Povo Haliti-Paresi recebe visitantes para avaliar turismo de base comunitária
Expedições experimentais levaram turistas de vários estados brasileiros para experiência de imersão em seis aldeias. A iniciativa faz parte de projeto que visa estruturar esta prática de turismo no território Haliti-Paresi.
Por Túlio Paniago/OPAN
Tangará da Serra (MT) – A humanidade surgiu, segundo a cosmogonia Haliti-Paresi, quando um grupo de seres entre a forma animal e humana saiu do interior de uma pedra. Eles escaparam por uma fenda aberta por Toakaihoreenoharetse, Enorê (criador e Deus do Raio). Ao saírem, se depararam com um mundo externo muito diferente da realidade que conheciam. Os elementos deste novo mundo – rios, animais terrestres, pássaros, plantas, paisagens naturais – foram todos nomeados em Aruak, tronco linguístico cujos falantes já povoavam a América Latina há pelo menos três milênios.
O Aruak é a língua do povo Haliti-Paresi, habitante imemorial do noroeste do estado de Mato Grosso, onde se localiza a Ponte de Pedra, formação natural no rio Sucuriu-winya que materializa o mito. Assim, da criação à contemporaneidade, os Haliti têm enfrentado desafiadores contatos com mundos externos. Da violenta invasão bandeirante à expansão das atividades mineradoras e seringalistas na região; do encontro com a Operação Rondon às missões jesuíticas; da expansão agrícola no Centro Oeste à demarcação dos territórios e assimilação de novas tecnologias.
Historicamente, eles têm resistido e se articulado com estes mundos para sobreviverem e permanecerem em suas terras. Hoje, diferente de outros momentos, a interação com quem vem de fora se apresenta como uma potencial fonte de geração de renda e valorização da cultura tradicional. Há pessoas interessadas em conhecer o modo de vida das aldeias e as belezas naturais do território. A implementação do etnoturismo ou turismo de base comunitária é um dos pilares do Plano de Gestão Territorial e Ambiental Haliti-Paresi.
Expedições experimentais
Entre os dias 09 e 19 de setembro, seis aldeias (Rio Formoso, Santa Vitalina, Wazare, Salto da Mulher, Sacre II e Quatro Cachoeiras) receberam expedições experimentais para experienciar esta prática de turismo. As comunidades e os turistas estavam ansiosos, uma vez que a pandemia adiou em dois anos o encontro. As expedições fazem parte de um projeto idealizado pelas comunidades junto às associações Waymaré, Halitinã e Rio Formoso em parceria com a OPAN, a The Nature Conservancy (TNC) e a Garupa. Foram estabelecidos dois roteiros para dois grupos de visitantes compostos, cada um, por 12 pessoas vindas de diversos estados brasileiros, das regiões centro-oeste, sudeste, sul e nordeste.
Algumas aldeias já lidam com o turismo há anos, recebendo principalmente pessoas das cidades mais próximas, como Tangará da Serra, Campo Novo do Parecis e Sapezal. Os turistas locais buscam as belezas naturais, porém, em linhas gerais, não se atentam à cultura indígena. A cachoeira do Rio Formoso, com uma queda de quase 40 metros, é um dos atrativos mais procurados. Apesar da experiência em receber não indígenas, o contato com este novo perfil de visitante, interessado em conhecer histórias e costumes a partir de uma presença mais respeitosa com as pessoas e o ambiente, suscitou reflexões interessantes dentro da comunidade. “É a primeira vez que a gente recebe turistas de verdade”, exclamou uma das moradoras após algumas horas de interação.
O turismo de base comunitária prevê a proteção do meio ambiente e a melhoria de vida das pessoas do lugar, afinal é uma prática que visa a valorização e promoção da sociodiversidade e biodiversidade. Aliás, sob a perspectiva Haliti, elementos da natureza e da cultura são indissociáveis, portanto eco e etnoturismo também o são. “Ficamos muito satisfeitos por receber turistas de várias partes do Brasil. É importante que eles conheçam a nossa realidade”, comentou Alex Onaezokemae, jovem liderança indígena da aldeia Quatro Cachoeiras.
