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Covid-19: levantamento revela precariedade na saúde indígena em MT

Checagem de dados, realizada pela Operação Amazônia Nativa, apontou problemas de estrutura nos Distritos Sanitários Especiais de Saúde Indígena. Maior apoio aos profissionais da saúde indígena é uma das saídas necessárias.

Por Beatriz Drague Ramos/OPAN

Falta de estrutura e ausência de ações antecipadas contra a covid-19. Esse é o cenário dos Distritos Sanitários Especiais de Saúde Indígena (DSEIs) revelado pelos dados sistematizados a que a Operação Amazônia Nativa (OPAN) teve acesso. Com o objetivo de suprir lacunas relativas à transparência sobre a situação da saúde indígena em Mato Grosso, a OPAN analisou relatórios que reúnem informações sobre a infraestrutura dos equipamentos de saúde dos distritos.  As informações mostram, por exemplo, que mais de 80% das Unidades Básicas de Saúde Indígena (UBSI) do DSEI Cuiabá estão em situação crítica, que profissionais lidam com invasões de morcegos, baratas e roedores dentro de estabelecimentos de saúde e que cada Casa de Apoio à Saúde Indígena (Casai) Xavante atende em média 10.900 indígenas, essa é a maior quantidade de pessoas atendidas por uma Casai em MT.

Sete meses se passaram desde o início da pandemia da covid-19 e, apesar dos alertas constantes, a situação persiste. Como resultado da insuficiência das políticas públicas, ainda que haja enorme esforço das equipes multidisciplinares de saúde, o estado de Mato Grosso soma mais de  4 mil casos confirmados e 103 óbitos entre os povos indígenas atendidos pelos DSEIs, segundo dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) contabilizados até a primeira quinzena de outubro. E esses números que já parecem assustadores apresentam-se ainda maiores, segundo o acompanhamento do Comitê Nacional de Vida e Memória Indígena, que registrou 137 mortes de indígenas no estado até o dia 26 de outubro. O grupo, formado por organizações de base junto à Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) tem se destacado por incluir os óbitos de indígenas não aldeados em boletins diários e ressaltar o descompasso dos números. 

Apesar da subnotificação da Sesai, os dados da secretaria e do comitê confluem na identificação da grande velocidade da propagação do vírus, que saltou em junho, no caso da população Xavante. O mesmo ocorreu com os povos atendidos pelo DSEI Cuiabá, onde novos 136 casos confirmados surgiram entre a segunda quinzena de junho e o início do mês de julho.  

Com isso, Mato Grosso perdura na segunda posição entre os estados com maior número de óbitos de indígenas vitimados pelo novo coronavírus. O estado fica atrás apenas do Amazonas, segundo dados registrados pelo Comitê Nacional de Vida e Memória Indígena, até o dia 26 de outubro.  De acordo com o informe epidemiológico divulgado pela Sesai no dia 21 de outubro, os DSEIs que apresentaram maiores taxas de mortalidade estão em Mato Grosso. Cuiabá é o DSEI com maior taxa de óbitos, com 310,9 mortes por 100 mil habitantes, seguido por Vilhena, com 254,3 por 100 mil habitantes e Xavante, com 198,3 por 100 mil habitantes.

Crisanto Rudz Tseremey’wá, presidente da Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso (Fepoimt),  avalia que os DSEIs não agiram de forma antecipada à chegada da covid-19 no estado, sendo esta uma consequência da forma como a doença foi tratada pela presidência da República. “O DSEI Xavante agiu somente quando o vírus chegou entre os indígenas, tudo isso é explicado pelo comportamento do presidente Jair Bolsonaro, que não tomou as providências necessárias a tempo junto ao Ministério da Saúde, à Sesai e aos 34 DSEIs para proteger os indígenas. Se o Subsistema de Saúde Indígena (SasiSUS) está no embrião do SUS (Sistema Único de Saúde) e o SUS está precarizado, com a Sesai não é diferente, é pior ainda.” 

Mulher indígena Xavante durante a Operação Xavante. Foto: Mayke Toscano – SECOM/MT.

O presidente da Fepoimt ainda lamenta as vidas perdidas para a doença. “A perda é irreparável, pois junto com ela vai a história. Nossos anciãos são detentores do conhecimento, do passado, do presente e do futuro. Planejamos o nosso futuro em conjunto. E para o meu povo é uma memória que se vai e não volta nunca mais. A riqueza das histórias que seriam repassadas de geração para geração, muitas famílias perderam e só quem detém esse conhecimento poderia repassar”. 

Assim como Crisanto, Eliane Xunakalo, do povo Bakairi e assessora da Fepoimt, considera que não houve planejamento. Ela afirma que a mobilização começou quando ocorreram as primeiras mortes. “Faltaram medicamentos e profissionais. Após algumas mortes, os DSEIs começaram a correr atrás, a enviar equipes de ação rápida, a conversar e buscar apoio dos governos do estado e federal. Não teve a prevenção como deveria ter tido”, argumenta. 

