OPAN

A atuação das mulheres indigenistas para a igualdade de gênero

Com o trabalho das mulheres na OPAN, as dinâmicas de ações e a leitura das relações de gênero de cada povo vêm sendo transformada

O indigenismo feito pela Operação Amazônia Nativa (OPAN) consiste na atuação em prol da defesa dos direitos dos povos indígenas, realizando intervenções com o objetivo de apoiar os povos na garantia e proteção de seus direitos territoriais, de saúde, educação, cultura, soberania alimentar e autonomia. Ao longo dos anos, a instituição fortaleceu a participação das mulheres em suas equipes. “Antigamente as ações realizadas pelas mulheres indígenas não eram visibilizadas, a entrada das mulheres indigenistas nesse mundo foi mudando o cenário, modificando a maneira de interagir e fazer as coisas”, explica Cristabell López, antropóloga e indigenista da OPAN. 

As mudanças, a partir da atuação das mulheres, reverberam não somente nas relações de trabalho, mas também na intervenção indigenista em campo e na leitura das dinâmicas das relações de gênero de cada povo. O projeto Raízes do Purus, realizado pela OPAN e patrocinado pela Petrobras e pelo Governo Federal, tem fortalecido a presença e o papel das mulheres indigenistas, especialmente na atuação direcionada às mulheres indígenas e suas especificidades. A iniciativa atua com povos indígenas do sul e sudoeste do Amazonas desde 2013, apoiando a gestão e proteção territorial de seis terras indígenas.

“A partir desse lugar de acolhimento, as mulheres indigenistas contribuem para criar estratégias políticas internas e, através do projeto, fomentar  isso para que as mulheres indígenas possam, se quiserem, protagonizar questões de seus interesses”, reflete Tainara Proença, ecóloga e indigenista da OPAN. Cristabell e Tainara atuam no Raízes do Purus e vêm contribuindo para a construção de uma abordagem de equidade de gênero no âmbito do projeto.

O projeto Raízes do Purus conversou com as duas indigenistas para conhecer suas trajetórias e o processo de reflexão sobre a atuação direcionada as mulheres indígenas. Confira a seguir.

Tainara Proença é natural de São Paulo (SP) e graduada em Ecologia pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Desde 2020 reside em Lábrea (AM), trabalhando especialmente com as mulheres indígenas do povo Paumari. Foto: Marina Rabello/OPAN

Conte um pouco sobre como é o trabalho de uma mulher indigenista, especialmente esse trabalho que você desenvolve com as mulheres?

É um desafio não só como mulher, mas para qualquer pessoa que não é do norte. Então sair do sudeste e vir morar em uma região que eu não estou acostumada é um impacto. Há muito machismo, principalmente nos aspectos de acesso, de espaço de fala, de legitimidade. Mas quando cheguei aqui, já tinha me preparado e pude também contar com toda a equipe para me acolher nesse movimento, porque não dá para fazer sozinha. Os elementos sociais são muito densos, complexos e ao mesmo tempo bonitos, e são vidas de pessoas que têm que ser levadas muito coletivamente, entendendo que é um processo muito lento. O trabalho que é feito aqui é um trabalho que eu respeito muito. Esse trabalho não é só um projeto, a OPAN acompanha a vida de um povo nas suas profundezas, nas suas alegrias, nos seus conflitos, apoiando suas lutas e isso demanda uma dedicação pessoal gigante. 

Me conta um pouco como foi o início desse trabalho com as mulheres Paumari?