Muito mais que uma moradia
Os visitantes ficaram hospedados em hatis, moradias tradicionais erguidas com aroeira branca e cobertas por palhas de guariroba. Possuem duas portas em lados opostos, uma apontada para o leste e a outra para o oeste, respectivamente nascer e pôr do sol. São baixas para que o visitante, ao entrar, se curve em sinal de respeito ao anfitrião. Da porta no sentido leste a estrutura se ergue em curva ascendente, que representa a infância e adolescência. Quando chega ao ápice da altura permanece em linha reta em referência à vida adulta, até finalmente começar a curva decrescente que finda na porta no sentido do sol poente, em alusão à velhice e a morte. Há uma haste central de sustentação, ao lado da qual são feitas oferendas. Também reservam um ponto específico para o fogo, que serve para cozinhar, aquecer e afastar insetos.
Quando os turistas se dão conta que as moradias tradicionais são muito mais que meros abrigos, cria-se outra relação com o espaço. O cacique da aldeia Salto da Mulher, Pedro Paulo Okezokemae, fez arregalar alguns olhos quando apontou o piso de terra batida na parte central de uma hati, onde se via marcações retangulares. “Ali estão enterrados três pessoas. Quando uma família perde um ente querido, enterra na própria hati. É uma maneira de ter eles por perto. Mesmo que a gente não consiga ver, acreditamos que seus espíritos estão aqui”, explicou.
Na aldeia Quatro Cachoeiras, um dos anciões mais respeitados do povo Haliti, o cacique Narciso Kazaizase, hospedou os visitantes em uma hati cujas palhas recém colhidas ainda conservavam o frescor aromático da seiva. A nova habitação será o futuro lar do cacique e de sua esposa, Dona Inês, porém, em um gesto de gentileza, deixaram que os imuti (não indígenas) a inaugurassem. “Um lugar importante onde a família reside, organiza festas, oferendas, rituais e enterra seus mortos. Que presente da parte deles nos deixar armar nossas redes em suas hatis”, comentou o turista Christian Fehr, francês radicado há 20 anos em Salvador.
Chris, como prefere ser chamado, é comerciante aposentado e tem grande paixão pela fotografia. Ele foi o único visitante que acompanhou os dois roteiros e se impressionou com a materialização do provérbio africano que diz ser preciso uma aldeia inteira para educar uma criança. “Me marcou a facilidade de aproximação das crianças conosco e a maneira com que elas estão soltas brincando entre si, nadando no rio sem os pais por perto, mas sempre alguém orientando, se necessário. Comunidade é isso. Todo mundo ajuda todo mundo”, relatou.
A tradição Haliti e o mundo contemporâneo
Cada aldeia tem seu próprio atrativo natural. São impressionantes cachoeiras, como Salto da Mulher e Quatro Cachoeiras, nas respectivas aldeias homônimas, e Salto Belo, na aldeia Sacre II, onde os turistas percorrem uma trilha que passa por trás da volumosa cortina d’água formada pela queda de 45 metros. Os roteiros ainda contam com banhos em rios de águas cristalinas. Cenários deslumbrantes em uma das áreas com maior diversidade de paisagens do mundo, em terras situadas entre a Amazônia, o Cerrado e as nascentes do Pantanal. Em um território que ultrapassa 1,1 milhão de hectares, vivem cerca de 3 mil indígenas em mais de 90 aldeias. Os visitantes puderam conhecer uma pequena amostra deste universo, o suficiente para compreender a pluralidade dentro de um mesmo povo. “Os encontros nas aldeias foram muito diferentes entre si”, pontuou a psicanalista Maria Eduarda Lima, pernambucana que mora em São Paulo e experienciou pela primeira vez uma vivência em terra indígena.
