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Adriano Gambarini-OPAN

Projetos hidrelétricos colocam em risco povos indígenas e rios na bacia do Juruena

Relatório indica que territórios indígenas, espécies endêmicas e rios da região seriam afetados caso empreendimentos projetados saiam do papel.

Estudo encomendado pela Operação Amazônia Nativa (OPAN) revela que um amplo conjunto de usinas hidrelétricas projetadas para a bacia do rio Juruena ameaça a sociobiodiversidade local. De acordo com a publicação, 36 empreendimentos são de alto risco, sendo 27 de altíssimo risco, uma vez que se localizam a menos de cinco quilômetros de terras indígenas ou assentamentos humanos.

Intitulado “Avaliação dos riscos socioambientais do desenvolvimento hidrelétrico na bacia do rio Juruena, com foco na sub-bacia do rio Papagaio”, o relatório técnico foi elaborado pelos pesquisadores Pedro Bara e Sidney Tadeu Rodrigues, duas das principais referências no assunto, além da colaboração do também pesquisador David Harrison. Dentre os empreendimentos que oferecem maiores riscos socioambientais, destaca-se a Central Geradora Hidrelétrica (CGH) Rio dos Papagaios, projeto da empresa Mirage Energia, prevista para ser construída no alto curso do rio Papagaio. 

Caso saia do papel, será a primeira usina no rio Papagaio. “É uma área mais ou menos isolada, com barreiras naturais que impedem o acesso ao canal principal (do rio), então tem muitas espécies endêmicas. É um projeto pequeno, que gera pouca energia (até 5 megawatts), mas de altíssimo impacto. A relação benefício-custo é muito ruim”, avalia Pedro Bara. 

Tradicional pesca de mascreação praticada pelo povo Manoki no rio Papagaio – Adriano Gambarini/OPAN

O relatório analisou 167 projetos de hidrelétricas na região, entre iniciativas na fase de planejamento ou preparação (115) ou já em operação ou construção (52). Dos 115 em fase de planejamento ou preparação, foram selecionados 66 pela maior probabilidade de serem viabilizados em curto e médio prazo, no caso 32 Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs), 31 Centrais Geradoras Hidrelétricas (CGHs) e três Usinas Hidrelétricas [UHEs]).

Projetos de barramento e derivação na sub-bacia do rio Papagaio

Dos 27 projetos classificados como de altíssimo risco, 15 estão localizados na sub-bacia do rio Papagaio, que pertence  à bacia do Juruena. Desses, 11 são de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs), 3 de são CGHs e um de Usina Hidrelétrica (UHE). As CGHs se caracterizam por uma potência de até 5 megawatts (MW), enquanto as PCHs podem chegar até 30 MW e as UHEs operam com potência acima de 30 MW.

A sub-bacia do Rio Papagaio se estende em uma área de transição entre o cerrado do planalto central e a floresta da planície amazônica, região com declives acentuados. A localização geográfica implica em rios com corredeiras e cachoeiras de pequeno e grande porte. A área é considerada de grande importância para a biodiversidade. De acordo com a Avaliação Ambiental Integrada da bacia do rio Juruena, feita pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), em 2010, o único corredor de vegetação nativa remanescente entre as duas maiores manchas de Cerrado existentes na região está localizado ao longo do Rio Papagaio, uma área vital para garantir a conservação de espécies.

Manoel Kanunxi, do povo Manoki, com peixe pescado no rio Papagaio – Thiago Foresti/OPAN

Neste sentido, a derivação (processo de desvio do leito natural de um rio) e o barramento (processo de edificação de barragem) são as duas principais ameaças destacadas pelo relatório. Um exemplo é o da Central Geradora Hidrelétrica (CGHs) Vanderlei Reck, prevista para ser instalada no rio Sacre, que provocaria um Trecho de Fluxo ou Vazão Reduzida (TVR) de aproximadamente 1,7 quilômetros. Esta alteração, segundo o estudo, geraria impactos ao habitat de peixes que precisam subir corredeiras para procriar, como é o caso do pacu, uma vez que o modo de vida destas espécies depende do ecossistema caracterizado por pequenas cachoeiras.

A derivação também pode impactar outras espécies migratórias, uma vez que promove uma quebra da conectividade dos rios. Esse aspecto é ainda mais preocupante em um cenário de impacto cumulativo, gerado por uma sequência de trechos alterados em um mesmo leito. No rio Sacre, onde já existe a PCH Sacre 2, também foram inventariadas a PCH Sacre 3, a PCH Sacre 4, a PCH Sacre 5 e a CGH Vanderlei Reck. “O impacto cumulativo e sinérgico pode ser muito significativo no rio Sacre, considerando que se trata de uma sequência de projetos, alguns em áreas de endemismo de peixes”, alerta o estudo.

