Sem dúvida, a terra é dos índios
Ações de MT contra territórios tradicionais são derrubadas no STF.
Por: Dafne Spolti e Andreia Fanzeres/OPAN
Brasília (DF) e Cuiabá (MT) – Na última quarta-feira, 16 de agosto de 2017, os Nambikwara, os Paresi, os Enawenê Nawê, da região noroeste de Mato Grosso, e os indígenas do Xingu respiraram aliviados pela decisão unânime do Supremo Tribunal Federal (STF) que reconheceu serem inequivocamente as terras desses povos de ocupação tradicional. Por oito votos a zero, julgaram improcedentes as Ações Civis Originárias (ACOs) 362/1986 e 366/1987, movidas pelo estado de Mato Grosso contra a União e a Fundação Nacional do Índio (Funai). No processo pedia-se indenização sob o fundamento que a União teria criado terras indígenas sobre áreas devolutas.
“A vitória foi muito boa pra nós. Muito bom as autoridades reconhecerem a realidade que os antropólogos apresentaram. Por isso a gente ficou muito alegre. Algumas pessoas até tremeram de alegria. Era um sonho nosso”, disse Ruandu Aba Suyá, do Parque Indígena do Xingu. Enquanto ele estava em Brasília com outros xinguanos, os Guarani-Kaiowá, os Apiaká, os Tupinambá e outros povos, em Cuiabá (MT) acontecia outra mobilização indígena e, nos dois locais, uma grande articulação com os povos quilombolas, atentos a um julgamento também no STF sobre demarcação, mas que foi adiado na última hora.
O ministro Marco Aurélio mencionou a linha histórica de garantia das terras tradicionais aos indígenas, citando desde a Constituição Federal de 1934 até a de 1988, lida por ele ponto a ponto. “Mais pedagógica não poderia ter sido a Constituição”, afirmou. “Desde a Carta Magna de 1934 não se pode caracterizar terras ocupadas pelos indígenas de devolutas”, continuou.
De acordo com o ministro Marco Aurélio, as alegações do estado de Mato Grosso são pouco consistentes. O ministro falou especificamente sobre o laudo feito pelo antropólogo João Dal Poz, que chamou de substancioso. Nele são mencionadas as expedições dos irmãos Vilas Boas, referências arqueológicas, cartas do Marechal Rondon, entre outras evidências da tradicionalidade da ocupação indígena. Mencionou também as informações apuradas pelo antropólogo Rinaldo Arruda, que comprovam a presença indígena dos Paresi em seu território desde o ano de 1553; pelo menos 300 anos de registro sobre os Nambikwara e também sobre os Enawenê Nawê. “São laudos elaborados segundo os cânones científicos. São impecáveis tecnicamente”, afirmou o ministro Ricardo Lewandowski.
Alexandre de Moraes, que recentemente se tornou ministro do STF tendo antes ocupado brevemente o Ministério da Justiça por indicação do presidente Michel Temer, também votou contra o estado de Mato Grosso. “Terras devolutas ocupadas por indígenas não existem. Ou são devolutas ou são de ocupação indígena”, disse. Segundo Moraes, nas ações 362 e 366, Mato Grosso parte de alegações genéricas da Constituição Federal de 1891, segundo a qual algumas terras passariam ao domínio dos estados, o que não cabe em relação às terras indígenas. “Não me parece que haja provas de que as terras tenham se tornado devolutas e por outro lado há comprovações inequívocas de que houve permanência dos povos”, concluiu.
O ministro Roberto Barroso explicou que somente pode ser descaracterizada a ocupação se indígenas tivessem deixado a área voluntariamente ou “em caso de perda das relações culturais”. “O estado de Mato Grosso não conseguiu fazer a titularidade dessas áreas. Os laudos são textuais e taxativos no sentido de demonstrar a tradicional ocupação. A posição de Mato Grosso não pode ser acolhida”, enfatizou.
Marco temporal
Apesar do grande receio em relação à tese do marco temporal – uma interpretação jurídica adotada no julgamento no STF da Petição 3388, que discutiu a demarcação da TI Raposa Serra do Sol, em Roraima, e considerou apenas naquela circunstância que as terras reconhecidas aos indígenas eram aquelas em que eles se encontravam em 1988 –, esta discussão não ocorreu no caso das ações movidas pelo estado de Mato Grosso.
Os ministros avaliaram que se tratavam de situações simples em que a principal questão era provar a presença ou não dos indígenas, o que foi colocado inclusive pelo ministro Roberto Barroso, relator do julgamento dos embargos de declaração sobre a demarcação de Raposa, ocorrido em 2013. Ele reafirmou que as condicionantes e o argumento que reconheceu ser dos indígenas as terras ocupadas em 1988 não devem ser vinculantes a outros processos de terras indígenas pelo Brasil.
