Uma coisa puxa a outra
Organização de mulheres indígenas de MT, colhe os frutos de 14 anos de mobilização e protagonismo feminino.
Organização de mulheres indígenas de MT, colhe os frutos de 14 anos de mobilização e protagonismo feminino.
Por: Andreia Fanzeres/OPAN
Juara, MT – Já virou tradição. Há 14 anos, sempre na semana da pátria, mulheres indígenas deixam as aldeias de norte a sul de Mato Grosso para discutir desafios comuns, se informar, trocar experiências e planejar ações conjuntas para elevar a qualidade de vida de suas famílias e comunidades. Em 2015, por questões de logística, o encontro foi realizado excepcionalmente uma semana depois, nos dias 12 e 13 de setembro, na Terra Indígena (TI) Apiaká-Kayabi, onde, aliás, em 2001 tudo começou. Algumas com crianças no colo, as mulheres enfrentaram centenas de quilômetros até a aldeia Mayrob, do povo Apiaká, que as acolheu com o que há de melhor: espaço físico organizado, comida farta, agentes indígenas de saúde a postos para qualquer emergência, sem falar no rio dos Peixes banhando a aldeia trazendo relaxamento e refresco àqueles dias de calor intenso.
Era a 3ª Assembleia de Mulheres Indígenas de Mato Grosso, promovida pela Takiná – uma das poucas organizações indígenas de abrangência estadual. “Nossa associação foi fundada em 2009, mas desde 2001 os encontros ocorrem anualmente. Antes eram realizados pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI). A partir de 2005, pela Comissão de Mulheres Indígenas de Mato Grosso (Coami) e, já com a ideia de criarmos uma associação mais amadurecida, desde 2009 pela Takiná”, conta Maria Alice de Sousa Cupudunepá, do povo Umutina, presidente da organização.
Das cerca de 90 associadas, 60 compareceram à aldeia Mayrob. Representaram os povos Bakairi, Rikbaktsa, Kayabi, Apiaká, Munduruku, Arara, Manoki, Umutina, Guató, Paresi e Cinta Larga em uma discussão sobre empreendedorismo. Maristela Torres, assessora antropológica da Takiná que desde o começo apoia a organização, puxou as conversas demonstrando o papel das mulheres indígenas empreendendo melhorias para suas comunidades. Além da relação direta deste tema com a geração de renda a partir dos artesanatos, na perspectiva delas, o debate foi traduzido na qualidade dos alimentos consumidos nas aldeias. Consequentemente, na responsabilidade feminina na saúde da mulher e das crianças.
“Antigamente, meus pais guardavam a semente para a gente plantar no outro ano. Agora a gente colhe arroz, batata. Vende tudo e fica sem semente. Aí vai sumindo o que era nossa planta, sem contar tanto agrotóxico”, diz Nair Zonizokaero, do povo Paresi, que reconhece que a alimentação entre os indígenas anda tão ruim que os alimentos tradicionais têm sido rejeitados em muitas aldeias. “Se eu pegar mandioca hoje e servir mingau, ninguém vai querer. Criança quer pão, leite. Vai chorar”, constata.
Às vezes, no entanto, não é questão de querer. “Antes havia uma regra, uma dieta para as mulheres que ganharam bebê. A gente tinha que tomar sopa. Mas vamos para a Casa de Saúde Indígena (Casai) e só tem comida seca. As mulheres ficam sem leite e as crianças precisam tomar leite em pó”, reclama Cristina Tukumã, cacique da aldeia Mayrob. Ela faz questão de chamar a comunidade para um envolvimento mais amplo nas questões que têm influenciado negativamente a qualidade de vida das aldeias. Um exemplo claro disso tem sido a drástica redução de peixes e da qualidade dos rios em decorrência da instalação de barragens. “Estamos sem peixe e a demanda é grande. Temos que pescar muito longe da nossa terra e isso é perigoso. Achamos que a usina era pequena, mas o impacto foi muito grande. Temos que discutir as ameaças aos nossos territórios”, diz Clacilda Atusi Myky, da TI Irantxe, referindo-se à Pequena Central Hidrelétrica (PCH) Bocaiuva, que mesmo a 30 quilômetros das terras Manoki, no rio Cravari, fez praticamente extinguir os peixes do rio que abastece sua aldeia.
