Com 27% de aumento, Mato Grosso lidera uso de agrotóxicos em 2020
Além da alta registrada pelo Sindiveg, pesquisa da UFMT mostra que o número de internações de crianças por doenças respiratórias, como a pneumonia química, é maior entre fevereiro a junho, período que coincide com a safra da soja e chuvas no estado.
Por Beatriz Drague Ramos/OPAN
Alergias, plantações destruídas e animais mortos. São essas algumas das consequências da pulverização de agrotóxicos no assentamento Gleba Novo Horizonte. A comunidade estava localizada na cidade de Confresa, nordeste de Mato Grosso. Após 22 anos, a soja tomou conta do local. Quem denuncia a situação ocorrida entre os anos de 1993 e 2015 é o pequeno agricultor Moisés Ferreira Silva, que hoje ainda convive com exposição aos agrotóxicos, de forma menos intensa, em outra pequena propriedade.
Segundo Moisés, após ele e seus pais resistirem às diversas tentativas de expulsão do território com ameaças e agressões físicas, o envenenamento os fez sair do local. “O efeito do veneno é sentido, mesmo. Estávamos ali, respirando, bebendo água com veneno. O ar as frutas estão completamente contaminadas. Tudo o que se produz está contaminado. O que mais me afeta é um problema de alergia, que eu não tinha. Tenho que tomar antialérgico direto e não melhora. Era herbicida e inseticida praticamente todo o dia, e jogavam parece que de forma proposital. Inclusive, até os animais apresentavam sintomas desconhecidos, as vacas caíam do nada, e não tinha cura, morriam mesmo”.
Os acontecimentos relatados por Moisés e sua família se repetem com outras pessoas no estado de Mato Grosso, que em meio à pandemia da covid-19 o teve alta de 27% no uso de agrotóxicos, de acordo com levantamento do próprio Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal (Sindiveg). Em relação às culturas no Brasil, a liderança é da soja (34% da área total), seguida de milho (24%), algodão (15%), cana de açúcar (6%), pastagem (5%), feijão (4%) e hortifrútis (3%).
O estudo ainda aponta um crescimento de 3,4% da área cultivada de soja para a safra 2020/2021. As perspectivas positivas do agronegócio, no entanto, não se repetem entre os pequenos agricultores. No caso de Moisés, o medo de descobrir uma nova doença decorrente do convívio com a chamada ‘deriva’, ou seja, a dispersão da substância (como os agrotóxicos) que se desvia do alvo, é constante. “Outros problemas de saúde podem surgir com o tempo, esses venenos têm um efeito mais lento, que com o tempo vai aparecendo”, conta.
Além da saúde incerta, Moisés também se vê em um cenário econômico desfavorável, devido à covid-19. “A pandemia inicialmente não afetou muito, porque estamos trabalhando aqui na chácara, produzindo dentro da propriedade. Quase não saímos, mas hoje vemos que já está atingindo as pequenas propriedades rurais, pois as pessoas não estão conseguindo sair mais no dia a dia, tranquilamente como era. Com isso, o movimento diminui e prejudica toda a cadeia”, conta Moisés que hoje mexe com a pecuária de leite e auxilia a mãe na produção de verduras, legumes e frutas.
O setor agroindustrial, no entanto, segue incólume aos efeitos da crise sanitária e em vez de sofrer reveses econômicos, registrou faturamento recorde em 2020. O chamado Valor Bruto da Produção Agropecuária (VBP, faturamento) deve alcançar R$ 716,6 bilhões neste ano, segundo o Ministério da Agricultura. Mato Grosso lidera o ranking com 17,5% do valor.
Liberação de agrotóxicos em 2020 segue em ritmo alto
Na visão de Francco Antonio Lima, biólogo e mestre em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de Mato Grosso, é preciso questionar a origem dos ‘ganhos’ do agronegócio. “Mesmo com a pandemia, o setor teve produção recorde. Estão falando que em 2021 vão colher a maior safra de soja, com aumento da área plantada. Mas consequentemente tivemos um dos anos com maior quantidade de desmatamento da série histórica analisada, a maior quantidade de queimadas, invasões de terras indígenas e a liberação de vários tipos de agrotóxicos. Além da manutenção das isenções de seis tipos de impostos e tributos relacionados aos agrotóxicos. Ou seja, existe toda uma série de aparatos legislativos e técnicos para que isso aconteça em detrimento dos efeitos negativos na saúde e das poluições ambientais”, questiona.
O pesquisador ainda argumenta que o aumento da área plantada de soja provoca impactos diretos em produtos da alimentação básica da população. “O nosso arroz está super caro, não plantamos mais arroz para a quantidade que deveríamos para o consumo interno. Reduzimos a área de arroz e aumentamos a de soja, mas ninguém come soja nessa frequência, e assim voltamos para o mapa da fome de novo. Temos que pagar R$ 29 em cinco quilos de arroz, porque o setor prioriza a exportação em invés de alimentar o mercado interno”, critica Francco.
