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Parceria de organizações no combate à pandemia entre os povos indígenas deixa legado de solidariedade em 2020

Ações da OPAN, com o apoio de diversas instituições, fortalecem prevenção e enfrentamento ao novo coronavírus. Em sete meses, cerca de 14 mil pessoas foram beneficiadas.

Por Beatriz Drague Ramos/OPAN

Neste ano, a distância, o isolamento social e o medo da contaminação pelo novo coronavírus contrastaram-se com longas viagens pelos rios amazônicos. Em barcos repletos de materiais de higiene, máscaras, álcool gel e até algumas cestas básicas, indigenistas e equipes de saúde viajaram – seguindo os protocolos aplicados aos profissionais da linha de frente do combate à covid-19 – para ajudar os povos a se protegerem da pandemia.

A subida do rio Tapauá, no município de Tapauá (AM), para chegar às aldeias do povo Banawa foi um desses deslocamentos. O trajeto de ida e volta, realizado em agosto, perdurou mais de oito dias. O período era um dos mais críticos da pandemia. Na época, o Brasil contabilizava 756 óbitos e 28.815 casos confirmados de covid-19 entre indígenas, segundo balanço da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), apurados pelo Comitê Nacional de Vida e Memória Indígena, de agosto.

“Saímos pela manhã e depois de três dias de viagem chegamos às aldeias. A ação ocorreu no rio Tapauá com o barco da Funai [Fundação Nacional do Índio], subimos o rio entregando materiais de higiene, máscaras, álcool e algumas cestas básicas. Fomos até a boca do rio Piranha e chegamos às aldeias do povo Banawa de voadeira, levando os materiais. A ação deve ter durado uns oito dias. Em setembro, fomos até o povo Paumari, levar doações. Passamos de comunidade em comunidade conversando sobre os métodos de prevenção à covid-19 e distribuindo máscaras, álcool e demais equipamentos para o combate à pandemia”, conta Diogo Henrique Giroto, indigenista da Operação Amazônia Nativa (OPAN) no Amazonas.

Ação no município de Tapauá (AM), nas aldeias do povo Banawa. Foto: Diogo Henrique Giroto/OPAN.

O acesso às terras indígenas, apenas por via fluvial ou aérea, logística necessária na região amazônica e em algumas cidades mato-grossenses, impôs desafios redobrados ao enfrentamento da doença. Sabendo disso, a OPAN se colocou à disposição dos profissionais de saúde, especialmente da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e do movimento indígena em busca de medidas urgentes para prevenir e enfrentar a disseminação do vírus nas aldeias.

A articulação envolveu, além dos Distritos Sanitários Especiais de Saúde Indígena (DSEIs), constante diálogo com a APIB, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e a Federação dos Povos Indígenas de Mato Grosso (Fepoimt), com as quais a OPAN apoiou a divulgação de informações e campanhas para enfrentamento à doença. Junto à Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), ao Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso (IFMT) e Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat), foram produzidas e entregues máscaras e insumos de proteção à covid-19.

De março a novembro, 34 Terras Indígenas foram atendidas nos estados de Mato Grosso e do Amazonas, somando mais de 7.710.000 hectares. Envolveram-se 29 organizações indígenas de base, sendo 13.756 pessoas diretamente beneficiadas. 

Com ajuda do projeto Asas da Emergência, do Greenpeace foram disponibilizados aviões, com isso, a OPAN conseguiu enviar doações às regiões do Alto e Médio Solimões, Alto e Médio Tapajós, Alto e Médio Purus e Alto Juruá. Além disso, um treinamento de testagem de covid-19 realizado em Lábrea (AM) capacitou dez Agentes Indígenas de Saúde (AIS) e também profissionais de saúde que atuam no DSEI Médio Rio Purus, entre enfermeiros, técnicos de enfermagem e técnicos de laboratório. 

“O que fica de aprendizado é a importância dessa rede de parceiros e de colaborações. A comunicação na Amazônia nunca foi fácil, nós trabalhamos em lugares longínquos, muitas terras indígenas são distantes das cidades, com difícil acesso à internet. Apesar de todas essas dificuldades, a comunicação sempre aconteceu. Existe um elo, uma rede de colaboração atuando nesses lugares”, destaca o indigenista Leonardo Pereira Kurikara, da OPAN. 

