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Dialogia e pedagogia: o trabalho indigenista entre os katukina do biá

A ação indigenista como ação pedagógica, a metodologia participativa de campo, o trabalho de etno-mapeamento e ao apoio na área de extrativismo e sustentabilidade caracterizam a intervenção da atual equipe entre os Katukina do Biá, no Amazonas. Confiram o relato de um indigenista, construído a partir da sua experiência de campo.

As aventuras da equipe Katukina (Leopoldo Barbosa, piloto das embarcações e encarregado de logística; Myrian Barboza, bióloga; e Bruno Caporrino, antropólogo), pelo mundo mágico da língua e da cultura Katukina vão de vento em popa. Singra, singra, singra, a nau opanista pelas águas plácidas do Biá sinuoso, ao longo do qual se distribui este povo, e em cujos meandros depositam-se séculos de história; em cujas ressacas e paranás habitam espíritos, personagens históricos, seres animados: o mundo Katukina.

Neste país de maravilhas, que conta com 1.185.192 ha, as cinco aldeias em que a equipe desenvolveu seus trabalhos observam o ritmo das águas, num fluxo contínuo de mudanças em que a identidade Katukina, longe de se perder diante do novo, se re-inventa, de modo cada vez mais forte. Diante dos inúmeros desafios que a pós-modernidade lhes postula, os Katukina improvisam escalas, arpejos e solos inovadores, nos quais está contida toda sua cosmologia, nota a nota, dia a dia. O caráter plástico da cultura Katukina impressiona, nestas Ilhas de História que permeiam o Biá.

Pedagogia do diálogo

O trabalho da equipe tem enveredado pelas searas da pedagogia. E por pedagogia entende, em essência, dialogia. A troca de saberes engendra um trabalho indigenista pautado pelo ouvir e criar coletivos. É esta a linha-mestra do trabalho desenvolvido desde janeiro deste ano, dentro do Projeto Aldeias.

A equipe assessorou Sérgio Lobato nas oficinas de criação audiovisual por ele ministradas nas aldeias Boca do Biá e Gato, e que resultaram num impressionante resgate de rituais e cantos, tais como o HaiHai, no que se pode considerar uma apropriação do recursos audiovisual. Ao passo em que foram capacitados com as técnicas de filmagem e de construção fílmica, os Katukina introduziram mais ainda a equipe em sua vida ritual e cotidiana. O mesmo se deu com as oficinas de aplicação do livro didático produzido por Miguel Aparício, Genoveva Amorim e Merel van der Mark. O processo de aplicação deste livro dos seres e do cosmo Katukina obedece à convenção lingüística construída pelos próprios Katukina em colóquios lingüísticos assessorados por lingüistas. A obra, na língua Katukina não conta com palavras em português, senão na apresentação metodológica, e sua publicação foi financiada pela Embaixada dos Países Baixos.

Miguel Aparício esteve com a equipe, entre os Katukina, e apresentou ferramentas metodológicas de alfabetização do povo Katukina em sua própria língua, após o que a equipe atual assumiu tal atividade, levando o conteúdo mágico das palavras para as aldeias Gato, Janela, Sororoca e Bacuri.  O processo de aprendizado e apropriação da palavra escrita foi um exercício pleno de dialogia: ao passo em que a equipe aprendia o idioma Katukina, por meio mesmo da aplicação da cartilha, mediante exercícios divertidos e pedagógicos, como teatro, brincadeiras e a escrita fonética, os Katukina apropriara-se do uso da escrita como forma de expressão. Um contínuo debate sobre poder, e a estrutura que a escrita registra e a cada exercício acompanha cada ação.

O sucesso do processo foi atestado pelo afinco dos Katukina de todos os sexos e idades, em todas as aldeias, no estudo sistemático da escrita, ao passo mesmo em que a equipe aprendia mitos, a língua e os rituais, dos quais participou ativamente, desde a confecção dos kioru, até a colheita dos abacaxis e bananas dulcíssimos para a confecção dos koya – o mingau ritual.

Participação observante

Adentrando na vida Katukina por meio da intensa participação, a equipe de indigenistas passou a desfrutar de momentos raros, como a sopra de rapé cerimonial, durante os rituais, as danças e a aspiração noturna de rapé – onde se dão as conversas mais significativas para a construção desta relação de confiança e troca em que consiste, essencialmente, o trabalho. Mais do que meramente participar de sua vida com objetivos etnográficos, a equipe é convidada a adentrar no mundo Katukina, por seu cotidiano, atestando que um vínculo forte de parceria e respeito se firma.

A troca de saberes abrange, por conseguinte, um diálogo sobre os modos de produção Katukina e industrial – modo este que a equipe tem explicado através de fotografias e filmes, em momentos onde a antropologia explica o ocidente para os “nativos”.

Território e soberania

O processo de etno-mapeamento rendeu frutos notórios: almejando a dialogia na confecção de um mapeamento do uso simbólico, histórico, extrativista e político do território Katukina, a equipe construiu, em todas as aldeias, um processo para além da simples notação cartográfica do uso e das concepções sócio-espaciais Katukina. Objetivou-se instaurar um processo (mais do que um produto) de reflexão sobre o território, mediante conversas e diálogos sobre o território, visando à valorização de sua soberania sobre o espaço, e sinalizando a necessidade de um uso sustentável dos recursos naturais, diante das novas configurações que tem adquirido a dinâmica Katukina de mudança e deslocamento.

Oficinas de etno-matemática, seguindo a mesma linha pedagógica, têm sido feitas intensamente no cotidiano do convívio da equipe com o povo, que é o próprio cotidiano Katukina. Aliada a essa linha, está a assessoria aos Katukina que, historicamente, e por motivos financeiros, tem demandado intensamente auxílio na extração de produtos florestais não-madeireiros.

Extrativismo e sustentabilidade

A equipe assessorou a produção e escoamento dos óleos vegetais (copaíba e andiroba) e, graças ao auxílio de Leopoldo Barbosa Neto, escoou uma parcela-piloto desta produção adquirida pela ASPROJU – articulação devida a Leopoldo. Tal era uma demanda dos Katukina, a quem a equipe serve, visando a sustentabilidade e a autonomia desta mesma relação.

Por conseguinte, articulações com o poder público municipal, nas áreas de educação e produção agrícola, bem como com órgãos do terceiro setor, tais como a ASPROJU (Associação dos Produtores de Jutaí) e a COPIJU (Cooperativa dos Povos Indígenas de Jutaí) tem sido feitas pela equipe, com o fito de fortalecer organizacionalmente o povo Katukina e suas relações com o mundo externo.

Perspectivas

Para o segundo ano de Projeto Aldeias, a equipe arquiteta planos fundamentados ainda na linha pedagógico-dialógica, com o fito de auxiliar o povo Katukina na defesa de seu território e na busca por melhores alternativas na gestão e no manejo de seus recursos naturais, com autonomia e sustentabilidade. Para tal, objetiva prosseguir com as oficinas de escrita na língua, com as oficinas de etno-matemática e mediante a implementação de oficinas de biometria e  diagnóstico sócio-ambiental. Estas últimas aliam-se intimamente aos trabalhos de etno-mapeamento, cujos frutos cartográficos pretendem-se entregar ao povo Katukina ao cabo do projeto, como tudo o que se faz com, por e para este povo.

Oficinas de manutenção de motores também estão previstas para este ano, procurando aliar a sustentabilidade e a proteção territorial ao grande objetivo da equipe para o projeto: facultar ao povo Katukina do Rio Biá a soberania sobre seu território.

 

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