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Gilmar Mendes quer negociar cláusula pétrea da Constituição

No jogo de força entre os Poderes da República, ministro do STF abre conciliação sobre os direitos territoriais dos povos indígenas. Durante o 20º Acampamento Terra Livre, juristas criticam a decisão.

Plenária do ATL. Foto: Dafne Spolti/OPAN

Advogados indígenas, indigenistas, a presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e representantes de diferentes instâncias do Poder Judiciário apresentaram esta semana no 20º Acampamento Terra Livre (ATL) a decisão do ministro Gilmar Mendes em abrir uma conciliação sobre as ações envolvendo a lei 14701, de 2023, conhecida como lei do marco temporal. Em unanimidade, apontaram que não cabe negociação dada sua inconstitucionalidade e que o encaminhamento abre possibilidade para retrocessos sobre os direitos territoriais dos povos indígenas.

Em sua decisão, o ministro justifica a necessidade de maior segurança jurídica pelo aparente conflito entre as possíveis interpretações da lei. Kari Guajajara, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), questiona: “Que segurança jurídica é essa que o Gilmar Mendes fala na decisão dele se ele não suspendeu os efeitos da lei? Que segurança jurídica é essa que o Gilmar Mendes fala na decisão dele se Nega Pataxó tombou nesse processo?”.

Ações em análise pelo ministro Gilmar Mendes

Ação Direta de Constitucionalidade 87 – contrária aos direitos indígenas, busca a constitucionalidade dos vetos da Presidência da República à lei 14701.

Ações Diretas de Inconstitucionalidade 7582, 7583 e 7586 – favoráveis aos direitos indígenas, movidas por partidos de centro-esquerda e a APIB.

Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 86 – desfavorável aos povos indígenas, pede a regulamentação do que configura “relevante interesse público da União” nos processos de demarcação, uso e gestão das terras indígenas.

“O texto constitucional de 1988 está sendo descaracterizado, o direito originário dos povos indígenas, o usufruto exclusivo de nossas terras”, avalia Maurício Terena, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).

Joenia Wapichana, presidente da Funai, contou o histórico da tese do marco temporal, utilizado como argumento à época da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em 2009, mas que ali mesmo já tinha sido dissolvido. “Dentro do relatório derrubaram o próprio marco temporal porque não tem qualquer consistência em dizer que os povos indígenas têm seus direitos constitucionais como direitos originários, o princípio da imprescritibilidade, da indisponibilidade, o direito e o dever do Estado de demarcar e proteger as terras indígenas, e, por outro lado, abrir uma brecha para questionar um direito territorial com uma tese do marco temporal”.

Joenia Wapichan. Foto: Dafne Spolti/OPAN

A tese ressurgiu, então, em momentos posteriores, como forma de desconfigurar o direito territorial dos indígenas, que é reconhecido como anterior ao próprio surgimento do Estado brasileiro. Ano passado a tese foi rejeitada no SFT, e, contrariando a decisão da Corte, logo na sequência foi incorporada na lei 14701 pelo Congresso Nacional. “Como a gente tem visto é uma crise entre o Poder Judiciário e o Poder Legislativo que vem sendo gestada, causada pela bancada ruralista. Eles estão o tempo todo tentando gestar uma crise com o Supremo Tribunal Federal”, afirma Juliana de Paula Batista, do Instituto Socioambiental (ISA).

Kari Guajajara, da Coiab, avalia também o papel do Poder Executivo nesse processo de fragilização. “Muito me estranha que há alguns dias o presidente deste país fez uma fala extremamente problemática – quando assinou a demarcação de somente duas terras indígenas –, uma afirmação que descaracterizava o artigo 231 da Constituição Federal e reforçava o marco temporal de ocupação e, não estranhamente, depois do Executivo se pronunciar nós temos o Judiciário se manifestando no mesmo sentido”.

Kari Guajajara. Foto: Dafne Spolti/OPAN

Maurício Terena, da APIB, destaca que além do marco temporal os tantos outros artigos da lei 14701 modificam os direitos constitucionais dos povos indígenas. “Dentro dessa lei querem liberar grandes empreendimentos econômicos dentro dos nossos territórios, querem flexibilizar a consulta livre, prévia e informada, que é um direito garantido nosso”. O advogado Aluísio Azanha, do Centro de Trabalho Indigenista (CTI), avalia que a decisão do ministro Gilmar Mendes abre uma possibilidade de negociação para passar esses empreendimentos que visam a expropriação dos territórios indígenas.

A procuradora da 6ª Câmara do MPF, Eliane Torelli, explicou também que com a lei 14701 a tramitação dos processos de demarcação obedece a um rito próprio e diferente do 1775/1996 como tem sido até hoje, o que que causaria a retroação dos procedimentos demarcatórios para o início do decurso.

Conciliação impossível

Diante da decisão do ministro Gilmar Mendes, o procurador da República Felício Pontes, do Ministério Público Federal (MPF) em Brasília (DF), relatou o seu estranhamento com a decisão, também os relacionando aos interesses de madeireiros, latifundiários, empresas de mineração e de energia sobre as terras. “O que eu fico a me perguntar aqui é como conciliar esses direitos. Como conciliar direitos fundamentais. Como conciliar o direito ao território, que é um direito fundamental dos povos indígenas”, questiona.

Rafael Modesto, advogado do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) destacou que cláusula pétrea não é passível de conciliação. “É impossível negociar direito inalienável, indisponível e imprescritível, conhecido pelo Supremo como cláusula pétrea”, afirma.

Apesar da forte ameaça, os presentes defenderam que a lei pode ser revista com a pressão da sociedade. “A gente tem todas as possibilidades e argumento jurídico”, disse Joenia Wapichana, destacando a coragem, a resistência e a persistência dos povos indígenas. “A tese do marco temporal é uma tese política e só se derruba tese política com força política. É a força do movimento indígena que vai derrubar essa tese”, concluiu Kari Guajajara.