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Em meio à pandemia, internet torna-se essencial para o fortalecimento da cultura dos povos indígenas

O acesso à rede tem permitido que os indígenas intensifiquem sua presença em debates públicos, adotem novas formas de transmissão cultural, protejam a terra e qualifiquem o enfrentamento à covid-19.

Por Beatriz Drague Ramos/OPAN

A explosão de lives, podcasts, vídeos, fotografias e informativos com o protagonismo indígena foi destaque nas redes durante 2020, ano em que o Brasil foi atingido pela maior pandemia da história recente. A união de forças dos povos de diversos cantos do país no mundo virtual foi fundamental para a comunicação entre profissionais da saúde e indígenas localizados nos territórios mais distantes das cidades, além de estimular a participação política, fato retratado também em um aumento de 28% de candidaturas indígenas nas eleições municipais, segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). 

Exemplos do uso da internet como instrumento de manifestação e debates não faltaram. O já reconhecido Acampamento Terra Livre (ATL), organizado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), foi marcado pelo mosaico de paisagens que cada indígena trazia ao fundo de suas telas de computadores e celulares, conectados nas mais diferentes aldeias distribuídas pelo país, assim como o festival Juruena Vivo, organizado pela Rede Juruena Vivo. 

Festival Juruena Vivo online, em 2020. Foto: Reprodução Facebook Rede Juruena Vivo.

O espaço de trocas de ideias pelas redes também fez parte da vida de Typju Myky, de 23 anos. O jovem vive na TI Menkü, localizada no município de Brasnorte, região noroeste de MT. Em 2016, ele conheceu virtualmente a Rede Juruena Vivo e no ano seguinte passou a colaborar ativamente com o grupo, registrando imagens dos encontros. Nesse momento, o uso das redes começou a ter um sentido maior para Typju.

Ele conta que a troca de experiências o deixou cada vez mais consciente, sobretudo neste ano, em que participou de oficinas de comunicação e da realização do festival Juruena Vivo online. “As oficinas virtuais têm sido muito importantes para nós, comunicadores indígenas. Aprendemos sobre os meios de comunicação e essa troca de experiências nos deixou cada vez mais ativos na luta pelos nossos direitos. Hoje, temos dois pontos de acesso de internet instalados, um no centro da aldeia e outro na ponta, com velocidade de 5 MB, ou seja, um sinal é lento. É fundamental ter acesso na aldeia, algumas pessoas que não tinham internet agora conseguem falar com suas famílias, que moram distantes. Agentes de saúde e professores utilizam a internet para encaminhar seus trabalhos da aldeia, sem precisar sair para cidade.”

Jovens participam da oficina de comunicação feita pela Rede Juruena Vivo. Foto: Henrique Santian/Rede Juruena Vivo.

Correspondentes indígenas

A cobertura de eventos políticos e sociais feita por veículos de comunicação indígenas também têm tomado cada vez mais espaço dentro das redes sociais. Esse é o caso da Mídia Índia, lançada em 2017. A rede de comunicação descentralizada produz e difunde conteúdos e pautas inerentes à questão indigena no Brasil. Ao todo, são mais de 100 colaboradores espalhados pelo país, que defendem o uso da comunicação como ferramenta de luta. 

Jornalista formado pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), o indígena Erisvan Guajajara, da aldeia Lagoa Quieta, Terra Indígena Arariboia (MA), cursou a graduação com a meta de retornar seus conhecimentos acadêmicos à comunidade. “A partir daí fizemos um curso de comunicação audiovisual lá na minha aldeia, que se chamava Coisa de Índio Alma Brasileira. No projeto, capacitamos 12 jovens Guajajara para usar a comunicação como uma ferramenta de luta e decidimos ocupar os espaços e gravar a nossa cultura, nossas lutas de base e o trabalho que as organizações e as lideranças fazem na proteção territorial, para dar um pouco de visibilidade para o mundo”, conta o jovem de 30 anos que soma quase 60 mil seguidores na página do canal Mídia Índia, no Facebook.  

Erisvan junto a equipe de mídias digitais no V Festival Juruena Vivo, em 2018. Foto: Henrique Santian/Facebook Rede Juruena Vivo.

