A luta é global
Membros de organizações representativas dos povos indígenas nas discussões sobre clima resgatam histórico de conquistas e orientam lideranças do Brasil em curso de capacitação.
ANDREIA FANZERES/OPAN
Conhecer a história da participação indígena na Convenção do Clima é se deparar com um percurso de luta e de crescente reconhecimento do papel estratégico das comunidades locais na mitigação ao aquecimento do planeta. Melhor ainda quando essa verdadeira aula é dada por dois experientes representantes indígenas, que em outubro engrandeceram a formação “Lideranças indígenas rumo à COP26”. Com o tema “Povos Indígenas na incidência em Clima: da ECO 92 à Plataforma de Conhecimentos Tradicionais”: Dennis Mairena e Juan Carlos Jintiach.
A sessão começou com a fala de Dennis Mairena, engenheiro agrônomo nicaraguense, com mais de 40 anos de experiência profissional com povos indígenas na Nicarágua, Guatemala, Venezuela, Colômbia, Bolívia e Honduras, acompanha as negociações da Conferência das Nações Unidas para Mudanças do Clima (UNFCCC) há 13 anos e tem desenvolvido trabalhos sobre Consentimento, Livre, Prévio e Informado, além de outros com Fundo para Desenvolvimento dos Povos Indígenas da América Latina e Caribe (FILAC), com o Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola da ONU (FIDA) e com a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO). Com essa bagagem, Dennis falou didaticamente de todo o percurso de construção do arcabouço legal e diplomático das negociações sobre clima desde a Eco 92, passando pela COP15 de Copenhague, COP20 de Lima, e como os povos indígenas foram se organizando para galgar seu espaço nas convenções.
A compreensão sobre o jogo de forças e a formação de blocos de negociação dos países na Convenção também foi importante para situar que direcionamento os povos indígenas devem ter na construção de alianças até que seus direitos sejam devidamente garantidos no escopo das COPs. Nessa esteira, Mairena detalhou o quão importante têm sido os trabalhos do Fórum Internacional de Povos Indígenas sobre Mudanças Climáticas (IIPFCC), uma plataforma de participação aberta aos povos indígenas do mundo que acompanham as negociações sobre mudanças climáticas na UNFCCC, chamada de Cáucus Indígena. “O fórum é convocado duas vezes por ano. Ele se organiza e nomeia seus próprios representantes, que vêm de sete regiões socioculturais no mundo. Ali são formados grupos de trabalho para preparação de declarações, conferências de imprensa, convites para negociadores se aproximarem de nós e discussão em plenária”, explicou Mairena. Ele frisou que o trabalho é voluntário e, por isso, depende do esforço de cada um e que a COP não é uma oportunidade de passeio. “Nossos representantes vão para trabalhar em função dos interesses dos povos indígenas do mundo porque as negociações são globais e não envolvem um povo ou outro. Temos que nos desprender de temáticas específicas para que a luta seja global”, frisou.
O desafio é endereçar tantas questões relevantes trazidas pelos indígenas em apenas dois minutos! Esse é o tempo que, segundo Mairena, é concedido aos observadores no final das sessões plenárias de negociação na UNFCCC. “Precisamos ser muito efetivos e coordenados para enviarmos a nossa mensagem”, relatou. E isso tem tudo a ver com a organização deste fórum onde as questões indígenas são lapidadas. “Hoje temos três presidentes no Cáucus e dois pontos focais, que fazem o vínculo com o secretariado. Toda a comunicação se faz através dessas duas pessoas, para agilizar o fluxo de informação e de coordenação. É um trabalho muito intenso, constante, durante todos os dias das COPs. Além disso, existem comitês de coordenação global, constituídos em Varsóvia, na COP 19, para os trabalhos ao longo do ano”, explicou Mairena.