No rio dos Peixes, a instalação de hidrelétricas é ainda (e apenas) uma ameaça. “Nós aqui estamos no paraíso. Temos peixe, caça, um rio limpo, fartura. Mas nossos netos não terão mais isso. Ao redor tem desmatamento, queimada. Por isso, nós, mulheres, devemos participar mais das reuniões, saber da legislação, da defesa de direitos. Nós, que somos mães, precisamos nos preocupar com isso”, afirma a cacique apiaká, Cristina Tukumã.
Os trabalhos de permanente mobilização das mulheres indígenas são um dos pontos que mais chama atenção na Takiná. Mesmo com poucos recursos, a disposição para realizar os encontros e viajar não muda, motivando até as mais longínquas aldeias, que se revezam para recebê-las.
Grandes anfitriãs
As anfitriãs, que em 2011 fundaram a Associação de Mulheres Apiaká, Kayabi e Munduruku (Akamu), estavam muito preparadas para acompanhar as discussões, tendo recebido por diversas vezes o reconhecimento público dos homens das aldeias, parabenizando-as pelo envolvimento e dedicação na organização deste grande evento. Esse respeito a elas é resultado de anos de protagonismo. “Em 2001, estávamos incomodadas com os madeireiros na nossa terra indígena. Os homens não tomavam providência, então acionamos a Funai e fomos para o mato. Apreendemos o trator, mandamos os madeireiros embora. As mulheres são guerreiras. E até hoje os homens dizem que se não fôssemos nós os madeireiros ainda estariam aqui”, recorda-se Dilma Mari Mani Kayabi, coordenadora da Akamu, que conta com 69 associadas das três etnias.
A importância dessa organização de mulheres na TI Apiaká-Kayabi reflete-se na configuração de caciques. Hoje, como elas dizem, há várias “cacicas”, inclusive a da aldeia Mayrob. “Os homens tinham uma associação para cada povo dentro desta terra indígena. A gente buscou unificar as aldeias, pois ficávamos afastadas umas das outras. Antigamente as mulheres daqui não podiam falar. Olhamos para a Associação Indígena de Mulheres Rikbaktsa (Aimurik) e pensamos que precisávamos nos fortalecer também”, conta Agnes Fernandes França, presidente da Akamu.
“Através da associação recebemos convites, vamos a eventos, buscamos novos projetos. Já fizemos nosso mapeamento cultural com ajuda da Funai e apoiamos a realização de mostras de artesanatos, danças, pintura, teatro”, continua Agnes.
Nova diretoria
A 3ª Assembleia da Takiná tinha mais uma importante missão: eleger a nova diretoria. Cerca de 20 associadas ocupam cargos de direção e escolheram que a nova presidente da organização será Suelly Fernandes França, do povo Kayabi. Pela frente, desafios de gestão como toda a associação, além de compromissos importantes que a Takiná assumiu em esferas nacionais e até internacionais. A Takiná participa do coletivo “Diálogo com Mulheres Indígenas” desde 2012 formado pela Funai e Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República. Segundo Maria Alice Cupudunepá, a Takiná foi também convidada através da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) a participar do grupo “A voz das mulheres indígenas” na ONU Mulher.
Com uma pauta dessas, elas escolheram o assunto que será discutido ano que vem: direitos da mulher indígena – direito à saúde, à alimentação, à informação, à cultura. A escolha de tal tema, tão amplo, reflete bem a visão holística dessas mulheres, que possuem uma expressiva sensibilidade para compreender e interconectar as diferentes facetas de seus desafios. “O principal tema discutido entre nós tem sido a sustentabilidade econômica e cultural, pois a partir de uma necessidade mais feminina de valorização da cultura surge a demanda do artesanato. A partir da necessidade de se alimentar melhor aparece a importância dos produtos da roça, da saúde, da questão da terra. Está tudo ligado. E as mulheres enxergam isso”, conclui Maria Alice.
O próximo encontro da Takiná ocorrerá na aldeia Cravari, na TI Irantxe, do povo Manoki.
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Andreia Fanzeres
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