A rotina Haliti é atravessada simultaneamente pela tradição e a contemporaneidade. Rituais, costumes e festas tradicionais convivem com modernos celulares e automóveis. Dois momentos ilustram bem essa dinâmica. Ao final da tarde, quando um pássaro cruzava a aldeia Rio Formoso, um turista perguntou o nome da ave. “A gente chama de Wi-Fi, porque ele sempre fica em cima da antena da internet”, respondeu uma criança. Já na aldeia Quatro Cachoeiras, após ouvir o relato de que uma enfermeira da cidade questionou a eficácia de remédios tradicionais, a anciã Dona Clarice não titubeou: “é que eles [não indígenas] ainda estão muito atrasados”.
A experiência possibilitou, neste sentido, a desconstrução de alguns estereótipos. “Motos, celulares e internet não fizeram com que eles perdessem a identidade. Percebi que os Haliti buscam a independência coletiva a partir da informação e da ação. Os jovens vão estudar para aprimorar conhecimentos e experiências e trazer de volta para a aldeia. É uma viagem que mudou a ideia que a gente acaba construindo acerca do que seria o indígena”, observou a psicóloga Rossana Mannarino, que esteve na segunda expedição.
Além de vivenciar o cotidiano das aldeias e desfrutar das belezas naturais da região, os visitantes também puderam adquirir artesanatos diversos (colares, pulseiras, cocares, brincos…). Grafismos à base de tinta de jenipapo também era uma opção, bem como se vestir com a indumentária Haliti, caracterizada pela forte presença de elementos plumários e cores quentes. “Pessoas interessadas em conhecer o nosso povo e também a nossa cultura. Elas puderam ver de perto que, apesar das críticas que recebemos, nós existimos e a nossa cultura também”, avaliou o cacique Pedro Paulo Okezokemae.
Uma experiência para o futuro
Ao fim da estadia em cada aldeia, todos se reuniam ao redor de uma fogueira para avaliar os dias naquela comunidade. Nestes momentos, todos compartilhavam suas observações, impressões e sugestões. Por se tratar de roteiros experimentais, essa troca de impressões entre indígenas e turistas é importante para ajudar a estruturar o turismo de base comunitária Haliti-Paresi. “Espero que a gente possa continuar mostrando nosso trabalho para a sociedade de fora. A gente quer se desenvolver economicamente dentro do nosso próprio território”, frisou Alex Onaezokemae.
A pedagoga Gilda Pompéia fez parte do segundo grupo de visitantes. Ela é professora de filosofia de um tradicional colégio paulista e costuma levar seus alunos para vivências em comunidades indígenas. Em Mato Grosso, já trabalha há alguns anos com o povo Xavante e viu uma possibilidade interessante de, valendo-se dessa prática de turismo, estender a iniciativa aos Haliti. “Quando um jovem indígena percebe que o turista valoriza sua cultura, ele também se sente mais motivado a valorizá-la. Eles ficam estimulados a valorizar os velhos, os sábios e as tradições. O turismo de base comunitária pode contribuir com a auto-estima desses povos. Esse é o maior ganho que as comunidades podem ter. O segundo ganho, obviamente, é o de receber um dinheiro para poder viver com dignidade”, comentou.
Esta foi a primeira experiência de turismo de base comunitária na maioria das aldeias. A expectativa é que a prática se torne uma realidade e possa contribuir com a qualidade de vida do povo e a conservação do território. Algumas lideranças já se articulam para viabilizar planos de visitação, uma exigência da Fundação Nacional do Índio (Funai) para conceder a anuência de visita para fins turísticos. Por fim, após afetuosas despedidas e promessas de retorno, percebia-se a criação de um vínculo entre indígenas e visitantes.
Neste sentido, o turismo de base comunitária em terras indígenas sugere um potencial humanizante. “A forma de olhar a vida mudou e mexeu muito comigo”, revelou Rosanna. “Foi surpreendente. Espero que outras pessoas possam participar das futuras expedições”, acrescentou Chris. O ponto negativo, segundo o cacique Narciso, é a saudade que fica após a partida. “Acho que eles gostaram da nossa aldeia e nós gostamos deles. Eles largaram tristeza com a gente quando foram embora, mas eles não podiam ficar mais”.