Com teto de gastos, enfrentamento à Covid-19 em terras indígenas é dificultado
Dados mostram como as medidas de austeridade fiscal reduziram recursos de órgãos públicos responsáveis pelo combate à pandemia do novo coronavírus entre indígenas. Servidores denunciam precarização.
Por Beatriz Drague Ramos/OPAN
São Paulo (SP) – “Estamos sempre no limite, descobrindo que o limite é sempre maior”. A sensação de desgaste no dia a dia de trabalho é declarada por um dos servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai) que preferiu não se identificar na reportagem. A impressão do profissional de carreira não é à toa, já que, ao longo dos últimos anos, o órgão vem sofrendo com cortes orçamentários e mudanças constantes na gestão de suas diretorias e coordenações regionais.
As trocas na presidência e as indicações políticas são alvo de críticas constantes por parte de diversas organizações sociais. Hoje quem comanda a Funai é o delegado da Polícia Federal, Marcelo Augusto Xavier da Silva. Marcelo foi assessor da comissão parlamentar de inquérito (CPI) da Funai e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) na Câmara dos Deputados, a convite de deputados da bancada ruralista.
Recentemente, a Funai esteve envolvida em disputa judicial para nomear um pastor evangélico para a chefia da Coordenação-Geral de Proteção a Índios Isolados e de Recente Contato da Funai o que contraria a política do próprio órgão para relacionamento com povos isolados e de recente contato.
Segundo o servidor da Funai sob condição de anonimato, as últimas mudanças no alto escalão do órgão são resultado de anos de sucateamento e se refletem nas pontas, ou seja, coordenações regionais (CRs). “Com mudanças na direção da coordenação em que trabalho vieram os cancelamentos de acordos de cooperação técnica com organizações sociais, tentativas de promoção da atividade pecuária e o questionamento do diálogo com as instituições. Foi um momento difícil de tentar trabalhar. A gente até consegue fazer as atividades previstas, mas a qualidade caiu”, lamenta o profissional.
Essas declarações traduzem-se em números. O relatório “O Brasil com baixa imunidade – Balanço do Orçamento Geral da União 2019”, divulgado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) em abril, aponta uma redução de 23% no orçamento autorizado do órgão entre 2013 e 2019, passando de R$ 870 milhões em 2013, para um orçamento de R$ 673 milhões em 2019.
O estudo mostra como a Emenda Constitucional 95/2016, conhecida como Teto de Gastos, em curso desde 2017, instituída no governo de Michel Temer, reduziu recursos de programas sociais importantes, que hoje tornam mais difícil o combate à pandemia da Covid-19. No caso dos povos indígenas, os efeitos recaem sobre as 39 CRs espalhadas pelo Brasil, consideradas as pernas e os braços da instituição nos territórios.
Alessandra Cardoso, pesquisadora e assessora política do Inesc, avalia o orçamento da Funai como opção política. “Hoje, com o Teto de Gastos, o orçamento da Funai representa apenas 0,02% do orçamento da União. Em termos comparativos, o que o governo federal concede de subsídios à Petrobras e petroleiras estrangeiras para extração do petróleo brasileiro é da ordem de R$ 20 bilhões anuais, ou seja, um valor três vezes maior do que o orçamento anual da Funai. A conta dá uma dimensão de que o problema não é orçamentário ou de grandeza, é de ordem política. Desta forma, o orçamento segue sendo estrangulado ano após ano. Demarcar terras indígenas e garanti-las aos povos implica em barrar interesses privados poderosos de exploração de recursos que hoje estão fora do mercado”, argumenta Alessandra.
Situação de carência nas Coordenações Regionais de MT e do AM
A redução orçamentária é clara nos estados de Mato Grosso e do Amazonas. A CR Ribeirão Cascalheira, em MT, por exemplo, segue no topo desse ranking com uma queda de 67% em seus gastos efetivos entre 2018 e 2019. A CR Xingu, no mesmo estado, sofreu com corte de gastos de 48,2%, no período. No Amazonas, a CR do Rio Negro desponta com redução de 48% de seus gastos efetivos, em seguida vem a CR do Madeira, com 27%. Em Mato Grosso, a CR Xavante teve 13% de seus gastos efetivos diminuídos.
