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ZONEAMENTO, A FRAUDE DOS RURALISTAS: A ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA CONTRA MATO GROSSO

Mato Grosso acaba de assistir a um dos golpes mais contundentes na trajetória política do seu poder legislativo.

Mato Grosso acaba de assistir a um dos golpes mais contundentes na trajetória política do seu poder legislativo. Arrogantes no seu ruralismo unilateral, em perfeito mimetismo com o setor do agronegócio, lideranças partidárias aprovaram em primeira votação, na sessão do dia 30 de março, um 3º Substitutivo Integral ao Projeto de Lei de Zoneamento Sócio-Econômico-Ecológico que deturpa definitivamente o processo conduzido pelos diversos setores da sociedade mato-grossense ao longo de 20 anos. Em palavras corretíssimas do promotor Domingos Sávio, do Ministério Público Estadual, os deputados acabam de aprovar um projeto fraudulento.

A postura dos deputados, liderada por Dal Bosco (DEM), se constrói a partir da leitura da “vocação histórica de Mato Grosso, que prima o desenvolvimento” e de uma suposta “vontade popular” manifestada ao longo de audiências públicas, onde o setor ruralista, em sintonia com a Assembléia Legislativa, aplicou uma dramaturgia democrática sem espaço real de expressão para os demais segmentos sociais. Ficam na lembrança os grupos de crianças de escolas do interior, que seguravam faixas amarelas declarando: “Queremos virar Categoria 1.1! (Áreas com Estrutura Produtiva Consolidada)”.

No dia 24 de março de 2010, representantes da sociedade civil organizada nos reunimos, na Presidência da Assembléia Legislativa do Estado, com os deputados que integram a Comissão Especial de Zoneamento Sócio-Econômico-Ecológico. Poucos dias antes, as redes sociais FORMAD, REMTEA e FLEC tinham divulgado o ManifestoO Mapa dos Pesadelos, em que se criticava a apresentação, por parte de deputados ruralistas liderados por Dal Bosco, de um 2º Substitutivo Integral que modificava violentamente tanto a proposta de ZSEE construída inicialmente pelo Executivo estadual, quanto o 1º Substitutivo Integral elaborado pelo Relator da Comissão, deputado Alexandre César (PT). Quero manifestar com clareza que a reunião dos representantes da sociedade civil com a Comissão de ZSEE na sala da Presidência da Assembléia Legislativa foi um bom exercício de cidadania, tanto pela nossa veemência e firmeza nas posições, quanto pela atitude dos deputados, que no meu ponto de vista sentiram de alguma forma a pressão no raro canal de diálogo aberto com a sociedade civil organizada. Chamou a minha atenção naquele momento, a posição dialogante dos deputados Riva (PP) e Dal Bosco (DEM), o despreparo rudimentar de Daltinho (PMDB), o entusiasmo ruralista de Percival Muniz (PPS) (que chegou a denominar-nos “setor improdutivo da sociedade”, sic) e a diplomacia confortável de Alexandre César (PT); Airton Português (PP) manteve uma presença insignificante, quase invisível.

O resultado concreto da reunião foi extremamente negativo, e consolidava um cenário onde a construção do Zoneamento Sócio-Econômico-Ecológico de Mato Grosso ficava definitivamente comprometida: a proposta original do Executivo (SEPLAN/SEMA) permanecia simplesmente fora do jogo, o 1º Substitutivo do Dep. Alexandre César perdia qualquer horizonte de possibilidades e o 2º Substitutivo das Lideranças Partidárias se erguia, da noite pro dia, como a lamentável proposta de excelência da maioria dos parlamentares. Nos dias seguintes, perante as críticas dos movimentos socioambientais, do Ministério Publico, do Diretor de Zoneamento Territorial do MMA, da Comissão Técnica de ZSEE do Executivo Estadual e, inclusive, da Comissão Técnica de ZSEE da própria Assembléia Legislativa (!), as lideranças partidárias corrigiram algumas deturpações mais graves da sua proposta – basicamente, a exclusão inconstitucional de 14 terras indígenas no mapa de Zoneamento do Estado – e elaboraram um 3º Substitutivo, uma maquiagem de última hora para tramitar imediatamente a aprovação no plenário da Assembléia Legislativa.

