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Secretaria de Educação de MT impõe volta às aulas aos indígenas e define plano sem diálogo

Estudos não presenciais com sistema de apostilas encontram problemas de implementação. Estudantes e professores indígenas dizem que não foram ouvidos.

Por Beatriz Drague Ramos/OPAN

Aos 16 anos, o estudante Joelison Fernandes sonha cursar uma graduação de enfermagem. O jovem do povo Kayabi do rio dos Peixes é aluno da Escola Indígena de Educação Básica Juporijup, localizada a 50 quilômetros da cidade de Juara, em Mato Grosso. O desejo de fazer uma faculdade na área da saúde vem acompanhado da vontade de cuidar de seu povo e se reflete na ausência de casos de covid-19 dentro de sua aldeia. “Aqui na aldeia Tatuí não tem nenhum caso de coronavírus ainda. Estamos mantendo o controle de saída para a cidade, de isolamento social. Eu pretendo fazer vestibular, cursar enfermagem e voltar para a aldeia para cuidar do meu próprio povo.”

Mas para chegar até lá o caminho está ficando mais longo. Desde o início de agosto, Joelison tem aulas em sistema off-line e não presencial, sem carga-horária definida e sem a presença diária de professores. Agora, ele tenta aprender muitos conteúdos sozinho, lendo as apostilas impressas enviadas pela Secretaria Estadual de Educação (Seduc), disponíveis no site “aprendizagem conectada“. 

Mensalmente, Joelison vai a pé à escola, que fica próxima à aldeia Tatuí pegar as apostilas, onde é orientado pelos professores sobre as tarefas que deverão ser posteriormente corrigidas pelos docentes. “O formato não é muito bom. O material vem de acordo com a linguagem do branco e fica difícil fazer as atividades. Além disso, muitos professores não são formados. É tudo feito pelos não indígenas e também não encontro os professores toda semana”, reclama. 

Joelison ainda aponta que a volta às aulas veio acompanhada da falta de estrutura, uma vez que boa parte dos estudantes não têm acesso à internet e dependem do encontros mensais com os professores — situação diferente da vivida por parte dos estudantes não indígenas, que já retomaram as aulas de forma on-line e têm acesso aos profissionais diariamente. Com isso, o jovem Kayabi se vê em um cenário de incertezas. “Aqui na nossa comunidade a maioria dos alunos não têm internet em casa e é dependente da escola, como no meu caso. Precisamos saber se em 2021 vamos repetir o mesmo ano ou se vamos passar para o próximo. Voltar on-line no meio da pandemia seria bom se os alunos tivessem internet em casa, mas a maioria não tem. Se fosse para estudar dentro de casa, ajudaria bastante, não ia ter aglomeração, não precisaria se deslocar até outro lugar para ter internet e fazer a atividade”, argumenta.

Na imagem, o estudante Joelison mostra páginas da apostila onde é ensinado o pensamento do cientista social francês, Émile Durkheim. Na outra página o sistema cartesiano ortogonal é apresentado. (Foto: Joelison Fernandes).

Os professores também vivem o impasse de estabelecer contato com os alunos indígenas, uma vez que muitos não dispõem de celular. Esse é o caso da professora Gilmara Ramos, que preferiu não identificar sua unidade de ensino. Segundo a docente, os materiais disponibilizados pela Seduc aos alunos não são diferenciados, sobretudo nas chamadas salas anexas, que são escolas da rede pública onde estudantes indígenas têm aulas junto aos não indígenas. “Nenhum dos alunos indígenas está utilizando as plataformas digitais. Estão todos estudando no método apostilado. Inclusive, não consigo contato com uma das alunas pelo celular porque ela não dispõe dessa ferramenta. Pedi para um colega dela, de outro terceiro ano, que levasse a apostila. Estou na expectativa de que ela consiga concluir as atividades. É novidade também para nós, professores, que temos que aprender para ensinar os alunos. Os materiais disponíveis nas salas anexas são os mesmos materiais para os alunos não indígenas”, relata a docente.

Pouco diálogo com os indígenas 

O novo modelo de aulas foi estabelecido após pressões da Seduc sobre os profissionais da educação não indígena. Os professores estão em trabalho on-line desde agosto. Os diretores das escolas indígenas também receberam alertas do órgão, que iniciou um breve diálogo no fim do mês passado. Entretanto, a secretaria, por meio da Superintendência de Diversidades Educacionais (Sude), encaminhou um documento orientativo estabelecendo um plano para as atividades escolares não presenciais para ser aplicado pelos profissionais da educação indígena. A proposta atropelou os debates sobre o assunto, que ainda estavam sendo travados no Conselho Estadual de Educação Escolar Indígena do Estado de Mato Grosso (CEEI/MT) com a comunidade escolar. 