O servidor da Funai do início da reportagem alega que um dos maiores problemas está no corte de funcionários. “Desde 2013 nós sofremos com um déficit de 20 servidores. Hoje o déficit é de 30. Nós cuidamos de cerca de 70 mil indígenas e de um território com quatro municípios. Dos nossos 19 servidores, apenas seis atuam diretamente com os indígenas. Isso atrapalha na dinâmica de trabalho. Por exemplo, na fiscalização, às vezes aparece alguma emergência. Como é que vai, se não tem gente? ”, questiona.
Outra profissional que preferiu não se identificar também critica a baixa capacidade de execução orçamentária da CR em que trabalha. “Temos dificuldade para fazer aquisições e contratos devido ao quadro de servidores do administrativo ser pequeno. Mas também de executar muitas das atividades previstas pelo mesmo problema. Em meio a tudo isso, lidamos com as necessidades dos indígenas, que são enormes, devido à vulnerabilidade. Voltamos todas as ações para as atividades essenciais, como a entrega de cestas básicas e a fiscalização nos acessos das aldeias”, aponta.
Em meio à pandemia do novo coronavírus, o orçamento autorizado de 2020 é ainda menor do que em 2019. São R$ 625 milhões contra R$ 673 milhões do ano passado. Com o congelamento de parte do valor pelo Teto de Gastos e pela Regra de Ouro, um dispositivo que proíbe o governo de fazer dívidas para pagar despesas correntes, como contas de luz, benefícios de aposentadoria, salários e outros custeios da máquina pública. O valor R$ 129,6 milhões do orçamento total ainda depende de aprovação legislativa. Com isso, o relatório do Inesc revela que “o que se tem de fato aprovado até agora para a Funai são apenas R$ 495 milhões”, diz um trecho do documento.
Até junho deste ano a Funai recebeu um acréscimo de R$18,24 milhões com as Medidas Provisórias (MPs) 942 e 965, além de mais R$ 4,69 milhões de alocação de recursos próprios para o enfrentamento da pandemia. Assim, para o enfrentamento da Covid-19, o órgão dispõe de R$ 23 milhões, mas executou apenas R$ 6,2 milhões, o que corresponde 27% do orçamento disponível e 0,96% do orçamento total do órgão.
De acordo com dados divulgados pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o valor gasto pela Funai nos cinco primeiros meses de 2020 é o mais baixo dos últimos dez anos Em valores reais são R$ 189 milhões, segundo os dados da plataforma Siga Brasil, do Senado.
Na visão de Leila Saraiva, assessora política do Inesc, a baixa execução dos recursos é resultado do desmonte estrutural da Funai. “A Funai tem pouca capacidade de gastar esses recursos pela pouca quantidade de funcionários nas pontas, pelo desmonte da estrutura, bem como pelo aparelhamento militar do órgão que acarreta na perseguição ideológica e na baixa nomeação de profissionais técnicos”, resume.
Nesse sentido, Fernando Viana, coordenador de política indigenista da Indigenistas Associados (INA), avalia a situação orçamentária da Funai como um retrato dos interesses anti-indígenas norteadores de nomeações e decisões dentro do órgão e demais áreas relativas à gestão ambiental e fundiária.
“A debilidade orçamentária da Funai é apenas uma das expressões da ação dos setores anti-indígenas. A Covid-19 torna o quadro todo muito mais dramático. Somos informados de que a Funai comprou uma nova viatura para esta ou aquela unidade regional e distribuiu cestas básicas entre tantas aldeias, pois isso deve ser feito com base no orçamento existente e em dotações emergenciais. Entretanto, nunca saberemos quanto sofrimento e quantas mortes poderiam ter sido evitadas se a existência de Funai e da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) “nas pontas” fosse a expressão de uma política indigenista coordenada para proteger, esclarecer e prevenir a incidência e a difusão do novo vírus junto aos povos indígenas”, crítica Viana.
