OPAN

Albano Mutzie, um Rikbaktsa de valor

A OPAN lamenta a partida do bravo líder que conseguiu transformar uma história de vida dura em uma trajetória produtiva e alegre, tornando-se uma referência para o seu povo.

Por Rinaldo Arruda / Presidente da OPAN

Mais um grande amigo se foi nesse terrível ano de 2020.  Porém, o Albano era especial. Nos últimos anos, Albano e eu convivemos bastante nas aldeias Rikbaktsa. E é com muita admiração que, nesse momento triste, me lembro de sua trajetória, que a vida fez dura, mas que ele fez produtiva e alegre.

Menino ainda, perdeu os pais. Órfão, foi levado para o internato jesuítico de Utiariti, como muitas outras crianças de seu povo. Lá, arrancaram seus colares, cortaram seu cabelo, ensinaram português e proibiram sua língua. Ali ficou até a adolescência, quando acabou o internato e os jovens puderam voltar para suas aldeias e povos. Foi talvez quem, desse grupo de jovens, mais conseguiu relembrar, reconstruir e praticar a cultura tradicional, tornando-se uma referência para os Rikbaktsa.

Pesagem da borracha. Albano era um dos responsáveis pelo projeto de comercialização sem intermediários, em meados da década de 1980. Foto: Rinaldo Arruda.

Albano reverenciou as tradições, mas foi também um homem de seu tempo. Pensando e sugerindo caminhos para que os jovens tivessem trabalho dentro do território, procurando novas formas de produção e trabalho. Participou da cooperativa iniciada pela Missão Anchieta e depois passada aos indígenas, no fim dos anos de 1970. Participou do projeto de comercialização autônoma de borracha, em 1986 e 1987. Também foi um dos idealizadores de um projeto de exploração e envasamento de palmito, em 1997, e de muitas outras iniciativas que procuravam aliar o conhecimento tradicional às exigências da modernidade. Sempre atento para não ser “engolido” pelos brancos, mantendo sua identidade e direção.

Jovem ainda, mas já casado com Maria Elisa, sua companheira de vida, foi picado por uma cobra. Sobreviveu, mas teve uma das pernas amputadas na altura do joelho. Já o conheci assim, na aldeia da Primeira Cachoeira, hoje aldeia Primavera. Era um jovem adulto, bem ativo, participante de primeira hora na resolução dos problemas de seu povo e na luta pela recuperação do território Rikbaktsa.

Albano em Japuíra, durante a construção das aldeias, após o processo de reconhecimento da terra indígena, em 1987. Foto: Rinaldo Arruda.

Mesmo com alguma dificuldade de locomoção (usava muleta ou, principalmente fora da aldeia, vestia sua perna mecânica), Albano não só era ativo na política e nas lutas de seu povo. Mais de uma vez, eu o vi jogando futebol, esporte que ele gostava muito, na posição de goleiro, e sem fazer feio. Pescava, caçava, tocava roça. Ficando mais velho, virou o técnico do time de futebol Rikbaktsa, orientando a moçada com uma visão mais estratégica do jogo.

Grupo de trabalho da Funai que fez os estudos de identificação dos limites da Terra Indígena do Escondido. Foto: Rinaldo Arruda.

Muitas risadas já demos juntos. Ele e sua família sempre me receberam com muito carinho e amizade. Passei bons tempos hospedado por eles quando moravam no rio do Sangue. Ele e sua mulher Maria Elisa formaram um casal harmonioso. Um sempre apoiando o outro nos momentos difíceis da vida. Até hoje, um exemplo para todos. Criaram filhos ativos e participantes na vida do povo Rikbaktsa, aos quais ele e Maria Elisa passaram suas qualidades de coragem, clareza de pensamento, disposição para a ação, solidariedade, fidelidade aos amigos, abnegação no que faziam.

Neste ano de 2020, perderam seu filho mais velho, Nelson Mutzie Rikbaktsa, levado pela covid 19. Nelson, assim como a mãe, trabalhava na área da saúde indígena. Um baque duro para todos e com certeza mais duro ainda para Albano, Maria Elisa e seus filhos.

Em 2017, Albano me recebeu e me acompanhou ao longo da visita que fiz a muitas das aldeias Rikbaktsa, junto com minha filha Marina. E depois, em 2018 e 2019, esteve comigo durante o processo de elaboração do Plano de Gestão Territorial e Ambiental Rikbaktsa.  Forneceu informações preciosas sobre sua cultura, mitos, cantos, práticas tradicionais, indicando pessoas com as quais eu devia falar, lugares importantes a visitar e registrar, relembrando episódios da história de contato, falando do que viveu e presenciou ao longo de sua vida.

Sempre incisivo e crítico, de mente clara, indicando os caminhos e combatendo tudo o que era prejudicial aos Rikbaktsa, à sua cultura, aos humanos e ao mundo. Várias vezes presenciei o Albano sendo procurado por outros Rikbaktsa, com os quais ele compartilhava seu maior conhecimento e aprendizado da cultura tradicional e da história de seu povo. Professores o procuravam para saber mais para ensinar aos alunos, jovens o procuravam para saber de cantos, da história e de outros conhecimentos tradicionais, pesquisadores e gente de fora o procuravam e ele esclarecia e ensinava.

Albano e seus parentes Rikbaktsa em Brasília, lutando pelo reconhecimento do direito à terra indígena Japuíra. Foto: Padre Antonio Iasi.

Albano foi um grande batalhador para a formação da primeira associação indígena Rikbaktsa, a ASIRIK, fundada em 1995, e foi seu primeiro presidente. Em 2011, desenvolveu um projeto de resgate cultural e da história Rikbaktsa, parceria da ASIRIK com a Coordenação Regional da Funai no Noroeste do Mato Grosso, financiado pela Funai e pelo Museu do Índio, no qual entrevistou em vídeo vários anciões e lideranças, sendo que alguns deles já não estão mais entre nós. Juntou, com isso, um material muito rico para a consulta e a memória do povo Rikbaktsa. Hoje, o presidente da Associação Indígena Rikbaktsa – ASIRIK é seu filho Jaime.

Eu e todos os companheiros da OPAN, que tivemos a oportunidade de conviver com Albano e com o povo Rikbaktsa, lamentamos sua partida e nos solidarizamos com seus familiares e com seu povo nessa hora de dor.

Estamos juntos e honraremos sempre a memória de Albano Mutzie. Que nessa hora esteja junto de seu filho querido, na aldeia ancestral, junto com todos os que para lá se foram. Que esteja em paz.

17 de setembro de 2020

 

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