Estudo atesta inviabilidade da UHE Castanheira em MT, mas licenciamento prossegue e indígenas resistem
Nota técnica da OPAN aponta contaminação por mercúrio, morte de peixes e ausência de participação dos povos tradicionais, entre outros problemas do projeto hidrelétrico priorizado pelo governo.
Por Beatriz Drague Ramos/ OPAN
Há 37 anos, a professora Suzana Maria se via diante de um cenário de mudanças drásticas em sua vida e na de seu povo Kayabi. O projeto de instalação de um grande empreendimento hidrelétrico, a UHE Caiabis, se aproximava da aldeia Tatuí, na Terra Indígena (TI) Apiaká-Kayabi, localizada no município de Juara. Era 1985 quando um canteiro de obras se abriu ao lado do Salto Ytu’u, cachoeira sagrada para os indígenas da região, no rio dos Peixes, afluente do rio Arinos.
Comandada pela empresa Centrais Hidrelétricas Mato-Grossense S/A (Cemat), a usina que seria construída pela empresa Andrade Gutierrez atenderia três pequenos municípios próximos e colocaria no local mais de três mil trabalhadores.
Antes mesmo da construção, uma amostra do que poderia acontecer no futuro foi dada aos indígenas: jacarés e peixes mortos e muito desmatamento. “Eu tinha cerca de 18 anos quando vieram aqui na aldeia fazer pesquisas para implementar essa usina”, relembra a professora indígena, hoje com 55 anos.
Naquela época cinco mil homens desceram para a aldeia, segundo ela. “Foi muito rápido e para construir a usina eles desmataram tudo. No Salto estava tudo derrubado”, lembra. “Acabaram os peixes, houve mudança, aumentou a população, houve um movimento de pessoas estranhas.”
A entrevista foi dada dentro de uma das salas de aula da Escola Estadual Indígena de Educação Básica Juporijup. Computadores, mesas e armários compunham o cenário de uma unidade educacional conquistada com muita luta dos povos indígenas. Aos poucos a conversa se desenrolava e as cenas dos anos passados eram narradas com mais confiança.
De acordo com ela, a situação que cercava a Terra Indígena só não piorou porque, em maio de 1985, dezenas de povos indígenas resistiram à construção da usina, a partir da organização de assembleias, ocupação dos barracões da construtora, vigilância territorial, idas à Brasília e a retirada dos não indígenas do local. “Vieram indígenas de outras etnias, como Kayapó, Bakairi, Canoeiro, os Myky, Irantxe, eles conseguiram barrar a usina.”
Após muito diálogo com agentes do governo e empreendedores, a construção da usina foi impedida. Ademais, os limites da TI Apiaká-Kayabi foram corrigidos de forma que o Salto passasse a ficar no interior da terra e não no seu limite.
Ainda assim, o período de resistência provocou traumas aos indígenas que habitavam a aldeia Kayabi na época, como lembrou a agente de saúde Divina Kayabi, 49 anos. “As famílias sofriam com as crianças, os homens saíam daqui e deixavam as famílias completamente sozinhas, enquanto eles iam brigar contra a usina. Era muito perigoso os pistoleiros chegarem e atacarem a gente, às vezes ninguém dormia a noite”, relembra.
UHE Castanheira: impactos irreversíveis
O receio de que efeitos semelhantes ou ainda piores aconteçam novamente na TI Apiaká-Kayabi voltou a pairar sobre a comunidade em anos recentes. Desde 2016, a ameaça de que a Usina Hidrelétrica (UHE) Castanheira saia do papel tem provocado uma série de críticas por parte dos povos indígenas a serem afetados pelo empreendimento. “Se essa usina operar, o que será de nós?”, questiona Divina com a voz trêmula.
“Nós vimos reportagens sobre o Teles Pires e teve impacto no rio, com contaminação e peixes mortos. Aqui pode ser igual, os animais vão se afastar”, alertou o jovem Elenildo Morimã, indígena Apiaká, da aldeia Mayrob.
A usina está projetada para ser construída no rio Arinos, a 120 km de seu encontro com o rio Juruena, na Bacia do Tapajós, e deve produzir apenas 1% do que é consumido atualmente em Mato Grosso, gerando 98 MW de energia firme. Com a UHE, o rio dos Peixes, afluente do Arinos, fonte de sustento da TI Apiaká-Kayabi, será impactado com alterações no deslocamento de peixes, uma vez que o Arinos é rota migratória de diversas espécies importantes.