De acordo com relatório técnico elaborado pela Operação Amazônia Nativa (OPAN) em abril, ações de prevenção e vigilância da circulação do vírus entre os povos indígenas foram prejudicadas ainda no começo da pandemia pelo não reconhecimento da transmissão comunitária dentro das terras indígenas. 

Infraestrutura precária 

Além da maior vulnerabilidade biológica dos povos indígenas em relação ao SARS-Cov-2 e a outros vírus, alguns DSEIs apresentavam infraestrutura precária, como revelaram os Planos Distritais de Saúde Indígena (PDSIs) elaborados em 2019. É o caso do DSEI Cuiabá, que se destaca pela avaliação negativa: 82,6% das Unidades Básicas de Saúde Indígena (UBSI) estão em situação crítica. Na mesma condição estão as Casas de Apoio à Saúde Indígena (Casais), com 60%. Já 40% dos Polo Base (PB) receberam a mesma análise. 

O documento do DSEI Cuiabá aponta ainda que praticamente todas as UBSIs necessitam de reformas, principalmente no telhado e na rede de energia elétrica.  Além disso, o Plano Distrital mostra que outro problema grave nas UBSIs é a invasão de morcegos, baratas e roedores dentro dos estabelecimentos de saúde.

Segundo o PDSI do DSEI Vilhena, a presença de morcegos nas UBSIs também é um fator de risco para as condições sanitárias do local e até mesmo para os profissionais. “Atualmente, 19 unidades encontram-se em situação precária por falta de manutenção predial. Algumas delas interditadas por invasão de morcegos, pois as estruturas não são de laje. Cabe ressaltar que essas unidades também são utilizadas para alojamento dos profissionais, pois o DSEI Vilhena não possui outro espaço para esta finalidade. No entanto, a presença de fezes de morcegos está comprometendo a permanência dos profissionais em algumas unidades, pois, as mesmas causam doenças e o profissional fica exposto a estas situações”, aponta o texto.

No caso do DSEI Xavante, 40,6% das UBSIs estão em estado crítico, assim como 50% das Casais e 33% dos PB. Ressalta-se ainda que cada Casai Xavante atende em média 10.900 indígenas. 

A taxa de letalidade também foi analisada no levantamento realizado pela OPAN. No caso do DSEI Xavante, o mês de junho atingiu índices mais de três vezes superiores aos não indígenas do estado, chegando a 12,4%, quando o restante da população sofria com letalidade de 3,86%. Da mesma forma, o DSEI Xingu chegou à taxa de 7,04%, enquanto a população não indígena detinha uma taxa de letalidade de 3,89%, no mesmo período.

Os dados de infraestrutura também expõem as condições de precariedade quanto aos sistemas de abastecimento de água implantados, com destaque para o DSEI Vilhena, onde pouco mais de 63% das aldeias não possuem este sistema, o que pode comprometer a adoção das medidas de higienização necessárias à prevenção da covid-19 nas comunidades. 

A capacidade do setor de transportes é apontada de maneira crítica no PDSI do DSEI Xingu. Dos 49 veículos de transporte emergencial existentes, somente 20% estão em condições de atender as demandas. “Os mesmos se encontram com seu estado de conservação precário e muitos estão encostados, sem condições de uso”, aponta o documento. 

De acordo com a antropóloga Luciane Ouriques, a situação é de fragilidade do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS), no estado de Mato Grosso. “Tais indicadores apontam para o fato de que o avanço da covid-19 sobre os territórios indígenas encontrou a rede do SasiSUS atuando em condições precárias, o que pode ter comprometido o desenvolvimento de respostas oportunas e a adoção de medidas de proteção às comunidades indígenas frente ao contágio pelo SARS-Cov-2. No contexto da pandemia do novo coronavírus, os DSEIs possuem como desafio garantir a efetivação do direito dos povos indígenas à atenção diferenciada, observando as especificidades étnicas, culturais e epidemiológicas de cada um desses povos”. 

Luciane chama a atenção para a importância da saúde indígena diferenciada. “A primeira diretriz da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI) estabelece os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) como modelo de organização de serviços de atenção primária à saúde em territórios etnoculturais dinâmicos. Os DSEIs, que fazem parte do SasiSUS, constituem ‘um espaço etnocultural dinâmico, geográfico, populacional e administrativo-gerencial, que contempla um conjunto de atividades técnicas, visando medidas racionalizadas e qualificadas de atenção à saúde, promovendo a reordenação da rede de saúde e das práticas sanitárias e desenvolvendo atividades administrativo-gerenciais necessárias à prestação da assistência, com controle social”’. O direito à atenção diferenciada também deve ser observado pela rede de atenção especializada à saúde do SUS, cabendo aos DSEIs pactuarem com os gestores da rede do SUS os termos nos quais o acesso aos serviços de média e alta complexidade devem ocorrer”, esclarece.  

