Clima fértil para avançar
Reunião da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas abre trabalhos na COP26 com desafio de ampliar representatividade e ver mais direitos garantidos na Convenção do Clima.
Andreia Fanzeres/OPAN*
com colaboração de Patrícia Zuppi/RCA
Mais uma vez, a programação oficial da COP26 começou com a agenda dos povos indígenas. Entre os dias 28 e 30 de outubro aconteceu em Glasgow, de forma híbrida, a 6a reunião do Grupo de Trabalho Facilitador da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas (LCIPP, na sigla em inglês) da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças do Clima (UNFCCC). Por três dias, discutiu-se sobre as ações realizadas no primeiro ciclo de atividades do órgão, cuja implementação se deu de 2019 a 2021, mesmo com as dificuldades impostas pela pandemia e diante do ineditismo da inserção das perspectivas indígenas no contexto da Convenção. E, exatamente por causa dessa responsabilidade, a reunião terminou com um acalorado debate, que envolveu também observadores que queriam ver mais senso de urgência refletido em um posicionamento da Plataforma para influenciar as negociações sobre a implementação do Acordo de Paris.
A Plataforma, criada como um mecanismo do Acordo de Paris, firmado em 2015 na COP21, e viabilizada por meio do estabelecimento de um Grupo de Trabalho Facilitador para sua implantação na COP24 em 2018, é uma instância única na UNFCCC porque tem seu órgão de implementação com composição paritária entre representantes indígenas e dos países membros. Guarda as funções de valorizar os conhecimentos tradicionais, ampliar o engajamento dos povos indígenas e comunidades locais nos processos da Convenção, bem como promover a inclusão de distintos sistemas de conhecimentos na elaboração de ações e na construção de políticas para enfrentar as mudanças climáticas.
Em um gesto de apoio e respeito por esse espaço, a diplomata mexicana Patrícia Espinosa, secretária-executiva da Convenção, abriu os trabalhos da Plataforma associando-os à necessidade de mais avanços nesta COP26. “Estamos muito longe de onde deveríamos estar. Isso é um fato. A mudança não vai acontecer de uma hora pra outra. E precisamos tomar as decisões certas agora. Temos o caminho das NDCs (metas de cada país para redução de emissões) e temos a ciência, por isso eu peço o apoio e o engajamento de vocês”, reforçou. Patrícia ainda ressaltou o papel dos povos indígenas no contexto das mudanças climáticas. “É lamentável que as alterações climáticas afetem a vida dos povos indígenas, apesar de serem eles os que mais contribuem para diminuir as emissões vivendo em harmonia com a natureza. Os povos indígenas ajudam a salvaguardar 80% da biodiversidade remanescente do planeta e representam apenas 6.2% da população global”, disse.
O maior engajamento dos povos indígenas e comunidades tradicionais na agenda climática, para além dos governos nacionais e locais, está no cerne das atividades concebidas pela Plataforma até agora. E, por seu caráter desafiador, consta também como um dos principais eixos de ação no Plano de Trabalho da Plataforma para o próximo ciclo de três anos, que precisa ser apreciado pelo Órgão Subsidiário de Assessoramento Científico e Tecnológico (SBSTA), na sigla em inglês) e validado pelos Estados que compõem a convenção em Glasgow nesta COP26.
Surpreendendo alguns membros da Plataforma, o presidente da COP26, Alok Sharma, fez questão de visitar a reunião, se disse comprometido com a amplificação das vozes dos povos indígenas e perguntou o que se espera dele nas próximas semanas. A resposta que recebeu foi a de pressionar os estados para esse mesmo compromisso. Dalee Dorough, representante dos povos indígenas do Ártico, aproveitou a oportunidade de dizer diretamente a Sharma como os impactos das mudanças climáticas em sua região já têm sido imensuráveis, que a adaptação é difícil e que o mundo precisa entender que os povos do Ártico têm “o direito ao gelo”. A reunião foi tomada de emoção em breves segundos de silêncio e reflexão. Dalee aproveitou para explicar a Sharma um pouco da atividade que co-liderou na implementação do primeiro plano de trabalho, justamente voltada à sensibilização de atores-chave sobre a importância dos povos indígenas no enfrentamento às mudanças climáticas. Sharma respondeu dizendo que entendeu o recado dado em alto e bom som e que passou a conhecer “a face humana das mudanças climáticas”, lembrando que nos últimos 9 meses visitou 35 países encontrando pessoas afetadas pelo desequilíbrio do clima.
