Coronavírus ameaça a vida, a dignidade e a autonomia do povo Xavante
Os indígenas atravessaram o pico da doença e agora precisam lutar para manter seus direitos e enfrentam discriminação ao acessar serviços de saúde.
Por Liebe Lima, Beatriz Ramos e Josie Jeronimo/OPAN
São Félix do Araguaia (MT) – Nos meses de maio e junho, o povo Xavante atravessou o pico do número de óbitos da Covid-19, segundo dados do Boletim Epidemiológico DSEI Xavante. Semana após semana, os indígenas sofreram a perda da memória coletiva, ceifada em consequência da morte dos parentes mais velhos, e a angústia da interrupção precoce das histórias de vida, sepultadas com as crianças que não sobreviveram à doença. O gráfico desse sofrimento ainda existe e registra mortes, mas a curva não é mais ascendente. No entanto, só no fim de julho e início de agosto o governo federal mobilizou forças militares para entrar nas aldeias e oferecer um socorro tardio.
A Missão Xavante chegou atrasada. E como se não bastasse a falta de timing, os militares escalados pelo governo chegaram transpassando direitos legalmente consolidados. Em flagrante afronta à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre os Povos Indígenas e Tribais, a Missão Xavante desembarcou em Mato Grosso sem estabelecer ampla consulta prévia. O diálogo intercultural foi muito limitado ou não existiu. A articulação para as ações de saúde comandadas por militares teria se resumido a duas reuniões realizadas na Câmara Municipal de Barra do Garças.
A estratégia de comunicação foi insuficiente para alcançar as oito terras e mais de 200 aldeias Xavante. Não houve investimento para adaptar os informes às línguas originárias ou criar comunicados em uma língua oficial amplamente acessível. As lideranças foram orientadas apenas a preparar a pista para o helicóptero militar pousar. O show de mobilização das forças militares coincidiu com o período em que o governo federal foi ameaçado de sofrer barreiras no comércio exterior, devido à negligência com questões socioambientais. O estopim das críticas da comunidade internacional foi a divulgação de um estudo da revista Science. A pesquisa associou o descontrole da pandemia à ausência de uma efetiva política ambiental.
O atropelo à autonomia dos povos e a resposta tardia da ajuda governamental geraram um sentimento de desconfiança e rejeição entre uma parte dos indígenas, em relação à Missão Xavante. Alguns – a exemplo do cacique Damião Marãiwatsédé – impediram a entrada dos militares alegando a defesa do direito à consulta prévia. “Nós não fomos consultados. O governo está cada vez mais tirando direitos dos índios. As mortes nas aldeias aconteceram por mau planejamento, programações ruins. No início do novo coronavírus, ninguém veio tomar providências”, contesta o cacique Damião.
Outros líderes temeram que a missão do governo tivesse o objetivo de promover vacinação em massa para exterminar os indígenas. Quando a informação não chega, as notícias falsas imperam, alerta o próprio Ministério da Saúde. A máxima se aplica principalmente em uma região marcada por conflitos, a exemplo das terras Xavante, onde os indígenas enfrentam um ambiente adverso, com a presença de muitos atores sociais que não têm apreço e respeito pela cultura e pela tradição dos povos.
O jurista André Bezerra, ex-presidente da Associação de Juízes para a Democracia, elenca falhas do governo na promoção da Missão Xavante. Bezerra afirma que o diálogo com as lideranças indígenas é um dever do Estado, mesmo em um período de pandemia. Segundo o jurista, os supostos encontros realizados na câmara municipal não substituem as articulações interculturais necessárias para a tomada de decisão. “Excepcionalidade é um termo que tem sido usado para justificar práticas autoritárias. Essa excepcionalidade em comunidades indígenas não existe, a Constituição e outros documentos dão plena autonomia para as comunidades. O dever do diálogo estabelecido pela OIT 169 indica que é preciso ouvir o indígena e isso deve se se dar de acordo seus usos, costumes e tradições e não os usos, costumes e tradições dos brancos”, afirma.
Em vez de intervir como fiscal da lei, o Ministério Público Federal (MPF) em Mato Grosso tenta transferir aos indígenas a “culpa” pelas más políticas públicas de saúde. O MPF que atua em Barra do Garças (MT) quer responsabilizar lideranças indígenas que se recusaram a receber forças militares pelas mortes em decorrência da Covid-19 que ocorrerem nas aldeias. O jurista André Bezerra discorda. “Uma liderança indígena pode exigir do Estado brasileiro o cumprimento do direito brasileiro. Não há nenhuma ilegalidade nisso”, argumenta. O cacique Tsupto, da Terra Indígena Pimentel Barbosa, também do povo Xavante, questiona as prioridades do trabalho das autoridades, em meio à pandemia. “Há muita coisa que cabe ao MP fiscalizar. Por exemplo, será que o MP está acompanhando como os indígenas estão sendo tratados nos hospitais?”, critica.
Indígenas enfrentam discriminação
O mesmo vírus que serve de aval para que o governo drible leis internacionalmente consolidadas amplia o olhar discriminatório contra os indígenas. Em Mato Grosso, há casos em que unidades de saúde pública restringem o acesso dos Xavante de Marãiwatsédé aos serviços com a alegação de que os povos não têm controle sobre a disseminação do corononavírus em suas aldeias. A contradição foi cruelmente flagrada no episódio de desrespeito humano sofrido por Liliane Xavante. A mulher de 26 anos, grávida de 38 semanas, queria dar à luz no conforto emocional de sua aldeia. Teve problemas e precisou ser atendida na rede hospitalar. Liliane sentia as movimentações do filho em seu ventre quando chegou ao Hospital Regional João Abreu Luz, em São Félix do Araguaia (MT).
Devido à disseminação de informações insidiosas sobre o alastramento da epidemia entre o povo Xavante, Liliane foi tratada como um possível vetor de transmissão do novo coronavírus e não como uma gestante que precisava de ajuda para garantir sua saúde e a da criança que carregava. A história teve um infeliz desfecho, o bebê de Liliane morreu.
Longe do apoio afetivo dos parentes de sua aldeia, a indígena teve que sofrer a perda do filho e a discriminação. O hospital que a atendeu não fez a cesárea que deveria retirar o natimorto alegando que o único cirurgião disponível tinha mais de 60 anos e não poderia realizar o procedimento para não ter contato com a indígena contaminada com a Covid-19.
Assim, Liliane Xavante foi transferida para outra unidade hospitalar. Percorreu um trajeto de 500 quilômetros por estradas de terra com o filho morto no ventre. A retirada da criança só ocorreu 72 horas após o óbito, no Hospital de Água Boa.
Os problemas enfrentados pelo povo Xavante têm mostrado que uma pandemia não pode ser derrotada sem os esforços de muitas frentes. Por isso, Ivar Busatto, coordenador-geral da Operação Amazônia Nativa (OPAN), ressalta que articulação e diálogo são primordiais. “É preciso trabalho conjunto. O planejamento de uma comunicação mais ampla garantiria o sucesso de muitas ações e combateria discriminações. O desafio está lançado para todos que podem colaborar no enfrentamento dessa pandemia”, afirma.
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