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Julgamento do marco temporal adiado mais uma vez

Após o voto de Alexandre de Moraes, André Mendonça pede vistas do caso de repercussão geral sobre a demarcação de terras indígenas. Povos continuam mobilizados em luta por seus direitos constitucionais.

Por Dafne Spolti/OPAN

“Não tem como sair feliz com o que aconteceu hoje. Em alguma medida, foi bom que ele [Alexandre de Moraes] rechaçou o marco temporal, mas continuamos sem resposta e saímos daqui como sujeitos de segunda classe. Até quando? Foi isso que a constituinte de 88 quis? O direito originário foi dado em 1988 por completo. Queremos esse direito inteiro e não pela metade. Percorremos quilômetros de distância para ouvir que eles precisam de mais tempo. Voltamos para casa sem resposta”, disse o advogado Maurício Terena, coordenador jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), durante avaliação feita na noite desta quarta-feira (7), pouco depois do encerramento da sessão do julgamento. 

Contrariando a expectativa dos povos indígenas do Brasil, que estão mobilizados em todo o país, mais uma vez o julgamento da tese do marco temporal foi suspenso no Supremo Tribunal Federal. Já com voto do ministro Edson Fachin, proferido em 2021, a sessão contou com a votação de Alexandre de Moraes, mas foi interrompida pelo pedido de vistas de André Mendonça. Em até 90 dias, porém, o julgamento deverá entrar em pauta novamente. O recurso extraordinário 1017365 envolve uma reivindicação territorial do povo Xokleng, no estado de Santa Catarina, e é definido como caso de repercussão geral, passando a ter efeito sobre a demarcação de outras terras indígenas do país.

Em seu voto, Alexandre de Moraes acompanhou o posicionamento de Edson Fachin, se colocando contrário à tese do marco temporal mas, em busca de atender às diferentes partes diante das disputas territoriais, Moraes acrescentou ao voto outros dois pontos. Um sobre as indenizações prévias e integrais a ocupantes de boa-fé; outro que seja oferecido aos indígenas a possibilidade de ocuparem uma outra terra: “Sendo contrário ao interesse público a desconstituição da situação consolidada, e buscando a paz social, a União poderá realizar a compensação às comunidades indígenas, concedendo-lhes terras equivalentes às tradicionalmente ocupadas, desde que haja expressa concordância”, apresentou sobre esse segundo ponto.

O ministro Edson Fachin reconheceu os aspectos de concordância apresentados por Moraes, mas destacou seu posicionamento sobre as novas proposições: “Entendo que nos pontos divergentes há uma dissonância substancial da posição que defendi no meu voto”.

Luís Roberto Barroso se manifestou favorável às falas de Moraes e ao voto do ministro Fachin afastando a tese do marco temporal e fez ponderações sobre o caso em votação, esclarecendo que o caso em questão não se tratava de situação com ocupação de posseiros ou agricultores, exemplos utilizados por Moraes em seu voto, mas sim de uma fundação de amparo tecnológico e de uma reserva ambiental. “Acho que nós temos que aprofundar nesse debate para saber como respeitar os direitos de um sem violar de outros mas, nesse caso específico, não me parece estar em jogo essa situação de termos ocupantes de boa-fé”, disse, destacando que o julgamento se trata de uma das questões de direito fundamental das mais importantes sob a apreciação da Corte.

Tese inconstitucional

Raquel Dodge durante debate promovido pela Apib, em Brasília. Foto: Kamikia Kisedje/Apib

Um dos argumentos utilizados pelo ministro Alexandre de Moraes em seu voto foi a “segurança jurídica”, apresentada como argumento também por quem defende a tese. A questão é criticada pelo movimento indígena,  que não visualiza nenhum aprimoramento nesse sentido com a aprovação da tese. “Segurança jurídica para nós, povos indígenas, é cumprir a Constituição, é demarcar todas as terras indígenas, reconhecer esse direito fundamental. É cumprir os tratados internacionais de direitos humanos dos povos indígenas. O que estão discutindo traz uma insegurança jurídica para nós”, disse o advogado Ivo Macuxi, durante atividade do acampamento em Brasília realizado na manhã desta quarta-feira (7) para aprofundar as discussões sobre a tese do marco temporal. Na ocasião, ele destacou também que as terras deveriam já ter sido todas demarcadas em até cinco anos após a promulgação da Carta Magna.

No evento, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, do Ministério Público Federal, explicou também o histórico de reconhecimento do direito originário à terra aos povos indígenas desde o século XIX e que passou a compor todos os textos constitucionais. “Até 1934 várias leis confirmaram o indigenato, o direito dos índios à própria terra. A partir de 1934 a Constituição incluiu o direito à terra no texto da Constituição, e isso foi incluído na Constituição de 1946, na constituição de 1967 e na Constituição de 1988. Não há em nenhuma dessas constituições a exigência de marco temporal e muito menos a exigência de prova de posse indígena sobre a terra”, disse ela. A procuradora se manifestou contrária à tese do marco temporal por considerá-la tanto inconstitucional, quanto antidemocrática. “É antidemocrático porque sem a terra os povos indígenas perdem sua cultura, sua organização social, seus usos costumes e tradições e isso tudo é assegurado na Constituição Federal de 1988”, concluiu a jurista.

Mobilização internacional

Em viagem para Bonn, delegação indígena brasileira se manifesta contra o marco temporal. Foto: Andreia Fanzeres/OPAN

As mobilizações contra o marco temporal estão ocorrendo em todo o Brasil e até fora dele. Representantes de diversas regiões e organizações, se manifestaram sobre a tese esta semana em Bonn, na Alemanha, durante a Conferência do Órgão Subsidiário de Assessoramento Científico e Tecnológico (SBSTA) da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC). Não só um direito indígena, a garantia constitucional a demarcação de terras é importante para a manutenção das chuvas e das dinâmicas ecossistêmicas fundamentais para a vida de todos.

“Com o marco temporal e o PL2903, como o Brasil vai cumprir com a sua meta de redução de emissões, a NDC? Tudo isso tem relação direta com o Balanço Global, que muito se discute aqui na Convenção do Clima. Como poderemos continuar protegendo 80% das florestas mundialmente se não há respeito aos direitos dos povos indígenas?”, disse a Sineia Wapichana, do Conselho Indígena de Roraima e coordenadora do Comitê Indígena de Mudanças Climáticas, em uma coletiva de imprensa realizada ontem (6), em Bonn. “Este é um momento muito especial e difícil para o Brasil, sobretudo para as mulheres e crianças indígenas. Para que os povos indígenas possam contribuir com o equilíbrio climático, temos que ver nossas terras demarcadas e fazer valer nossos direitos garantidos pela Constituição”, concluiu ela.

Saiba mais sobre a tese do marco temporal:

Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib)

O marco temporal entre o STF e o Congresso  – entrevista com Juliana de Paula Batista, do Instituto Socioambiental, no podcast Café da Manhã