Erisvan ressalta a importância do veículo para o fortalecimento cultural de cada povo. “Hoje, nós pisamos nos territórios, porque alguém lá atrás lutou por ele e morreu. Essa luta que fazemos é para dar continuidade, pensando nas futuras gerações e na humanidade. Ela garante não só a vida dos povos indígenas, mas também a do planeta. E a Mídia índia tem sido essencial para mostrar esse protagonismo do trabalho de base nos territórios. Esse processo das redes está ajudando as comunidades, porque conseguimos resgatar muitas histórias. Essas histórias precisam estar nas escolas indígenas, para que eles possam crescer já sabendo da cultura dos povos indígenas.”

Internet entre os Paumari e Kayabi de Mato Grosso

A vivência nas Terras Indígenas Paumari do Lago Manissuã, Lago Paricá e do Lago Cuniuá, onde cerca de 300 pessoas residem, vem adquirindo novos contornos com a recente instalação de pontos de internet dentro das aldeias. Localizadas no município de Tapauá, na região sul do Amazonas, as TIs dos Paumari utilizavam exclusivamente o sistema de radiofonia desde 1990 e não tinham nem mesmo telefone público em suas aldeias. Com o avanço das tecnologias de informação e comunicação, e a articulação com novos parceiros até mesmo de outras regiões, a necessidade do uso das redes passou a ser cada vez maior. Este ano, a pandemia ampliou ainda mais esta necessidade.

Germano Paumari, coordenador financeiro da Associação Indígena do Povo das Águas (AIPA), explica como a internet vem auxiliando no enfrentamento à covid-19. “Sentimos muita falta de ter o acesso à internet quando há necessidade de remoção de pacientes. Por radiofonia, a comunicação não funciona. Se não fosse a internet, o enfermeiro estaria sem notícias para saber qual dos pacientes precisa ir para a cidade, ou qual já teve alta, por exemplo.” 

Crianças Paumari utilizando a internet na aldeia. Foto: Antônio Miranda de Andrade Neto/OPAN.

O indígena Paumari ainda conta que o ponto de internet via satélite também deve auxiliar no monitoramento dentro das aldeias. “Com relação à vigilância, por muitas vezes queríamos denunciar pessoas que estavam invadindo os territórios dos Paumari e não tínhamos como. A internet vai facilitar muito para entrar em contato com a Funai, ICMBio, Ibama e com a polícia ambiental”, aponta.

Nesse sentido, Germano reforça que as articulações com outras entidades serão beneficiadas pela tecnologia. “Uma ferramenta que nos auxilie no processo de buscar os direitos e mostrar as práticas culturais vai fortalecer bastante. A associação vai se articular com as entidades de apoio, vai ter um meio de comunicação mais rápido do que com a radiofonia. Na política indigena, é muito útil ter a internet para dialogar com outras associações”, comemora. 

A internet também é novidade nas aldeias do povo Kayabi de Mato Grosso. Antes, os indígenas utilizavam o sinal que abastecia as escolas da região. Com a pandemia e o aumento do tráfego de dados, a internet compartilhada não atendia mais, como relata Dineva Kayabi, da aldeia Tatuí. “Moram 484 pessoas na aldeia. A internet é da escola e durante a pandemia nós ficamos sem comunicação. Foi por meio da OPAN que conseguimos a instalação da internet rural.”

Dineva Kayabi utilizando a internet. Foto: Arquivo pessoal.

Dineva é professora, artesã e integra a Associação de Mulheres Apiaka Kayabi Munduruku (Akamu), fundada em 2011. A organização une mulheres indígenas que lutam por protagonismo e melhorias nas comunidades indígenas. 

A indígena Kayabi sempre participou das reuniões, mas com a chegada da pandemia a frequência dependia da internet, cada vez mais presente em seu cotidiano. “Quando a internet chegou, paramos de ficar saindo muito para a cidade, fazemos tudo lá na aldeia. Estamos trabalhando muito nas bases. Conseguimos nos mobilizar por meio dessa ferramenta. Eles falam para nós que não somos mais índios porque temos celular e usamos roupas, mas isso não tem nada a ver, vamos ser índios até morrer. O sangue do índio está no nosso corpo, nas nossas veias”.

Imagens: Henrique Santian/Rede Juruena Vivo; Antônio Miranda de Andrade Neto/OPAN; Agência Brasil; Instituto Socioambiental.

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