Apagão socioambiental
Bolsonaro ignora a autodeterminação dos povos indígenas e o papel fundamental das áreas protegidas.
Desde o primeiro dia do governo Bolsonaro, tem sido nítido para quem acompanha a pauta socioambiental que o prejuízo à conservação da natureza e aos direitos sociais no Brasil vem atingindo dimensões inexplicáveis. No discurso do presidente na Assembleia Geral da ONU, em que desprezou a ciência, a história, a diplomacia e a democracia, foi a vergonha alheia que se popularizou. O tom bélico que escandalizou lá fora, entretanto, condiz com o que está acontecendo aqui dentro.
A alta do desmatamento e os incêndios florestais deste ano na Amazônia são efeitos esperados da desgovernança institucionalizada que se materializa quando, por exemplo, o governo adota a estratégia de desmoralizar e calar órgãos oficiais de proteção ao meio ambiente. Quando persegue servidores, desqualifica e retira a sociedade civil de espaços de acompanhamento e aprimoramento de políticas públicas, quando contingencia orçamentos já pífios para a pasta ambiental e quando nega a importância das políticas de clima. Quando ignora a autodeterminação dos povos indígenas e o papel fundamental das áreas protegidas na garantia da biodiversidade, ataca gratuitamente as ONGs e abala relações diplomáticas históricas e ao destruir estratégias bem-sucedidas para o controle do desmatamento, como o Fundo Amazônia, sem motivo ou proposta alternativa, nos encontramos em meio a um apagão socioambiental.
Esses quase dez meses de governo tiveram como complicador o alinhamento explícito do presidente da República e do ministro do Meio Ambiente com os setores responsáveis pelas maiores pressões contra a floresta e suas comunidades. Prometeram em rede nacional a invasores de áreas protegidas que o Ibama e o ICMBio não iriam mais incomodar, a garimpeiros e madeireiros ilegais que teriam suas atividades legalizadas, e ao segmento do agronegócio favorável à liberação irrestrita de novos agrotóxicos, que façam “justiça” com as próprias mãos, podendo se armar em áreas de conflito, agora respaldados pela lei.
Entre tantos retrocessos que marcam 2019 na área ambiental, este ano já entrou para a história porque, pela primeira vez, os brasileiros foram às ruas em nome da preservação da Amazônia. Um tema tão fundamental em tempos de acordos globais pelo equilíbrio climático, mais recorrente em manifestações em países estrangeiros, jamais havia mobilizado a opinião pública como vimos em algumas das maiores cidades do Brasil desde agosto. É preciso fazer mais.
Em resposta, novamente Bolsonaro anuncia compromissos vazios e incompatíveis com sua política interna, que cada vez menos gente leva a sério. Os perfis supostamente técnicos que deveriam ocupar os cargos da administração pública são, na área ambiental e indigenista, explicitamente inaptos, a serviço de uma intenção fantasiosa de liberar a Amazônia para a exploração econômica a partir de um plano paranoico revelado, recentemente, pelo site The Intercept.
O clima de vale-tudo e da impunidade não será facilmente vencido, exatamente num momento em que a Amazônia se aproxima, segundo nossos mais renomados cientistas, de um limite cujas mudanças passarão a ser irreversíveis para a recomposição da floresta e para todos os serviços que ela presta ao Brasil e ao equilíbrio climático global. Para sair da rota de colisão contra si mesma, a população brasileira precisa encarar esse tema como prioridade, indo às ruas, cobrando respostas e demonstrando no voto que não tolera mais irresponsabilidade com o seu maior patrimônio.
Artigo originalmente publicado no jornal O Globo.
Andreia Fanzeres é jornalista e coordenadora do Programa de Direitos Indígenas da Operação Amazônia Nativa.
Foto: Terra Indígena Maraiwatsédé, aldeia Aopã, out. 2018. Giovanny Vera/OPAN.