Saúde indígena fragilizada
O enfraquecimento das políticas de saúde indígena diante da pandemia do novo coronavírus também é revelado no levantamento feito pelo Inesc. Apesar da disseminação da doença, a pesquisadora Alessandra Cardoso revela que houve queda nos gastos em 2020. “Nos primeiros quatro meses de 2019 foram gastos R$ 518 milhões, neste ano o valor caiu para R$ 456 milhões na saúde indígena”.
Segundo o relatório, a área foi uma das que mais perdeu recursos entre as políticas públicas voltadas aos direitos dos indígenas no ano passado. Houve redução de 5% no valor autorizado pelo governo federal no programa “Promoção, Proteção e Recuperação da Saúde Indígena”, executado pela Sesai, entre 2018 e 2019. A queda, no entanto, chegou a 16%, considerando os valores realmente executados pela União, saindo de R$ 1,76 bilhões em 2018 para R$ 1,48 bilhões.
O enxugamento orçamentário foi seguido de tentativas de mudanças na política diferenciada de saúde indígena, com o fim do Programa Mais Médicos que, por exemplo, respondia por quase 56% dos postos de atendimento aos indígenas. Com isso, a prestação de serviços médicos foi prejudicada e o programa substituto. O “Médicos pelo Brasil”, não foi capaz de suprir as vagas de modo a normalizar o atendimento.
Médico na atenção indígena de 2014 a 2019, Lucas Albertoni relata que chegou a ser o único médico disponível no DSEI Tapajós quando houve a extinção do Programa Mais Médicos. “Na época éramos 13 médicos, eu de brasileiro e 12 cubanos. Quando eles saíram eu fiquei sozinho para atender todo o distrito. Foram meses até ter autorização dos formados no exterior para serem contratados pelo mesmo programa. Com isso, a qualidade dos atendimentos caiu”.
O profissional de saúde, que também atuou no DSEI Vale do Javari, no Amazonas, onde vivem povos isolados e de recente contato, lembra que a situação orçamentária acarretou diversos tipos de problemas estruturais e que hoje resulta no aumento exponencial de mortes entre os povos indígenas com o avanço da Covid-19.
“Faltam insumos para logística, como combustível, embarcação e manutenção. Os atrasos no desenvolvimento de sistemas de abastecimento de água da aldeia geram um aumento das doenças infecciosas diarreicas, provocando consequências no trabalho da saúde. Além da terceirização dos funcionários na saúde indígena, isso é muito ruim porque você não consegue fixar o profissional, não tem um plano de carreira. Agora com a Covid-19, com certeza a situação está muito mais complicada. Eu acho difícil haver um atendimento diferenciado agora. Deve ser feito, mas eu acho improvável que o Estado vá respeitar isso nesse momento que estamos vivendo”, questiona Alberoni.
Até o dia 02 de julho, foram oficialmente registrados 121 povos indígenas atingidos, 10.373 casos de infecção e 412 mortes, segundo informações do Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena divulgado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).
O vice-coordenador da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Mario Nicácio, confirma a articulação insuficiente do Estado no tratamento específico à saúde indígena no atual momento, sugerida por Albertoni.“Há um aumento na contaminação e no alto índice de mortes. Estamos nos mobilizando com outras organizações para evitar as mortes e fazer a prevenção da saúde dos povos indígenas, mas falta implementação dos planos dos entes estatais, no sentido de atender de uma forma específica os povos indígenas do Brasil. Cada povo precisa de um hospital de campanha, de equipamentos de proteção, de apoio com gêneros alimentícios. É uma demanda urgente”.
No final do mês de maio, o Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030 (GT Agenda 2030) e a Coalizão Direitos Valem Mais, que juntos reúnem cerca de 230 organizações da sociedade civil, entre elas o Inesc, lançaram uma campanha pelo fim do Teto de Gastos. Além disso, as entidades apresentaram uma petição ao Supremo Tribunal Federal (STF) pela suspensão imediata da EC 95 para que o Brasil possa responder adequadamente à pandemia da Covid-19.
Procuradas, a Funai e a Sesai não responderam aos questionamentos enviados até a publicação desta reportagem.
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