Entre algumas medidas, o orientativo determina que os professores levem o material impresso aos alunos que não possuem acesso à internet, empregando todos os esforços necessários para tal, a fim de sanar possíveis dúvidas. Além disso, a notificação aponta que os gestores das escolas devem enviar kits de alimentação às aldeias, sem designar como isso deve ser feito. 

Integrante do CEEI/MT, Francisca Navantino Pinto de Angelo, do povo Paresi, mestre em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso e doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) aponta fragilidades no documento e a necessidade da admissão de professores que tiveram seus contratos paralisados pela pandemia. “Essa proposta que a secretaria fez de apostilamento requer a contratação de mais professores porque haverá atendimento individual. Esta é a discussão com a secretaria agora. Para levar os materiais aos alunos é preciso infraestrutura. Falam que é para os profissionais indígenas pegarem dinheiro do plano de desenvolvimento da escola (PDE) e do projeto político-pedagógico da escola (PPP), mas nem todos têm o suficiente para bancar essa ida até o seu aluno para fazer esse atendimento. Fora isso, muitos professores estão sem contrato”. 

Ela ainda revela que mensagens foram endereçadas aos celulares dos professores do estado de Mato Grosso, informando que punições ocorreriam caso o profissional fosse desfavorável à volta às aulas. O conteúdo acabou sendo enviado aos profissionais indígenas, também em tom ameaçador. “Teve indígena que recebeu mesmo não sendo para eles. A Seduc diz que isso não foi autorizado pelos gestores principais, mas por assessores pedagógicos que não estão acompanhando a negociação e os diálogos que ocorrem entre a educação e o grupo do conselho. É muito problemático porque os indígenas têm medo de perder o emprego. É horrível. A mensagem traz a ameaça de corte de contratos. Eu achei extremamente autoritário e fora de contexto para o momento que estamos vivendo no país”, destaca Francisca. 

No caso de Klemer Ikpeng, conselheiro de educação escolar indígena do Médio Xingu e diretor da Escola Estadual Indígena Central Ikpeng, no Parque Indígena do Xingu, as pressões da Seduc ocorreram quando um plano estratégico pedagógico relâmpago foi solicitado. “Pediram para elaborarmos um projeto pedagógico, mas com prazos bem curtos. Não conseguimos fazer. Eles estão propondo atividades remotas, mas nossa escola não tem acesso à rede. Há quatro anos, a Seduc desinstalou a internet nas escolas indígenas. As escolas não têm estrutura para aulas on-line e nem material para a impressão das apostilas. As portas das escolas estão fechadas, mas não significa que estamos parados. Estamos trabalhando nossos saberes e nossas ciências. Nossos alunos estão em atividades socioculturais. Estamos nos adequando a esse momento difícil, não sabemos o que vai acontecer e não é o momento de expor nossas crianças”. 

Atividade sociocultural desenvolvida na aldeia Moygu, do povo Ikpeng. Foto: Klemer Ikpeng.

Procurada pela reportagem, a secretaria afirmou por meio de nota que não há pressão alguma sobre os profissionais. “A Seduc está dialogando de forma clara e transparente com cada escola e respeitando a cultura de cada povo, levando em consideração o luto das aldeias que tiveram mortes em decorrência da covid-19, inclusive fazendo reuniões para definições com o Conselho Estadual Indígena e Funai”, declarou. 

Ainda de acordo com o órgão estadual de educação, os profissionais estão recebendo capacitação: “A secretaria já realiza formação continuada não presencial para a implantação do Plano Pedagógico Estratégico de Volta às Aulas On-line e Off-line. A formação será ofertada em duas etapas pelos 15 Centros de Formação e Atualização dos Profissionais da Educação Básica (Cefapros). A primeira etapa já foi realizada e a segunda está em andamento. Serão 60 horas de curso”.

A Seduc reafirmou o uso do material impresso, mas não respondeu se haverá a instalação de internet nas aldeias que não têm o acesso. 

Soilo Urupe Chue, conselheiro e assessor da Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso  (Fepoimt), destaca que os movimentos indígenas não foram ouvidos no processo. Soilo vê a retomada do ensino com muita preocupação. “A Fepoimt não foi ouvida. A Seduc deve respeitar as especificidades dos povos indígenas e ouvir todas as realidades. Se for para retornar as aulas, então que poder público coloque internet em todas as casas. As apostilas vão ser impressas em vários municípios, passando por várias mãos, isso significa que há risco de transmissão dentro das famílias. Os professores também devem ter os seus contratos feitos e respeitados. Se os professores forem fazer o seu próprio plano, que seja de acordo com as especificidades do aluno.”