Indígenas durante manifestação no DSEI Cuiabá reivindicando atendimento na área da saúde, em 2018. Foto: Eliane Xunakalo/Arquivo pessoal.

Conforme reportagem da OPAN publicada em julho, houve um enfraquecimento orçamentário da saúde indígena nos últimos anos revelada no relatório “O Brasil com baixa imunidade – Balanço do Orçamento Geral da União 2019”, publicado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) em abril. Segundo o estudo, a  insuficiência da política de saúde indígena ofende os direitos destes povos. “Em 2019, a execução do orçamento foi de R$ 1,48 bilhões, contra R$ 1,76 bilhões em 2018 — cerca de R$ 280 milhões a menos. Isto certamente compromete o atendimento deste grupo da população, que tem diversos indicadores de saúde piores que a média brasileira”, informa o relatório. 

Saúde indígena e recomendações 

Criada em 2010 após anos de luta do movimento indígena, a Secretaria Especial de Saúde Indigena (Sesai) foi instituída  para atender os povos originários em seu direito por uma saúde pública e diferenciada. O órgão faz parte do subsistema do SUS e tem em sua formação 34 DSEIs distribuídos pelo país e organizados a partir de uma mudança na política de saúde indígena em 1999, por meio da Lei nº 9.836/1999, quando foi criado o SasiSUS. São eles os responsáveis por cuidar da saúde de mais de 800 mil brasileiros autodeclarados indígenas e que residem nas terras indígenas. Pela lei, a Sesai não presta atendimento aos indígenas que vivem em zonas urbanas, considerados pela instituição como “não aldeados”. 

Os desafios de assistir os povos indígenas em um país de dimensões continentais, com 305 etnias, revelaram-se ainda maiores durante a pandemia do novo coronavírus, desde março de 2020. Até o dia 23 de outubro, a Sesai contabilizou 470 óbitos entre indígenas no país. 

Ivar Busatto, coordenador geral da OPAN, aponta a valorização da medicina tradicional e dos profissionais de saúde indígena como caminhos fundamentais para o enfrentamento da pandemia enquanto a mesma perdurar. “A primeira recomendação, dado que todos os povos disseram que houve grande utilização dos remédios tradicionais, é o estabelecimento de uma política pública para incentivar essa medicina nos tratamentos. Além disso, o profissional de saúde, principalmente os Agentes Indígenas de Saúde (AIS) e os Agentes Indígenas de Saneamento (AISAN) necessitam de uma maior articulação comunitária para a valorização desses trabalhadores. O tratamento daqueles que possuem conhecimento do território tem um êxito muito maior, por isso é importante a formação dos profissionais de saúde de acordo com a especificidade de cada grupo. É recomendável que os profissionais possam desenvolver uma vivência no dia-dia das comunidades, a fim de compreender as possíveis angústias que abarcam os povos indígenas atualmente, causando também doenças psicossociais”. 

O fortalecimento dos produtos alimentícios tradicionais, com a produção das roças, é também um aspecto lembrado por Ivar na prevenção e combate à covid-19 nos territórios. “O coronavírus indicou que aqueles acometidos por diabetes, hipertensão e problemas coronários, provocados em muitos casos por uma dieta errada e industrializada, têm problemas pela vida toda, não só na pandemia. A covid-19 ataca especialmente quem tem comorbidades, então a divulgação e informação de que o vírus ataca mais essas pessoas, e o fato de estarem mais aldeados, foi um tempo de volta às origens e isso é saudável em termos alimentares. As roças de toco e a produção tradicional devem ser incorporadas como itens de saúde. Deve-se fazer parte de uma discussão com os órgãos de assistência, para que haja um incentivo e favorecimento de maior produção desses produtos”.

Ainda de acordo com o coordenador geral da OPAN, a intensificação da segurança territorial segue como uma questão urgente para que a pandemia não volte a atingir taxas altas de transmissão e de mortes. “A pandemia exige quarentena e isolamento. Os territórios têm que ter mais monitoramento e fiscalização. Os indígenas precisam ter uma vida sossegada porque se tiver madeireiros, entrada e saída de gente nas aldeias, a transmissão sai do controle. As barreiras sanitárias e o ingresso deliberado de pessoas nas terras indígenas trazem muitas doenças de fora, por isso é importante que a segurança territorial esteja garantida”. 

Neste sentido, Eliane Xunakalo relembra que a pandemia ainda não acabou e que, por isso, as medidas de prevenção e combate ao vírus devem ser mantidas entre a população indígena de Mato Grosso. “Estamos pedindo aos nossos ancestrais forças para enfrentarmos todos os desafios, tanto do coronavírus, como os outros que o tornam mais fatal, as invasões, o desmatamento, os incêndios e o racismo. Estamos resilientes e enfrentando a covid-19 que não passou e apreensivos com a segunda onda que acomete alguns países do mundo. No Brasil, percebemos que ninguém está pensando nesta possibilidade, mas é preciso se planejar”, conclui.