Foi se construindo uma base nesses 15 anos [de atuação da OPAN e do projeto Raízes do Purus junto ao povo Paumari] que foram essenciais para hoje poder criar um movimento que, aos poucos, abre mais espaço para as mulheres. No início elas [as mulheres indígenas do povo Paumari] não participavam do manejo, por exemplo. Aí começaram a partir da cozinha, depois na vigilância, limpeza do peixe e também no monitoramento, então elas estão ocupando espaços importantes dentro do manejo, mas não são espaços de protagonismo delas. Ali elas não decidem política e estrategicamente e sim a partir das qualificações técnicas que elas vão adquirindo e do espaço que o povo abre. Inclusive na própria criação da Associação Indígena do Povo das Águas (Aipa) desde o início levantaram a importância de ter mulheres nos cargos. E aí foi se construindo um cenário em que as mulheres foram conseguindo mais legitimidade nas suas falas, maior protagonismo e, principalmente, poder para fazer articulação política. A gente como indigenista realiza algumas intervenções que possibilitam que elas possam ocupar outros espaços. É esse lugar que elas me colocam e que eu me vejo, de criar brechas dentro das relações delas para que elas possam ocupar outros espaços de protagonismo. A presença feminina na equipe da OPAN traz essa percepção que elas podem ocupar espaços e os homens também aceitarem. O meu trabalho é de olhar as sutilezas, acolher essas emoções e ajudá-las a se posicionar ali perante o povo. Na próxima edição do projeto Raízes do Purus estamos construindo uma pauta direcionada especificamente para as mulheres. 

É bonito perceber o quão sutil é o trabalho indigenista. 

É uma escuta atenta e a percepção das emoções, das relações. Essa escuta, que nem sempre é verbalizada, mas percebida num gesto, é também o lugar do acolhimento. Eu sinto que a mulher indigenista precisa acolher. Em todos os povos em que estou junto, trabalhando, quando a gente entra com as mulheres é no lugar de acolhimento. O movimento de abrir o coração após o vínculo é muito rápido, das fragilidades, dos sonhos. A partir desse lugar de acolhimento ajudá-las a criar estratégias políticas internas e através do projeto fomentar isso para que elas comecem, se quiserem, protagonizar algumas questões.

O que você percebe que tem em comum entre as mulheres indígenas, especialmente as do povo Paumari, e as mulheres não indígenas?

Eu acho que a capacidade de olhar para as suas emoções, seu choro, suas alegrias, suas tristezas, de olhar e acolher. A preocupação que elas têm com os filhos é algo muito bonito e no universo não indígena também é assim. A capacidade de cuidar como um todo. Eu acho que isso é o que une, o desejo de cuidar, de que todos estejam felizes, vontade de oferecer alimentos para todos. Elas têm uma preocupação gigante em dar essa fartura para todo mundo. 

O que é ser uma mulher indigenista?

É uma disponibilidade para tudo, você tem que estar disponível. Disponível a mudanças de rotina, para estar vivendo o que tiver que viver. Fisicamente tem que estar disponível e emocionalmente também, é o exercício de respirar fundo, respirar dez vezes mais por conta do machismo.

Cristabell López é natural de Cauca, na Colômbia, graduada em Antropologia pela Universidade de Cauca, mestre e doutora em Estudos Comparados Sobre as Américas pela Universidade de Brasília (UnB). Desde 2022 reside em Carauari (AM), trabalhando especialmente com as mulheres indígenas dos povos Deni e Kanamari. Foto: Tudhiarini Deni

Você já atuou em outras organizações indigenistas na Colômbia e imagino que tenha apontamentos em relação às diferenças nos modos de trabalho. Qual a leitura que você faz do trabalho realizado pela OPAN?

O que faz diferença no trabalho da OPAN é essa maneira didática de poder contribuir com os processos de uma maneira muito simples de entender, muito simples de falar, e de um jeito muito amoroso, muito da amizade mesmo. Eu vejo que são laços de muita proximidade. Eu vejo que se busca falar as coisas da maneira mais simples possível, para que todo mundo possa entender e todo mundo possa avançar. E eu acho isso bem importante, porque também estamos falando de povos de recente contato e que tem diferentes tipos de comunicação. Vejo que a OPAN tem se aproximado com a preocupação de que as coisas sejam feitas da melhor maneira para eles e de acordo com os interesses deles, não vamos fazer nada que não seja o que eles querem desenvolver, avançar, nos propósitos deles. Então a gente vem para isso, para apoiar as iniciativas e anseios deles. 

