É tempo de aprender com os indígenas
Em meio às ameaças aos direitos indígenas, Brasil tem chance de rediscutir valores que regem nosso sistema produtivo.
Em meio às ameaças aos direitos indígenas, Brasil tem chance de rediscutir valores que regem nosso sistema produtivo.
Por: Ivar Luiz Vendruscolo Busatto*
É com muita preocupação que acompanhamos o comportamento de deputados e senadores ligados à bancada ruralista que, vencida a queda de braço com a sociedade civil culminando com o enfraquecimento do Código Florestal Brasileiro, admitiram sem constrangimento que o entrave ao desenvolvimento do país são os indígenas e seus territórios. Ao arrepio dos mais contundentes estudos que reconhecem a importância das terras indígenas e outras áreas protegidas para a conservação da biodiversidade, para a garantia do regime equilibrado de chuvas e para a própria sustentabilidade da agricultura no Brasil e no mundo, políticos com interesses no mercado do agronegócio iniciaram um ataque silencioso aos direitos dos povos indígenas, tão recentemente conquistados na história do nosso país.
Tenta-se, por exemplo, desqualificar o trabalho da Fundação Nacional do Índio (Funai) de identificar e demarcar terras indígenas com a abertura de uma CPI da Funai. Esquecem que o órgão está hoje a serviço de um Estado democrático que reconhece uma imensa diversidade de culturas, idiomas, sociedades complexas com cosmologias próprias e habilidade para manejar centenas de espécies vegetais e animais que compõem a nossa sociobiodiversidade. Avolumam-se Propostas de Emendas Constitucionais (PECs) na Câmara e no Sendo (como a PEC 215, que depende da instalação de uma comissão especial prevista para o segundo semestre de 2013) visando retirar do poder Executivo a atribuição de estudar, reconhecer ou ampliar terras indígenas. São vários instrumentos legislativos em tramitação, sugerindo que os próprios deputados – que, em alguns casos estão direta e pessoalmente envolvidos nos processos de exclusão social, concentração fundiária e até denúncias de trabalho escravo e desmatamento ilegal – tenham a competência de julgar a pertinência ou não de temas como a diversidade sociocultural, ambiental e territorial de nosso país. É uma certeza que, se isso um dia acontecer, nenhuma outra terra indígena ou unidade de conservação será criada no Brasil.
A sociedade ainda não se dá conta da oportunidade para rediscutir e escolher que modelo queremos e estamos construindo. A integração territorial do Brasil e da América do Sul por estradas, ferrovias e hidrovias não atende aos anseios da população por um sistema de transportes eficiente, confiável e moderno, mas, primeiro, aos interesses de mercado, que precisa escoar uma produção crescente de grãos, num ritmo que não integra, pelo contrário, exclui muitos segmentos sociais. O pacotão de recursos, políticas e grandes empreendimentos de infraestrutura não têm tido a menor capacidade de dialogar e respeitar outros tempos, outros modos de vida, outras formas de produção e manejo, o que nos insta a questionar: qual é o custo real dessa produção e a quantos beneficia?
Está cada vez mais claro hoje que os estados nacionais perderam o poder moderador das lutas sociais. É uma ilusão acreditar que as administrações dos governos serão imparciais, especialmente porque elas são compostas por forças que dominam o capital. Na maioria absoluta das vezes, os eleitos são representantes dos interesses das minorias mais abastadas. Os povos indígenas, como não têm representações na Câmara nem no Senado Federal brasileiro, estão alijados de poder defender suas perspectivas, suas propostas.
Esta reflexão exige sensibilidade. A Operação Amazônia Nativa (OPAN), primeira organização indigenista não oficial fundada no Brasil, tem em sua história exemplos muito concretos de como foi possível enxergar essas relações interculturais de outra maneira. Muitos dos indigenistas que chegaram nos anos 70 a Mato Grosso, traziam como referência a agricultura de minifúndios no Sul do país. Ao contrastarmos esse modelo às práticas tradicionais indígenas, nos demos conta de que era preciso observar, aprender e incorporar outros padrões de produção e organização. Percebemos que a lógica indígena era a da integralidade. Eles não precisavam apenas de agricultura, mas de uma produção conjugada com seu espaço da coleta, da caça, os locais sagrados. Tinham uma vida de mais liberdade. Notamos que essa perspectiva holística era importante para eles, que garantiam um espaço para o crescimento de sua sociedade conforme seus desejos e interesses.
Ao constatarmos que ainda existem no Brasil pelo menos 150 diferentes bancos genéticos da mais genuína agricultura, mantida in situ e desenvolvida pelos povos indígenas, observamos que aí estão presentes a criatividade e a genialidade destes agricultores que ao longo de séculos foram plantando e produzindo alimentos riquíssimos para a satisfação de suas necessidades e seus gostos culturais distintos.