Esses são apenas alguns dos pontos trazidos na Nota Técnica produzida pela Operação Amazônia Nativa (OPAN) com colaboração do consultor jurídico Adriano Braun entregue aos Ministérios Públicos Federal (MPF) e do Estado de Mato Grosso (MP-MT) em junho deste ano. Os órgãos não se manifestaram nessa reportagem até a sua publicação.
No documento são apresentadas considerações acerca do Informe Técnico EPE 005/2020, bem como sobre outras questões concernentes ao projeto UHE Castanheira. O levantamento leva em conta as informações inseridas em inquéritos que correm no MPF e MP-MT e nos processos de licenciamento que tramitam na Secretaria de Estado de Meio Ambiente de Mato Grosso (SEMA), na Fundação Nacional do Índio (Funai) e no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
A limitação do espaço para a obtenção de recursos naturais com a restrição do acesso a áreas usadas nas atividades produtivas são consequências irreversíveis a serem encaradas pelos indígenas, caso a UHE seja implementada. Essa é uma das angústias de Agenor Apiaká, morador da aldeia Mayrob. “Vamos perder muito se fizerem essa usina, a caça, o peixe, tudo. Ninguém vai poder nem andar lá para baixo, vamos ter que ficar só aqui, viver ilhados”, disse em conversa numa manhã na aldeia.
Com isso, haverá efeitos negativos sobre a organização social, política e cultural dos povos indígenas, assim como a intensificação dos conflitos ligados a nas atividades de pesca e coleta de tracajás, segundo indica o Estudo de Componente Indígena (ECI) do empreendimento. Todos não podem ser revertidos. Além dos Kayabi, Apiaká, Munduruku, e das terras Japuíra e Erikpatsá, a UHE deve gerar prejuízos ao povo Tapayuna, que ainda não tem seu território demarcado.
Com uma distância de 30 km da cidade de Juara, a UHE irá afetar ainda os pequenos agricultores das comunidades de Pedreira e Palmital, que serão diretamente alagadas pelo reservatório.
Também da aldeia Tatuí, Divina conta que a hidrelétrica deve provocar a alteração demográfica local e, com isso, um aumento da criminalidade. “De uma hora para outra, já se vê uma cidade. Nós, mulheres, temos medo de sofrermos estupros, é perigoso.” Ela também teme o aumento do consumo de álcool e drogas dentro do território.
Já Rodrigo Morimã, da aldeia Mayrob, do povo Apiaká, diz que o rio dos Peixes pode virar um lago. “Do jeito que já está, com poucas chuvas em agosto o rio já baixa. Como os peixes vêm do Arinos, se houver a barragem podemos ficar sem peixes. Eles tinham que considerar o tempo da seca e da cheia no estudo, fora o tanto de gente que vai vir para Juara. Vem gente de tudo quanto é lado.”
A usina e os riscos de extinção do tutãra, festa do tracajá e salto sagrado
O Salto Ytu’u, localizado no rio dos Peixes, é uma das paisagens culturais ameaçadas pela UHE Castanheira. Foi lá onde, segundo relatos dos indígenas do povo Kayabi, um pajé se afogou e se transformou em sucuri. “O pajé perdeu a filha dele e para esquecer isso atravessou o salto e a canoa onde ele estava virou, ele ficou em cima de uma pedra a noite toda e se transformou em sucuri”, contou Suzana Maria.
De forma mais aprofundada, a professora Dineva Maria Kayabi diz em seu estudo produzido como Trabalho de Conclusão de Curso na Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), em 2016, intitulado“Salto Sagrado do povo Kayabi: uma história de resistência”, que o salto tornou-se sagrado porque na ida para a aldeia Tatuí o pajé forte, pai de Katu, ficou lá e nunca mais saiu. “Ele sabia, ele tinha sonhado o acontecido, agora mora lá no meio das pedras e às vezes canta à noite. No dia que ele ia afundar ficou cantando durante três dias uma despedida e depois afundou para sempre. Ele guarda o salto, mora no salto e dá força ao povo Kawayweté [Kayabi].”
Dineva salienta que o salto guarda “a cultura, a sabedoria, a espiritualidade inteira do povo Kawayweté”. E que o local tem vida e não pode ser destruído, pois “a destruição do salto é o enfraquecimento do povo Kawayweté.”