Um dos co-presidentes é justamente Juan Carlos Jintiach, assessor técnico da COICA, que dividiu com Mairena este painel da capacitação. Além de reforçar o histórico, os caminhos e as estruturas da UNFCCC para incidência indígena, Jintiach fez um relato sobre o verdadeiro jogo de cintura que é entender e transitar pelas instâncias da UNFCCC com a pauta indígena. “A COP é um ambiente amplo. Temos que conhecer as condições que nós, como observadores, temos, porque os atores principais são os governos. Mas há companheiros indígenas que são ou já foram parte dos governos, são negociadores, então temos que saber com quem falar, enxergar os órgãos, como estão constituídos e o que significam”, apontou Jintiach.
Segundo ele, desde o Acordo de Paris existem referências de mais de 60 decisões ou menções aos povos indígenas na UNFCCC. Uma das mais importantes é a que culminou com a criação da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas, e com o advento do grupo de trabalho facilitador para sua implementação, em 2018, que garante de modo inovador representação igualitária entre Estados e povos indígenas indicados pelas sete regiões multiculturais do planeta de forma autônoma. “A plataforma é uma conquista oficial, não é um sitio de internet, é um espaço oficial e previsto dentro da Convenção do Clima”, afirmou Jintiach.
A plataforma nasceu em meio a esse processo de negociação e articulação do movimento indígena internacional. “Ela foi criada a partir da COP de Paris e precisa se fortalecer para que seu plano de ação a cada três anos possa ser revisado e para buscar financiamento para sua implementação. Não se pode ter uma plataforma de diálogo global sem ter plataformas nacionais”, opinou Mairena, que citou Peru, Costa Rica e Bolívia como exemplos de países em que iniciativas nacionais estão prosperando. Este é um espaço em que, por tudo isso, participação indígena é mais que bem-vinda. “É muito importante que qualquer delegado que chegue à COP26 participe das nossas reuniões oficiais. Vamos fazer um Cáucus interno e vamos fazer coletivamente. A reunião da plataforma tem que ter participação”, avisou Jintiach. Para os povos indígenas do Brasil, tem sido um desafio acompanhar mais de perto essa agenda desde a regional da América Latina e Caribe.
“Saber de todo esse histórico é enriquecedor, porque compreendemos como um povo indígena pode fazer incidência nesses espaços. Estamos organizados, estamos dentro da UNFCCC e é um caminho não muito fácil, é desafiador, principalmente quando se trata da questão da língua”, avaliou Sineia do Vale Wapichana, do Conselho Indígena de Roraima (CIR), mediadora da sessão.
Para ela, é preciso entender mais sobre a política climática para fazer um contundente contraponto à versão que os governos levam para as COPs sobre seus compromissos com os povos indígenas e com o meio ambiente. “A crise climática tem a ver com os direitos, a demarcação das terras indígenas, e isso tudo precisa estar conectado. Há um retrocesso na questão do direito e pode nos tirar dessa condição de barreira contra o desmatamento”, alertou Sineia.
Expor o cotidiano dessas ameaças pode nutrir espaços como a plataforma de legitimidade, como lembrou Juarez Paimy, do povo Rikbaktsa, e que representou a Rede Juruena Vivo na capacitação. “O agronegócio cresceu de forma incontrolável em volta dos nossos territórios. O governo vai dizer que está tudo às mil maravilhas. Precisamos defender o que resta dos rios, das florestas”, disse Paimy. “Somos nós os maiores protetores da floresta, do meio ambiente. Temos que incentivar diretamente os saberes tradicionais nessa política de mudanças climáticas”, motivou-se Lucio Xavante, da Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso (Fepoimt).
O curso “Lideranças indígenas rumo à COP26” prevê sete encontros virtuais até as vésperas da Conferência do Clima, a ser realizada na cidade escocesa de Glasgow, entre 31 de outubro e 12 de novembro de 2021. É promovido pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) Rede de Cooperação Amazônica (RCA), Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Operação Amazônia Nativa (OPAN), Uma Gota no Oceano e conta com apoio de Fastenopfer, da Fundação Rainforest da Noruega e da Fundação Ford.