Como é o dia a dia do trabalho que você faz junto às mulheres Deni e Kanamari? 

O mais importante é essa construção de laços de confiança, elas poderem ter uma proximidade e falar o que está acontecendo, o que querem, essa abertura delas para com a instituição está dada e isso é muito importante, porque se não existe uma relação de confiança, a gente não consegue avançar nos processos. A minha colega que esteve antes, a Tarsila, foi quem me abriu as portas, que me apresentou às mulheres. Desde o início eu tive uma acolhida muito grande por parte delas. Nas aldeias que eu vou e nas atividades que a gente tem, eu compartilho o máximo de tempo com elas, para fortalecer esses laços, pois é isso que brinda a possibilidade delas conseguirem te falar “olha, a gente quer fazer isso”, enfim, poder dar esse apoio.

O que você percebe que as mulheres não indígenas e as mulheres indígenas têm em comum?

Ao longo dos séculos a gente não tem tido as mesmas oportunidades que os homens, de falas, de espaços participativos e eu acho que isso existe nos dois mundos. E elas [as mulheres indígenas] também não tem tido esses espaços abertos e eu falo porque você escuta as mulheres dos movimentos indígenas, tanto no Brasil, quanto na Colômbia e na América Latina, falar disso, dessa abertura de espaços, onde elas possam ser ouvidas e ocupar esses espaços que os homens ocupam e que elas até hoje não conseguiram, algumas sim, outras não. Nesse sentido, é uma mesma luta, essa luta de conseguir chegar nos espaços que foram vedados pra gente. É criar consciência tanto no mundo indígena, quanto no mundo não indígena, da importância da mulher, que tem tido um papel fundamental ao longo da história, nos dois mundos. A gente não só cria vida, a gente contribui com o território, com a educação, com todo o processo formativo como humanidade. 

Tem algum momento marcante da sua atuação enquanto indigenista, algo que te impactou e que marcou o seu trabalho que você possa compartilhar?

A ida com as mulheres indígenas para Brasília [para a III Marcha das Mulheres Indígenas] foi marcante. Primeiro, eram mulheres que nunca haviam saído de seus territórios. Compartilhar com elas os dias, de conhecer uma cidade grande, do espaço, absorvendo todo o conhecimento que podiam, escutando de forma muito atenta as falas das outras mulheres indígenas, escutando essas falas políticas que elas não conheciam também e de violência de gênero, tantas outras coisas que são temáticas que não tinham sido faladas para elas, que não se fala dentro dos territórios. Então foi toda uma descoberta de um universo que também é indígena, mas que está em outras esferas e que elas não haviam acessado. Então poder acompanhar isso foi uma experiência muito rica para mim, muito bonita e de muito aprendizado. 

O que é ser uma mulher indigenista?

Antes a presença de indigenistas homens predominava, então eles estavam acostumados a lidar entre homens e a entrada das mulheres nesse mundo foi mudando as coisas, a maneira deles também de interagir e fazer as coisas. E a motivação deles, no caso da OPAN, querer incorporar mulheres veio também desta demanda de que as mulheres indígenas se relacionam melhor com outras mulheres. Então isso foi fazendo a quantidade de mulheres ir crescendo dentro da instituição, criando espaço para interagir de uma maneira diferente. E em campo, realmente uma mulher indigenista que está indo para área tem que ter umas características bem particulares, que não se importa em passar longas jornadas, longas caminhadas. Tem que ser muito aventureira e intrépida, que são características normalmente atribuídas aos homens, mas que as mulheres também têm. Ir para área tem uma exigência alta, tanto de espírito, pois você tem que estar muito equilibrada para estar nesses mundos e vivenciar o aprendizado de uma maneira que se sinta bem. Acho que uma mulher indigenista é muito mais guerreira mesmo.