Às vésperas da votação, representantes de algumas entidades, acompanhados pelo promotor Domingos Sávio, dialogamos com Blairo Maggi e propusemos a retirada do Projeto de Lei de ZSEE da pauta de votação da Assembléia Legislativa, considerando as irregularidades do processo. Maggi, no penúltimo dia do seu governo bipolar (entre sua condição de paradigma do agrobusiness exportador e de pretendido neo-ambientalista estilo COP-15) optou pela afinidade com seus pares no legislativo, em vez de intervir em favor da prometida Carta Verde do seu mandato. De fato, nos últimos três anos as equipes técnicas das Secretarias de Planejamento e de Meio Ambiente do seu governo tinham conseguido produzir com qualidade um instrumento técnico-político de planejamento estratégico, baseado num diagnóstico multidisciplinar dos componentes físico, biótico e socioeconômico, identificador das potencialidades e vulnerabilidades das áreas, com soluções eficientes para a gestão ambiental sustentável dos territórios do Estado. Mr. Motosserra de Ouro preferiu, finalmente, rasgar o trabalho realizado e permitir o retrocesso de Mato Grosso à sua condição de Estado-sem-Zoneamento. Em realidade, nada novo sob o sol de Cuiabá, uma vez que a máscara verde de Blairo Maggi, além de concluir seu governo sem ZSEE, conclui sem proposta de Código Ambiental, e deixa na pseudo-elegância do papel (sem condições efetivas de implementação) os badalados Programas MT Legal e o Plano Estadual de Prevenção e Combate ao Desmatamento…

Sem catastrofismos, acreditamos que Mato Grosso está a risco, e que a posição da Assembléia em relação ao ZSEE vai aparecer como um dos golpes mais duros do ruralismo na cena política do Mato Grosso e da Amazônia. No meu ponto de vista, foram dois os questionamentos fundamentais apresentados aos deputados pelos representantes da sociedade civil. Em primeiro lugar, denunciamos a irrupção do 2º e 3º Substitutivos (Dal Bosco e líderes partidários) como uma quebra abrupta no processo de construção democrática que houve no estado em relação ao ZSEE. Sem constituir-se como opção ideal desde uma perspectiva socioambiental, o 1º Substitutivo (Alexandre César) representava um produto ‘correto’ sob uma ótica de convergência democrática, que previsivelmente serviria como solução intermediária entre a leitura dos setores do agronegócio e sua classe política – majoritária no legislativo – por um lado, e a leitura dos setores de agricultura familiar, movimento indígena, populações tradicionais, movimentos sociais e ongs socioambientalistas, por outro. Uma vez que a proposta original da SEPLAN/SEMA perdeu qualquer perspectiva de implementação desde a perspectiva da Comissão de ZSEE da Assembléia, na arena política ‘real’, o Substitutivo de Alexandre César (com suas perdas, danos e concessões ao segmento agropecuário), tornou-se – resgatando o bem dizer de Leibniz – “o melhor dos mundos possíveis” para o futuro do Estado.

Em segundo lugar, declaramos com muita transparência o quanto o 3º Substitutivo de Dal Bosco e as lideranças partidárias corre na contramão da capacidade política inovadora de um Estado que, nos últimos anos, tem dado alguns passos na construção de um processo eficiente de regularização fundiária, na consolidação dos mecanismos de prevenção e controle contra o desmatamento e na agilidade para a configuração de uma pauta climática estadual. Por parte da sociedade civil, creio que nós também demos passos eficazes para superar posições reducionistas e colaborar de forma ativa e qualificada na construção de agendas ambientais democráticas, geradoras de políticas públicas mais sustentáveis. Enfatizamos como, além da nossa preocupação pela conservação dos biomas do Estado e pela visão multi-setorial do Zoneamento (que deve contemplar os interesses convergentes de todos os segmentos da sociedade mato-grossense), estava em pauta nossa preocupação grave pelo futuro econômico de um Estado que, esgotando seu potencial hídrico e florestal, pode caminhar também ao colapso da sua estrutura de produção.

Quem teve a oportunidade da analisar os Substitutivos 2 e 3, pode comprovar sua precariedade técnica; além disso, espero que os especialistas em direito ambiental evidenciem a curto prazo seus elementos de incompatibilidade com a legislação vigente. Segundo avaliação da Comissão Técnica SEPLAN/SEMA, “este Substitutivo (referem-se ao 2º) apresenta graves equívocos conceituais que comprometem e negligenciam toda a construção técnica do projeto, e ferem a concepção, os fundamentos conceptuais e as orientações contidas nas Diretrizes Metodológicas para Zoneamento (SEDR/ZEE/MMA 2006)”. Trata-se de uma proposta que simplesmente estrutura o ordenamento territorial do Estado em função do agronegócio de grande escala, da pecuária extensiva e da recuperação ambiental de áreas degradadas pela super-exploração agropecuária. Confiram, neste sentido a extensão geográfica da Categoria 1 proposta, e sua configuração nas novas subcategorias 1.1, 1.2 e 1.3: da proposta inicial SEPLAN/SEMA que previa 22 milhões de hectares para a consolidação da estrutura produtiva, aos 40 milhões estabelecidos no mapa dos deputados. 41% das áreas de Elevado Potencial Florestal foram reduzidas. De maneira gravíssima, amplas áreas de Conservação e Recuperação de Recursos Hídricos foram reconvertidas em áreas de Consolidação Produtiva – é gritante no caso da bacia do Xingu, entre outras.

