, tem a audição afiada e é muito ativa. Sua perspicácia foi fundamental para que a Terra Piripkura fosse reconhecida em 1985 e, posteriormente, para que Tamandua e Baita fossem encontrados pela primeira vez, em 1989.

Território Piripkura

Depois de ser resgatada por João Lobato, Rita passou a colaborar com a Frente de Contato Madeirinha, criada para identificar a presença de indígenas isolados na região noroeste de Mato Grosso. Assim, passou a realizar expedições floresta adentro com indigenistas.

“A contribuição da Rita foi essencial para que a Terra Piripkura passasse a ser reconhecida e os trabalhos de proteção fossem iniciados. Além disso, é através da Rita que é feito um resgate da memória e história do povo Piripkura. Ela foi fundamental para a localização de Tamandua e Baita e continua sendo primordial para o avanço dos estudos no território, pois é a pessoa que mais entende dos pormenores da área”, destaca Elias Bigio, doutor em História pela Universidade de Brasília (UnB) e ex-Coordenador Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC), cargo que ocupou na Funai de 2006 a 2011. Ele é o atual presidente da OPAN.

Rita não sabe ao certo quantos anos possui. Especula-se que tenha cerca de 60 anos. A colaboração dela em expedições foi essencial para o melhor reconhecimento do território Piripkura. Foto: Documentário Piripkura.

No período em que esteve à frente da CGIIRC, Bigio foi o responsável por instruir o processo para que a Funai emitisse a primeira portaria de restrição de uso à Terra Indígena Piripkura, em setembro de 2008.  Como a área ainda não foi demarcada, essa portaria, que serve para impedir a entrada de invasores e vedar a exploração de recursos naturais, é o único mecanismo de proteção legal ao território e nativos que lá vivem. Como não é permanente, o dispositivo precisa ser renovado de tempos em tempos.

Desde a publicação da primeira restrição de uso à Terra Piripkura, houve sete renovações. A última delas, aconteceu em 17 de setembro deste ano, um dia antes de a validade da portaria expirar. O prazo atribuído à renovação foi de seis meses, considerado insuficiente para a realização de todos os trabalhos que fundamentam o processo de demarcação – e que, portanto, gera estranheza.

“É um prazo de validade exíguo, sobretudo se olharmos para o histórico de outras portarias de restrição de uso que foram publicadas. O nosso receio é de que, após esse período, que não é suficiente para realização dos estudos antropológicos, etno-históricos e todo o levantamento fundiário da área, a terra indígena tenha os limites territoriais reduzidos”, observou Bigio.

A reportagem questionou a Funai sobre a justificativa pela renovação da portaria por seis meses, mas não obteve retorno.

Recentemente, a Justiça Federal dissolveu o Grupo Técnico (GT) que havia sido constituído pela Funai para realização de identificação e posterior demarcação da Terra Indígena Piripkura, pois os integrantes não possuíam a formação necessária para a execução dos trabalhos, além de serem notoriamente ligados a ruralistas – o que evidencia conflito de interesses. Como ainda não há um estudo conclusivo sobre a presença de indígenas na região, especialistas acreditam que possa haver mais nativos vivendo no território, além de Tamandua e Baita.

Ameaças

Como toda boa anfitriã, Rita se esforçava para mostrar todos os cantinhos especiais do lugar em que vive. Um desses lugares é um bosque no interior da floresta, de onde é possível admirar uma samaúma enorme. “Essa aí com certeza tem idade para ser a minha avó, ou bisavó”, brincou Rita, referindo-se à árvore imponente.

O território de 153 mil hectares onde vive atualmente já é demarcado, mas ainda convive com a ameaça constante de madeireiros, fazendeiros e garimpeiros. A poucos metros da entrada da Terra Indígena Karipuna é possível identificar uma vasta área em cinzas e árvores derrubadas. Adriano, que estuda advocacia e é um dos porta-vozes do povo Karipuna, ressalta que os órgãos de fiscalização não conseguem deter os invasores.

“O desrespeito aos nossos direitos é diário. Nota-se que nos últimos anos a situação piorou. Percebemos que tanto o governo federal quanto o estadual não têm conseguido assegurar a proteção ao povo indígena de Rondônia. É uma situação revoltante”, enfatizou. Para tentar coibir a ação criminosa sobre a sua terra, o povo Karipuna ingressou recentemente com uma ação na Justiça Federal, exigindo a retirada de invasores, como também a criação de um sistema de proteção permanente na área e o cancelamento de cadastros de imóveis rurais sobrepostos ao território.

A liderança Adriano Karipuna. Foto: Helson França (OPAN).