Luta pela educação diferenciada e a falta de estrutura

A situação educacional no município de Campinápolis, onde vivem os Xavante, também é delicada. Lá, os casos de covid-19 ainda estão em alta. São 368 casos confirmados, segundo boletim epidemiológico divulgado no dia 8 de setembro pelo governo de Mato Grosso. Com isso, muitos alunos indígenas não acessam mais a área central da cidade e têm dificuldades para se deslocar às escolas e pegar as apostilas, como explica o diretor Emival Pereira da Costa, da Escola Estadual Couto Magalhães. 

“Aqui em Campinápolis, 50% da nossa população é indígena. Muitos alunos voltaram para suas aldeias e não têm recursos para se deslocar e pegar as apostilas. Um percentual baixo retira as apostilas aqui e um percentual bem menor tem acesso à internet. Colocamos carros de sons nas ruas pedindo para as famílias retirarem as apostilas nas escolas. Agora, estamos com outro problema, pois muitos professores que foram afastados não puderam ser contratados. Tem turma que está sem professor. Infelizmente, estamos os deixando somente com as apostilas. Os conteúdos não têm distinção nenhuma para brancos e indígenas da escola Couto Magalhães. Quando tinham aulas presenciais, os professores conseguiam adaptar, mas só com as apostilas não têm como fazer isso”, lamenta. 

As barreiras de infraestrutura também foram colocadas no trabalho de Nilson Sirayup, diretor da Escola Indígena de Educação Básica Juporijup, onde estudam 161 jovens. De acordo com o profissional indígena da etnia Kayabi, ocorreram cortes de verbas e de pessoal. Além disso, ele aponta que a “aprendizagem conectada” não corresponde à realidade dos jovens com quem trabalha. “A própria Seduc não nos dá condições de trabalho, não tem como ter uma aula on-line na aldeia, quanto mais capacitar os professores para isso. Tivemos muitos cortes de funcionários. Cortaram profissionais da área de nutrição, de faxina e um vigia, isso acabou prejudicando o andamento da escola. O suporte financeiro é liberado a cada dois ou três meses. Às vezes, nossas solicitações nem são atendidas no mesmo ano. Há pedidos de melhorias para a escola que já têm mais de 10 anos e nunca foram atendidos.”

Garantida pela Constituição e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), a educação diferenciada, intercultural, multilíngue e comunitária indígena está sob competência da Coordenação Nacional das Políticas de Educação Escolar Indígena, do Ministério da Educação (Decreto nº26, de 1991). Cabe aos estados e municípios a execução para a garantia desse direito dos povos indígenas. Apesar do arcabouço legal, na prática a realidade é diferente, sobretudo em Mato Grosso. 

Francisca Navantino afirma que a pandemia expôs fragilidades da educação escolar indígena. “A pandemia mostrou quem é quem, a parte técnica fica de um lado, a parte da educação tradicional fica de outro. Nós estamos fazendo de tudo para que as tradições e as atividades socioculturais das comunidades indígenas sejam reconhecidas como educação escolar indígena, a lei já fala isso. A secretaria nunca quis isso, pelo contrário, quer a escolarização sentada no banquinho, para ler e escrever. Educação escolar indígena não é leitura e escrita simplesmente, é muito mais do que isso”, pontua. 

Escola Estadual Indígena de Educação Básica, em Bom Jesus do Araguaia, da etnia Xavante. Foto: Seduc.

Nesse sentido, Ivar Busatto, coordenador-geral da Operação Amazônia Nativa (OPAN), ressalta que a educação escolar indígena é composta de saberes diversos e, por isso, a extrema importância da educação continuada de professores e demais profissionais. “Os saberes indígenas têm músicas, histórias, um conhecimento da natureza e da medicina espetaculares. E a geografia, a história, o português e a matemática podem partir desses conhecimentos. Claro que é necessário cumprir o currículo que os estados, municípios e universidades propõem, mas é preciso complementar com os saberes indígenas”. 

O coordenador-geral da OPAN defende ainda a articulação com instituições de ensino superior. “As próprias universidades devem acompanhar e ter um processo formativo em conjunto com os professores. É fundamental pensar nas questões que devem ser enfrentadas na contemporaneidade. Uma educação só tem sentido se ela também resolver os problemas que a vida nos apresenta”, pontua.

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