O ano de 2020 continua seguindo a alta tendência de liberação de novos registros de agrotóxicos e de genéricos usados na formulação dessas substâncias. De 2018 até novembro de 2019, foram apresentados, respectivamente, 373 e 438 novas averbações de venenos. Neste ano, foram 364 registros, segundo publicações no Diário Oficial da União.
No fim do mês de novembro, o Ministério da Agricultura liberou o registro de mais 21 agrotóxicos para utilização industrial, isto é, produtos que devem ser utilizados como matéria-prima na produção de agrotóxico para os agricultores.
Banido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o paraquate tem um substituto agora com 5 registros liberados, o princípio ativo dibrometo de diquate, um herbicida. O diquate foi proibido pela União Europeia em 2018, uma vez que pode causar riscos ao aplicador e a pássaros que voam sobre a lavoura.
Francco explica que o aumento do uso de herbicidas e outras classes de agrotóxicos acontece devido à resistência das próprias “pragas” nas plantas. “No monocultivo, você não tem diversidade de plantas, são “cópias”. Então, se uma está suscetível a doença, outras vão estar e aí se utilizam mais e mais tipos de agrotóxicos pra resolver o problema. Várias plantas já têm resistência aos agrotóxicos. A indústria fica muito feliz com isso, tem uma liberação recorde na série histórica desde que o Bolsonaro assumiu a gestão”.
Internações entre crianças expostas a agrotóxicos é maior em período de colheita
Além da alta no uso dos agrotóxicos, uma pesquisa produzida na UFMT em 2019 mostrou que os registros de internação entre crianças de até cinco anos foram maiores no período de fevereiro a junho, que coincide com a colheita da soja, produto mais plantado no estado.
O estudo “Doenças do Aparelho Respiratório em Crianças Menores de 5 anos e Exposição Ambiental aos Agrotóxicos em Mato Grosso”, de Leandro Bispo dos Santos, com orientação de Marcia Leopoldina Montanari, comparou as internações hospitalares das crianças com os volumes de utilização de agrotóxicos por municípios e macrorregiões de economia agropecuária do estado de Mato Grosso.
A pesquisa confrontou os períodos de maior frequência dessas internações com o calendário agrícola de produção das principais commodities (soja, milho e algodão), produzidas em Mato Grosso, no período de 2015 a 2018. As macrorregiões que apresentaram a taxa de internação mais elevadas foram Oeste (44,67%), Norte (35,57%) e Noroeste (32,99%). O estudo também afirma que “essas três regiões têm atividade econômica similar com pecuária e extrativismo vegetal. Logo, o desmatamento é um fator a ser considerado, além dos agrotóxicos”.
Segundo o estudo, o município de Sorriso vence em maior volume de utilização de agrotóxicos e a cidade de Comodoro desponta com a maior taxa de internações entre crianças, como afirma o autor da pesquisa. “Quando analisadas as taxas de internações, notamos que as macrorregiões de economia baseada na pecuária como a oeste, norte e nordeste, possuem os maiores valores, superando até o médio norte que possui a maior média de consumo de agrotóxicos, isso leva à conclusão de que as doenças respiratórias têm como gatilho os períodos de colheita da soja, que se inicia em janeiro, como é o caso de Comodoro que é um município a ser observado com atenção devido aos seus indicadores de saúde. ”
Márcia complementa que Comodoro é uma referência para municípios menores, que apesar de não ter tantas lavouras, recebe muitos pacientes que vêm de regiões agrícolas onde há grandes plantações. De acordo com a pesquisadora, o estudo apresenta um diferencial: o aumento de internações também nas épocas de chuvas. “Uma informação importante do estudo foi que, ao contrário do que outras pesquisas apontam à época de chuva, também é uma época de aumento de internações por doenças respiratórias, não apenas na seca. Nessa época de início das chuvas, entre dezembro e abril, também é intensa a pulverização de agrotóxicos nas lavouras. Então, eles estão plantando e usando veneno em maior quantidade”, acrescenta.
Na visão de Márcia, o estudo deve orientar políticas públicas relacionadas à saúde de crianças com contato direito aos agrotóxicos. “A criança que mora em uma região agrícola de intensa produção fica muito exposta em época de pulverização e aí agravam-se os sintomas respiratórios já crônicos, como a asma, podendo gerar outros problemas, a exemplo da pneumonite química e as próprias infecções das vias aéreas superiores. Isso pode ocorrer pelo ar, por conta do ambiente contaminado. As famílias relatam o cheiro do agrotóxico, não há conscientização em todos esses municípios com relação aos cuidados com a pulverização. Essa pesquisa é muito importante para pensarmos políticas públicas para essas crianças e territórios”, pontua.
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