Esse cenário, para Rita, é muito parecido com aquele com o qual se deparou nas vezes em que esteve na Terra Piripkura, colaborando com as expedições. “Sempre tinha muita árvore derrubada. Estão acabando com a floresta. E aí fica tudo muito quente, como na cidade”, refletiu.

A percepção da indígena é constatada por meio de diversos estudos, que evidenciam uma escalada de destruição e avanço criminoso alarmantes sobre o território Piripkura – beneficiados em grande parte pela ineficiência dos órgãos de fiscalização do governo.

O Sistema de Monitoramento Independente (Sirad-I) do Instituto Socioambiental (ISA), que utiliza dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), identificou que, de agosto de 2020 até o momento, foram desmatados 2.361 hectares no interior da Terra Indígena Piripkura – o equivalente a 2.804 estádios de futebol ou 1,7 milhões de árvores.

Somente em março deste ano, foram detectados pelo Sirad-I 518,8 hectares de floresta primária devastada no território. Conforme relatório técnico produzido pela OPAN e ISA, a Terra Piripkura foi a mais afetada por desmatamentos ilegais em 2020, entre aquelas com a presença de povos isolados.

“Nos últimos dois anos, o desmatamento verificado dentro da Terra Indígena Piripkura foi 27.000% superior ao registrado nos dois anos anteriores”, destacou o pesquisador do ISA, Antônio Oviedo. Até outubro de 2021, o desmatamento acumulado no território era de 12.426 hectares – o que equivale a mais de sete milhões de árvores derrubadas.

Imagens de um sobrevoo pela Terra Piripkura realizado no final de outubro deste ano, em que Bigio esteve presente, evidenciam claramente o pleno funcionamento de atividades ilegais no interior do território. Do alto, é possível constatar queimadas em grandes extensões da floresta, árvores derrubadas, caminhões carregados de madeira, pecuária em expansão e pista de pouso para aviões.

“O que a gente percebe é que houve uma re-invasão de áreas que haviam sido embargadas, em razão da restrição de uso. As pessoas estão lá como que autorizadas e fazer o que estão fazendo. Um estrago enorme, estão acabando com a terra indígena. Os órgãos de fiscalização não estão dando conta de proteger o território”, concluiu Bigio.

Em nota, a Funai informou que “tem prestado toda a assistência aos Piripkura, com ações voltadas à proteção territorial garantia da segurança alimentar e acesso aos serviços de saúde”.

Invasores também intensificaram o cerco e a pressão ao redor do território. Levantamento realizado pela OPAN, a partir de dados obtidos dos processos minerários protocolados na Agência Nacional de Mineração (ANM), revelou que, de 2019 até hoje, o tamanho da área solicitada para prática garimpeira no entorno da terra indígena (buffer de 10 quilômetros) aumentou mais de nove vezes, saltando de 5.857 hectares para 53.889 hectares – o que representa um incremento de aproximadamente 820%.

Para tentar coibir o avanço criminoso sobre o território, o Ministério Público Federal (MPF) ingressou com uma ação solicitando a retirada de todos os invasores. Apesar de a decisão judicial inicial ter atendido a recomendação do MPF, posteriormente, em função de recursos interpostos pelos réus, o juiz Frederico Martins acatou parcialmente os pedidos, em agosto deste ano.

Nos autos, o magistrado argumentou que, em razão da pandemia de covid-19, do elevado número de invasores na terra indígena e diante da impossibilidade de se executar a remoção imediatamente, a Funai deveria então elaborar um plano para a retirada dos não índios, que incluísse a efetivação de um cordão de isolamento – para reforçar a política de não contato com os nativos que vivem no território.

Martins ainda expediu mandados de interdição, para que todas as atividades agropecuárias na terra indígena fossem paralisadas até a concretização da desintrusão. No entanto, como evidenciam os monitoramentos e estudos, a decisão vem sendo desrespeitada.

Enquanto isso, Rita segue com a sua rotina ativa na aldeia Karipuna, cuidando de seu parceiro. Em uma ocasião daquele sábado, pela tarde, ela observava atentamente um mapa que lhe era mostrado, sentada debaixo da mangueira. No documento, sua terra de origem era esmiuçada cartograficamente, com vários pontos e locais – muitos dos quais identificados com a ajuda dela nas expedições. Seus olhos brilhavam à medida em que cada lugar ou trecho lhe era detalhado. “Espero que eles [Tamandua e Baita] estejam bem. E que eu possa voltar lá um dia, sem ver árvore derrubada”, disse, como que pensando alto.

Tamandua (esquerda) e Baita (direita) são, respectivamente, sobrinho e irmão de Rita. Eles fazem contatos esporádicos com indigenistas que atuam na região. Foto: Bruno Jorge (ISA).