De enorme importância para os indígenas Apiaká e Munduruku, a festa do tracajá é mais um patrimônio cultural que pode se findar com a implementação da UHE Castanheira. O evento, que consiste na caça de tracajás e do cozimento da carne do animal em grandes fogueiras, ocorre entre os meses de agosto e setembro na aldeia Mayrob e, segundo os indígenas, é um momento de união entre as pessoas da aldeia. “O tracajá é a nossa cultura, une todo mundo. É importante, vem do nosso antigo bisavô, é uma festa, ninguém pode tirar de nós. Todo mundo vai comer junto, é muito bonito”, diz Agenor Apiaká, morador da aldeia Mayrob, com orgulho.
Segundo ele, geralmente cinco ou seis homens da aldeia passam de três a quatro dias na caça, que ocorre no rio Arinos e no rio Juruena. Agenor teme que aconteça o que ocorreu com seus parentes que vivem próximos ao rio Teles Pires, onde foram implementadas quatro usinas. “No Teles Pires, os peixes também diminuíram e o tracajá também acabou”.
“Essa usina Castanheira pode comprometer a festa”, ressalta Adolfo Gomes, 60 anos, liderança da aldeia Mayrob. “O tracajá é um animal que vive em lagoas e rios. Então, se eles forem afetados, começam a recuar, eles podem ir para outros locais onde não vamos mais poder pegar. Isso vai atrapalhar”, acredita.
Assim como os Apiaká e os Kayabi, o povo Rikbaktsa também pode ter suas práticas culturais prejudicadas. Para a realização de diversos rituais, entre eles o de casamento, as mulheres confeccionam o colar tutãra, produzido com as conchas de um pequeno bivalve encontradas no rio Arinos. A disponibilidade dessas conchas está ligada ao regime de cheias e secas do rio.
Além da inviabilidade socioambiental, a UHE também não se sustenta economicamente. Uma análise custo-benefício feita pela Conservação Estratégica (CSF), com apoio da OPAN, do Instituto Centro de Vida (ICV) e da Internacional Rivers mostrou que haverá prejuízo econômico de cerca de R$ 419 milhões, caso a UHE seja construída, levando em conta as perdas econômicas de áreas produtivas inundadas, a diminuição das reservas de peixes na região e os custos das emissões de gases de efeito estufa.
Para que a usina seja efetivamente construída e operada ela precisa passar pelo processo de licenciamento ambiental, tendo o aval da Secretaria de Estado do Meio Ambiente de Mato Grosso (SEMA) no caso de usinas abaixo de 300 MW, da Funai e do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Ademais, antes que a usina receba a Licença Prévia (LP) é necessário que os povos potencialmente impactados sejam consultados nas fases iniciais da concepção do projeto e durante todo o seu processo de licenciamento.
A EPE obteve o aval do Iphan para o prosseguimento dos trâmites junto ao órgão considerando que a “contextualização arqueológica e etnohistórica da área de influência do empreendimento, por meio de levantamento exaustivos de dados secundários”, foi “minimamente cumprida” pelo empreendedor, após diversas solicitações de complementações parcamente atendidas.
O arqueólogo do Grupo de Trabalho Patrimônio Arqueológico no Licenciamento Ambiental da Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB) Luis Vinícius Sanches Alvarenga, avalia que o estudo etno-histórico apresentado pela EPE é insuficiente no que tange ao patrimônio arqueológico. “O estudo realizado carece de diversas complementações para que apresente um panorama do que é a arqueologia na Área Diretamente Afetada pelo empreendimento.”
E, ainda assim, mesmo que apresentasse tais aspectos, ele aponta que a relação das populações com essa materialidade são imensuráveis. “O patrimônio imaterial tem uma sensibilidade muito maior e é mais difícil de ser mensurado com base nos estudos exigidos pela legislação atual”, diz Luís Vinícius.
Em nota, o Iphan informou que não é competente para analisar o componente indígena e eventual impacto aos seus bens. “O estudo etno-histórico, relativo ao “Projeto de Diagnóstico Arqueológico Interventivo apresentado pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE) por intermédio da Consultoria Habtec Mott MacDonald, sob responsabilidade da arqueóloga Lydie Gusmão Lopes da Silva, atendeu aos requisitos exigidos pela Portaria SPHAN nº 230 de 17 de dezembro de 2002, portanto, corresponde com os parâmetros técnico/legal exigidos para tal categoria de estudo”, diz o texto.
“Porém, em atenção aos procedimentos estabelecidos pelas normativas vigentes, informo que ainda poderão ocorrer o aprofundamento de estudos no local com a realização de prospecções arqueológicas intensivas, o que poderá ampliar ainda mais o conhecimento sobre bens arqueológicos existentes no local”, conclui.