Assim garantida a prevalência unilateral do agronegócio, o “resto” do Estado se organiza em torno a uma proposta minimalista de proteção de recursos hídricos, florestas e pantanais (Categoria 2). Sobre as áreas protegidas, como já é sabido, se propõe uma redução de 73% de áreas propostas para criação de UCs presentes no Substitutivo 1. Os deputados ruralistas já corrigiram o erro crasso proposto inicialmente, que eliminava de uma canetada as 14 terras indígenas ainda não homologadas, mas com processos de identificação, delimitação ou demarcação em andamento. Nas declarações destes últimos dias, Riva e Dal Bosco insistiram sobre esta retificação – obviamente, feita não por paixão multiculturalista, mas para superar o buraco negro da inconstitucionalidade. Vale lembrar que na versão original do 2º Substitutivo estas terras indígenas tinham sido transformadas em áreas de estrutura produtiva consolidada, e que as declarações de Rui Prado, presidente da FAMATO, após a aprovação do Substitutivo 3º, ainda insistem na supressão destas áreas indígenas.

Para compreender melhor a falta de qualidade técnica do 3º Substitutivo, quero chamar a atenção sobre a precariedade técnica do seu artífice, o agrônomo José Carlos Foloni. Analisando seu CV, fica muito claro que seu produto esperado tão-somente poderia ser um “zoneamento do agronegócio”: graduado em Agronomia na UFMT, fez posteriormente Mestrado na UFV em Comportamento do Herbicida Atrazina em Latossolo Roxo e há poucos meses concluiu seu doutorado em Produtividade e Estado Nutricional de Plantios Seminais e Clonais Jovens de Teca. Pergunto-me: é correto designar um suposto especialista em herbicidas e produção de teca como arquiteto da proposta de ordenamento territorial do Estado? Qual é a capacidade multidisciplinar deste autor, para construir uma proposta que requer pesquisa integrada entre especialistas em diversas áreas da biologia, da geologia, da geografia, das ciências sociais, da economia ambiental, da agronomia, da climatologia, do planejamento estratégico, da legislação ambiental, entre outras?

Para todos nós que colaboramos na construção de um processo democrático de construção do ZSEE, em mesas que aproximaram governo, sociedade civil, diversos setores produtivos, pesquisadores e lideranças sociais, o sentimento de decepção é inevitável. Provavelmente, a maioria dos nossos parlamentares optou de maneira lamentável por embarcar na “Onda Santa Catarina”: sem medo de enfrentar a Constituição, sem medo de desmontar as garantias da legislação ambiental em vigor, propõem um processo agressivo de descontrução de qualquer perspectiva ambiental. A previsível desaprovação da proposta na Comissão Nacional de Zoneamento, a previsível desaprovação no CONAMA, a previsível postura contrária do Ministério Público, a já declarada avaliação técnica negativa das Comissões Técnicas de Executivo e do Legislativo…, nenhum desses elementos freia o vigor da sua visão monolítica, que enxerga como máximo horizonte de futuro o calendário da próxima safra. Não gosto de retóricas eco-chatas, apenas temo que a Assembléia Legislativa aposte pela inviabilidade do Mato Grosso e pela rondonização do nosso Zoneamento.

A rigor, a estratagema da Assembléia Legislativa consiste em aprovar um Zoneamento que se instaura como Ausência-de-qualquer-Zoneamento. Perante este absurdo, a nossa mobilização deve persistir: já que nosso Estado tem sido derrotado dentro do seu próprio Parlamento, precisará garantir as alianças nos cenários nacional e internacional, assim como o comparecimento mais veemente do Ministério Público. Dal Bosco propõe um Zoneamento na contramão da modernidade e na contramão dos melhores esforços da política de gestão ambiental deste Estado. “Cá entre nós”, concluo com as palavras que ele mesmo me confessou nos bastidores após a reunião do dia 24/03 com os representantes das entidades socioambientais, num momento que só pode ser considerado como debilidade passageira do deputado:

– “Eu acho que, desta vez, exageramos na dose”…

Lamentável, Sr. Dal Bosco: perdemos a oportunidade de continuar sendo inovadores.

* Miguel Aparicio é Gestor do “Programa Aldeias – Conservação na Amazônia Indígena” da OPAN e Coordenador do Fórum Mato-grossense de Meio Ambiente e Desenvolvimento (FORMAD).

 

 

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