Em seu segundo voo para Lábrea (AM), o projeto Asas da Emergência transportou doações feitas pelo Greenpeace e pela organização Operação Amazônia Nativa (OPAN), dentre elas estão: máscaras cirúrgicas e de tecido, luvas cirúrgicas, termômetros, oxímetros, sabão, álcool em gel e material de pesca. Foto: Christian Braga/Greenpeace.

A partir das ações realizadas junto aos profissionais de saúde e demais parceiros, de março a novembro, foram doados no estado do Amazonas 60 kits de equipamentos para o atendimento primário aos pacientes. Os kits eram compostos por oxímetros, esfigmomanômetro e estetoscópio. 

Em Mato Grosso, 61 unidades de termômetros digitais infravermelhos chegaram aos Polos Base de Brasnorte, Marãiwatsédé, Juína, Cacoal e ao DSEI Cuiabá. Também no Polo Brasnorte, Cacoal, DSEI Cuiabá, na Terra Indígena Pirineus de Souza foram entregues 13 oxímetros. Os DSEIs Cuiabá, Xavante, Kayapó de Mato Grosso, as aldeias Umutina, Kawêrêtxikô, a TI Capoto/Jarina e Enawene Nawe receberam 330 litros de água sanitária

Entre os produtos de higiene, foram entregues mais de 600 unidades de sabão em barras e 1.400 litros de sabonete na aldeia Umutina e nos Polos Base de Rondonópolis, Marãiwatsédé, Ribeirão Cascalheira e Barra do Garça, em Mato Grosso.


Para além das doações, a OPAN se mobilizou para apoiar campanhas de arrecadação. Uma delas foi a A’uwe Tsari – SOS Xavante, realizada pela Federação dos Bancários do Centro-Norte (Fetec-CUT/CN), Federação dos Povos Indígenas do Mato Grosso (Fepoimt) e pelo Conselho Distrital de Saúde Indígena Xavante (Condisi Xavante). Inicialmente com o objetivo de captar R$ 250 mil para instalar unidades de atenção à saúde, prevenção e segurança alimentar visando atender ao povo Xavante, a campanha foi concluída com um total de R$ 4.178.225,45 entre doações em recursos, serviços, equipamentos e produtos. 

A indigenista da OPAN Tarsila Menezes, destaca, além da cooperação com os órgãos de saúde e parceiros de instituições públicas, o laço de confiança criado com os fornecedores dos produtos doados. “No início da pandemia, vários produtos de higiene e EPI [Equipamento de Proteção Individual] estavam em falta ou com preços exorbitantes. Foi um grande desafio mapear os lugares que vendiam. Por isso, é relevante falar sobre o nosso contato com os vendedores, que foram bem camaradas. Esse esforço solidário de cada um desses atores e instituições foi muito importante para todo o processo, desde o início da pandemia até o presente momento”.

Fortalecimento da segurança alimentar

Segurança alimentar entre os indígenas não é um tema que se resume ao acesso e disponibilidade de insumos. Os povos têm costumes ancestrais e a manutenção desses hábitos está intimamente ligada à saúde. Por isso, a OPAN, que colabora há décadas com as atividades de produção de roça, coleta e pesca para subsistência das populações, centrou mais esforços nas entregas de insumos que dependem de fornecimento externo, visando à diminuição dos deslocamentos dos indígenas para os centros urbanos. Para fomentar a produção das roças, foram doadas ferramentas de campo, além de combustível e materiais de pesca. 

Auxílio em insumos para apoio das roças Manoki – TI Irantxe. Foto: Tipuici Manoki.

Vanessa Apurinã, secretária executiva da Organização dos Povos Indígenas Apurinã e Jamamadi (OPIAJ), participa ativamente da arrecadação de recursos na luta contra a covid-19. Ela conta que houve muita preocupação nas aldeias por conta da pandemia e que foi importante o apoio externo para facilitar o distanciamento social. “Algumas aldeias não tem material de pesca, a doação desse instrumento foi uma boa forma de apoiar os indígenas”, disse ela, destacando ainda as doações de EPIs, álcool gel e máscaras voltadas aos polos base.

No mesmo sentido, o Tapayuna, Ropkrase Suyá conseguiu fortalecer as roças na aldeia Ngôtxire, localizada na região noroeste de Mato Grosso, por meio da aquisição de gasolina, material de construção, pregos, lona para fazer um acampamento e alimentação para isolar os anciãos. “Nós abrimos um acampamento bem longe do polo. Não estamos saindo para as cidades. Com a doação, conseguimos abrir uma roça e construir uma casa lá na aldeia”.