Já as hidrelétricas no rio Buriti caracterizam-se por serem projetos de barramento, cujos impactos podem provocar a perda de conectividade hídrica e a alteração do pulso natural do rio. Dos 12 projetos classificados como de alto risco socioambiental na sub-bacia do rio Papagaio, oito estão localizados no rio Buriti. “Não só pela quantidade de projetos, mas também pela qualidade de ‘projetos de barramento’, cuja localização se caracteriza por sua proximidade a territórios indígenas, em áreas bem conservadas e de relevante importância biológica”, destaca o relatório.

Construção de PCH no rio Buriti – Guilherme Ruffing/OPAN

Para se fazer a avaliação do risco socioambiental, o estudo levou em consideração critérios pontuais e espaciais. Os pontuais dizem respeito à distância de áreas de interesse socioambiental, como territórios indígenas, unidades de conservação e assentamentos humanos. E os espaciais se referem ao estado de conservação da vegetação natural da microbacia onde o projeto se localiza.

Setor privado e os empreendimentos menores

De acordo com o relatório, o Estado é responsável por planejar e preparar os empreendimentos maiores, no caso as UHEs, uma vez que não há empresas interessadas nestes investimentos. Já a iniciativa privada concentra seus esforços nos projetos menores. “O número de PCHs e CGHs aumenta bastante a cada inventário. E como vão criando cada vez mais projetos, o impacto cumulativo só aumenta”, alerta Pedro Bara.

Neste sentido, o pesquisador destaca que o setor privado é responsável tanto pela elaboração de inventários quanto pela preparação dos projetos, resultando na multiplicação desenfreada de empreendimentos. “Foi feito um inventário em 2007 e tinha pouco mais de cem projetos, hoje são mais de 170. Já eram muitos e, 15 anos depois, nenhum deles saiu. O número só cresce, mesmo que os projetos não tenham ido para frente. Não há revisões. Esse processo de inclusão contínua me lembra a expressão ‘sempre cabe mais um’. Muitas vezes o ente privado faz um novo inventário para ter mais projetos no rio que ele tem interesse”, detalha Bara.

Manoel Kanunxi diante da PCH Bocaiúva – Foto Guilherme Ruffing/OPAN

São os casos dos rios Sacre e Buriti, que fazem parte da sub-bacia do Rio Papagaio. Eles são alvos de 12 dos 15 empreendimentos de alto risco em fase de planejamento ou preparação naquela região. Vale ressaltar que em cada um desses rios já existe um projeto em operação. “São dois rios cujo desenvolvimento hidrelétrico se revelou como de alto risco socioambiental”, ressalta o documento.

Setor público e os empreendimentos maiores

Vale ressaltar a presença da Usina Hidrelétrica (UHE) Foz do Sacre entre os projetos de alto risco no rio Papagaio, cuja dimensão do reservatório poderia afetar outros projetos inventariados para o mesmo rio. Todavia, considerando o seu porte arquitetônico, o documento recomenda um estudo específico acerca desta usina.

E também inclui sugestões de encaminhamentos ao setor público, além de questionar a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), instituição pública vinculada ao Ministério de Minas e Energia, que figura como empreendedora de dois projetos de impacto elevado na sub-bacia do Rio Papagaio, no caso a UHE Salto Utiariti (dentro de território indígena) e a UHE Foz do Buriti (muito próximo de TI). 

“Estes projetos não deveriam fazer parte do escopo de uma empresa pública, pois desafiam dispositivos legais, de caráter constitucional, além de acordos internacionais, já que não teriam sido objeto de uma consulta livre, prévia e informada junto aos povos que seriam impactados. São dezenas de milhões de reais investidos por uma empresa pública que só serão ressarcidos se os projetos lograrem êxito em um leilão. Caso contrário, todo o dinheiro investido poderá ser perdido”, adverte o relatório.

O documento ainda questiona o duplo papel exercido pela EPE, uma vez que atua simultaneamente como empreendedora e instituição qualificadora dos projetos-candidatos a participar dos leilões. “Parece haver um claro potencial de conflito de interesse no desempenho de ambas as funções. Recomenda-se que a EPE reflita sobre a necessidade de atuar como empreendedora, em uma estratégia de risco institucional e financeiro, de caráter público, ao assumir um papel que faz muito mais sentido que seja desempenhado pelo setor privado”, conclui.