Apesar disso, o ministro Gilmar Mendes ofendeu povos e relativizou o direito à terra retomando o julgamento da demarcação de Raposa. Citou a passagem de linhões dentro da terra indígena, o abandono do Estado e ao mesmo tempo o grande apoio oferecido pelas Forças Armadas. Enfatizou a vitimização dos indígenas diante das dificuldades de acesso e de uma proposta econômica, resultando em uma clara defesa da tese de que não devem ser feitas mais demarcações. Ele afirmou que há muitas coisas com que se preocupar e que quando os povos reivindicam normalmente é para pedir mais terra. “O debate está muito mal colocado”, disse ele, parecendo se esquecer que o direito indígena é fundamental e originário e não apenas uma questão de opinião.
Sobre o marco temporal, chegou a dizer que “dependendo do conceito talvez tenhamos que devolver Copacabana aos índios”, mas, por outro lado, lembrou-se da infância vivida em Mato Grosso, “eu convivia com esses índios. Não há a menor dúvida de que estavam ali”.
Mas recorreu a velhos paradigmas e preconceitos não esperados de um ministro que tem o dever de defender a Constituição ao questionar, por exemplo, que alguns indígenas andem de bicicleta; que alguns sejam brancos, ou negros. “O que é conveniente? É ser sem-terra ou ser índio?”. Ao término do julgamento, os Tupinambá de Olivença, da Bahia, a quem Gilmar Mendes se referiu como “Valença”, saíram por um lado contentes com o resultado das ACOs, mas, por outro, ofendidos pela fala do ministro. “As primeiras falas [do julgamento] foram muito boas. A última um desastre”, disse a cacique Valdelice Amaral. “Ele queria encontrar índios daquela forma, de como era antes, sendo que fomos o povo mais massacrado que existiu? Agora em 2014 foram 33 assassinatos de índios que deixaram suas famílias e até agora não teve ninguém julgado. É a maior ignorância”, disse ela.
No centro do debate, Mato Grosso faz grande mobilização
Em Cuiabá, indígenas uniram-se ao movimento negro e quilombola em uma mobilização para dar visibilidade ao importante julgamento que estava em curso no STF. Num ato pacífico em uma das principais avenidas da cidade, cerca de 100 pessoas levantaram cartazes e entoaram palavras emocionantes sobre a luta dos povos por seus territórios. No meio da manhã, chegou a notícia de que o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3239 — movida pelo Partido Democratas, sobre o decreto que estabelece as regras para a demarcação de terras quilombolas — havia sido adiado. Isso, no entanto, não tirou o brilho do movimento que seguiu fortalecido.
Embora não tenha sido discutida pelos ministros, a tese do marco temporal foi permanentemente criticada pelos indígenas, quilombolas e representantes das organizações da sociedade civil presentes à mobilização em Cuiabá. “Se não estávamos em nossas áreas antes de 1988 foi porque nos tiraram de lá. Estamos aqui para que as nossas vozes sejam ouvidas, para dizer que não admitimos nenhuma terra indígena a menos, nenhuma terra quilombola a menos”, bradou Gonçalina Almeida, da Comunidade Quilombola Boa Vida – Mata Cavalo, representante do movimento quilombola.
“Estamos atentos aos parlamentares que estão votando a favor de tantos retrocessos. Vamos nos lembrar disso nas próximas eleições e acompanhar de olhos bem abertos, pois as violações acontecem muito rápido”, disse Soilo Chue, do povo Chiquitano. “Estamos num ato pacífico, dizendo ‘não’ ao marco temporal. Os ruralistas estão fazendo de tudo para que ele seja aprovado, mas nós vamos continuar resistindo”, avisa o indígena.
“Somos contra toda e qualquer forma de exclusão. Basta de roubo de nossas terras, de intolerância, de preconceito. Ainda hoje precisamos chamar a atenção do povo de Mato Grosso depois de tanto tempo de luta! É uma pena que o Brasil esteja vivendo um momento tão triste”, lamenta Antonieta Luísa Costa, presidente do Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial e do Instituto de Mulheres Negras de Mato Grosso.
Ressaltando a importância da participação dos jovens na luta indígena e nos processos de construção das políticas, Eric Timóteo, do povo Bakairi, lembrou das palavras de Davi Kopenawa, líder do povo Yanomami. “No centro da discussão estão as terras indígenas, a nossa mãe. A terra não é commodity”, falou.
“O movimento social em Mato Grosso está unido. Nós estamos de parabéns. Mesmo com o resultado positivo desse julgamento, não vamos dormir, estaremos em alerta”, adverte Estevão Taukane, do povo Bakairi. “Que as nossas vozes não se calem e que a nossa luta não acabe”, encerrou Timóteo.
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