Pesca na aldeia Ngôtxire, do povo Tapayuna, em Mato Grosso. Foto: Ropkrase Suyá.

Nas aldeias próximas às cidades, onde há carência de caça e pesca por conta da antropização no entorno, foram distribuídas mais de 300 cestas básicas no Amazonas e no Mato Grosso, conforme as necessidades apontadas pelos movimentos indígenas. 

Ivar Busatto, coordenador-geral da OPAN, ressalta a alimentação saudável e a medicina tradicional como fatores essenciais no controle da disseminação da covid-19. “O que se viu em muitos locais é que não tem uma fartura de alimentos tradicionais, há falta de uma alimentação adequada e dificuldades de ir e vir para comprar. De modo geral, houve incentivo para eles buscarem a produção de alimentos saudáveis e um alerta de que as roças tradicionais são essenciais para a qualidade de vida. Além disso, nós vimos muitas respostas positivas à medicina tradicional, isso ajudou e muitas mortes foram evitadas, o que demonstra que essa medicina responde.”

Roça na aldeia Ngôtxire, localizada na região noroeste de Mato Grosso. Foto: Ropkrase Suyá.

Pandemia e preocupação continuam

Com 897 mortos e 42.540 mil indígenas com casos confirmados, mais da metade dos 305 povos do Brasil foram atingidos pela covid-19, segundo dados APIB, divulgados em 21 de dezembro. Apesar do alto número de pessoas infectadas, a pandemia ainda não tem data marcada para acabar. 

De acordo com o Plano Nacional de Vacinação contra a covid-19 apresentado oficialmente em dezembro pelo governo federal, os povos indígenas estão entre os grupos prioritários a receber a vacina. No entanto, apenas 410 mil indígenas serão atendidos na primeira fase da vacinação. Segundo o Ministério da Saúde, essa população se refere a indígenas com 18 anos ou mais atendidos pelo Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (Siasi/Sesai), em 27 de novembro de 2020. Na prática, os indígenas que vivem nas cidades vão precisar esperar mais tempo para receber as doses.

Entrega de álcool e água sanitária para atendimento dos povos Apiaká Kayabi e Munduruku. Doação feita ao Polo Base Juara em agosto. Foto: DSEI Kayapó de Mato Grosso.

O cacique Francisco Umanary, da terra indígena Camicuã, que já teve familiares contaminados pelo coronavírus, teme a segunda onda da doença que vem fazendo vítimas na cidade de Boca do Acre (AM) e assustando os indígenas da região. “Estamos muito preocupados com essa situação, essa segunda onda já vem mais agressiva. Em Boca do Acre todo dia morre uma pessoa por conta do vírus”.

Na visão de Ivar Busatto, o despreparo do governo federal e a pouca estrutura necessária para a encarar a situação colocou-se como um desafio aos profissionais indígenas e não indígenas de trabalhar em condições difíceis, agravadas pela exposição ao vírus. “Vimos que o governo não está preparado, demorou para atuar, chegou tarde em alguns locais, quando o pico da doença já tinha passado, por isso houve mais baixas em algumas áreas que podiam ter sido evitadas. Mas vimos em contrapartida o quanto os profissionais se dedicaram”. 

Apesar das dificuldades, Ivar evidencia os esforços também na comunicação exercida pelas organizações e movimentos sociais indígenas. “As organizações indígenas fizeram sua própria contagem, demonstrando a gravidade do problema e tomando iniciativas junto ao poder público para orientar solicitações de apoio. Na OPAN, formamos um grupo para somar esforços com quem já estava atuando nas áreas e com campanhas de informação, buscando a compreensão do fenômeno, a proteção comunitária e um apoio direto. As formações foram importantes para que o impacto fosse menor. Houve uma sensibilização para o problema”, aponta.

Nesta jornada, o imprescindível apoio de parceiros e o papel da OPAN na defesa e autonomia dos povos se intensificaram, como declara a indigenista Tarsila Menezes. “Ao longo do nosso trabalho, nos deparamos com vários relatos tristes dos indígenas e perdas de seus familiares por conta do contato com os não índios. Nos mobilizamos e estabelecemos contatos com vários parceiros e atores. Enquanto instituição que defende os direitos humanos, dos indígenas, à terra, à educação, à qualidade de vida, defender a saúde e um atendimento diferenciado, é um dever nosso.”

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