Este é um patrimônio de valor incalculável não só para os próprios indígenas, mas para toda a humanidade, pois é mantido por razões que não são a produtividade, o lucro, o interesse do mercado comercial: visam atender os humanos e os deuses. O que acontece na agricultura indígena, ainda pouco considerada e estudada pela sociedade nacional, é um fenômeno social, político, religioso com produções que respondem plenamente às necessidades alimentares das comunidades se praticadas seguindo sábios conselhos de todos aqueles que tiveram a oportunidade de saborear os seus frutos.
Lamentavelmente, o modelo estabelecido a partir das frentes de colonização do Centro-Oeste brasileiro no século XX não tem conseguido dialogar com esta lógica. Este é um sistema que não tem limite, baseado em produções particulares que não se prestam à distribuição, mas à venda, à exportação. O SPI[1] e as missões religiosas contribuíram sobremaneira com este processo. A existência de outras sociedades no caminho dos investimentos de colonização era um entrave (como agora a questão volta a ser chamada!), então naquela época a política pretendia atrair e ensinar índios a trabalhar, a ter um patrão, enquanto seus territórios (hoje e novamente reivindicados) eram expoliados.
Tudo isso em nome de uma produção mundial de basicamente quatro tipos de grãos: soja, milho, trigo e arroz, que alimentam bois, frangos, porcos e peixes. Ao reduzir esta questão à tamanha limitação de variedades, nos damos conta do empobrecimento alimentar a que estamos submetidos.
A liberdade dos cultivos, da diversificação nutricional e espacial não faz parte deste modelo que transformou em monocultura o rico Cerrado brasileiro. Também não faz parte da vida de muitos agricultores familiares, dos médios e mesmo dos grandes empreendedores rurais, que vivem endividados junto às multinacionais produtoras de sementes e esmagadoras de grãos. Há, portanto, de nos questionarmos: a quem interessa a perda de biodiversidade, as manobras políticas para amordaçar os direitos indígenas conquistados? Quem, de fato, está entregando o patrimônio natural e sociocultural brasileiro?
Enquanto milhares de hectares de terra convertida encontram-se nas mãos de poucas famílias de empresários, sendo seus únicos beneficiados, os territórios indígenas são para a coletividade, geram serviços ambientais a todos nós, de graça. Ao reivindicar alguns ajustes e esforços de identificação de seus territórios tradicionais, os indígenas lutam por paisagens e recursos dos quais dependem para transmitirem às futuras gerações sua forma de se relacionar com os espíritos, com a natureza, com a roça, com todos os elementos caros à sua existência. De quebra, protegem o patrimônio natural por onde circulam. O resto está derrubado.
Em suma, este cenário obscuro de questionamento de direitos fundamentais dos povos indígenas no Congresso Nacional lança à sociedade brasileira mais uma oportunidade para discutir valores e direitos. Está em jogo nossa capacidade de adotar outro jeito de pensar, de se relacionar, de manejar e utilizar recursos naturais em termos concretos.
Os povos indígenas, possuindo o usufruto exclusivo sobre um território de 110 milhões de hectares, especialmente na Amazônia, devem tomar consciência de sua força, adequar suas milenares filosofias de vida mostrando ao mundo que elas não têm nada de atrasado. Pelo contrário: respondem, da forma mais ousada e moderna, ao clamor mundial por novos e necessários relacionamentos com a natureza.
Gestão territorial indígena
Hoje, em Mato Grosso, temos bons exemplos de como o modo de vida dos indígenas não necessariamente é um entrave à participação no mercado, à sua maneira. Há dez anos, experiências de fortalecimento da organização indígena e valorização da cadeia de produtos da sociobiodiversidade na Amazônia mato-grossense demonstram esses caminhos, principalmente em relação à produção de castanha-do-brasil.
Na bacia do rio Juruena, muitos povos indígenas dedicaram-se à elaboração de seus planos de gestão territorial, como foi o caso dos Manoki, Myky e subgrupos Nambiquara da Terra Indígena Pirineus de Souza. Eles lançaram suas publicações em 2013. A OPAN apoiou este trabalho, como também tem feito no estado do Amazonas, facilitando processos em que os próprios indígenas refletem e escolhem como querem se relacionar com a sociedade envolvente. Isso gerou instrumentos essenciais ao debate político indígena e orienta ações que são importantes para garantia de qualidade de vida a todas as comunidades. Estas são experiências pioneiras para o Brasil, no caminho da implementação da Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial de Terras Indígenas (PNGATI), sancionada em 2012.
*Ivar Luiz Vendruscolo Busatto é mestre em agricultura tropical e coordenador geral da Operação Amazônia Nativa (OPAN).
Com a colaboração de Andreia Fanzeres.
[1] Serviço de Proteção aos Índios (SPI), órgão do Estado fundado por Candido Mariano Rondon com ideologia positivista que funcionou no Brasil de 1910 até 1967, quando foi criada a Funai.
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