Hindou Ibraim, representante dos povos africanos e co-presidente indígena do Grupo de Trabalho Facilitador da Plataforma, enfatizou em diversas oportunidades que o respeito ao direito à consulta e consentimento dos povos indígenas deveria constar nas recomendações de cada uma das atividades realizadas. “O resultado mais importante do nosso trabalho será ver as nossas recomendações sendo implementadas nos níveis nacionais e locais, em especial garantindo o direito à consulta e a consideração do conhecimento tradicional na construção das soluções. Meu alerta para os governos que estão aqui participando é como vão nos ajudar a implementar o plano de trabalho e não deixar os povos indígenas para trás. Vocês podem nos ajudar nesta COP26!”.
Contudo, quando se tentou materializar o apelo de Hindou em um caso concreto, as dificuldades ficaram ainda mais claras. A iminência da discussão sobre o Artigo 6 do Acordo de Paris, que regulamenta os mecanismos de mercado de carbono, e a preocupação sobre impactos e o acirramento das pressões aos povos indígenas caso não haja salvaguardas a seus direitos, aterrissou na reunião da plataforma. Em especial, o tema esquentou e dividiu opiniões depois que Andrea Carmen, representante indígena da América do Norte, propôs a redação de um posicionamento da Plataforma pela garantia de respeito aos direitos indígenas nesta discussão específica. Alguns membros e estados avaliaram que a Plataforma tem natureza técnica e esse tipo de manifestação seria inadequada. Outros, valendo-se da importância de abordagens sempre pautadas pela defesa dos direitos indígenas, argumentaram pela urgência de ações mais ambiciosas e contundentes para que haja a transformação necessária na conduta dos países. Tuntiak Katan, representante indígena da América Latina e Caribe, avaliou que se pode esperar os países avançarem pela via formal ou assumir que estamos numa emergência. “Essa COP poderia fazer a diferença. Temos que parar a destruição do planeta e não é mais hora de pensar se estamos de acordo se vamos viver ou não. Todos queremos viver”, falou. Assim como se deu anteriormente na complexa negociação para aprovação do texto de criação da Plataforma, em 2017 e 2018, quando algumas Partes traziam questionamentos ao texto proposto alegando preocupações acerca da “soberania nacional”, a discussão não chegou a um consenso e revelou o ambiente de pressões que determinam o sucesso ou o fracasso do lento processo de negociação na UNFCCC.
Desafios internos
Um dos desafios da Plataforma é assegurar que os povos indígenas participem em suas regiões da elaboração e implementação de ações, políticas e mecanismos de financiamento climático, a partir do entendimento de que eles fazem parte da solução para a crise climática. De acordo com Andrea Carmen, hoje só há dois países que têm mecanismos para incluir os povos indígenas no desenvolvimento das suas NDCs: Canadá e Nova Zelândia. “Precisamos pressionar para melhorarmos a inclusão dos povos indígenas nas ações nacionais”. Irina Barba, representante dos estados da região da América Latina e Caribe, ao falar sobre o mapeamento de mecanismos financeiros para garantir a participação indígena nas discussões sobre clima e implementar ações de mitigação e adaptação, fez um pedido para que os estados criem mecanismos efetivos, pois os que existem não atendem às necessidades específicas destes povos.
Do ponto de vista do funcionamento da própria Plataforma, um observador lembrou da falta de representatividade das comunidades tradicionais. “Estamos preocupados porque o processo da plataforma está avançando sem uma representação das comunidades locais. Elas são coletivos que têm uma história em comum, em que os indivíduos se reconhecem como parte da coletividade e detém uma forma de se autogovernar”, disse Gustavo Sanches, do México. Ele requisitou diretamente espaço para as comunidades locais na LCIPP e ouviu da Secretaria da Plataforma, que assessora os trabalhos desta instância da UNFCCC, que os grupos precisam se credenciar e solicitar reconhecimento formal, mas não deu maiores detalhes sobre o processo.
Ao mesmo tempo em que a colaboração ampla e qualificada de membros e observadores da Plataforma tem sido reconhecida como estratégica para seu êxito, as lacunas para os próprios indígenas seguem numerosas, como a participação das mulheres, de jovens, de representantes da Amazônia, bem como ajustes com relação ao fuso horário, em especial para o efetivo acompanhamento de comunidades do Pacífico, e a importância da tradução de documentos e transmissão de reuniões em mais idiomas.
Esses pontos permearam os três dias de discussão e demonstraram que a presença em si dos povos na COP ou em encontros regionais e interseccionais nem sempre é a maior preocupação, mas a garantia de que a construção dos entendimentos da Plataforma consiga incorporar efetivamente as contribuições das regiões, de quem está no chão das aldeias e comunidades. Por este motivo, recebeu muitas críticas o mecanismo de revisão periódica conhecido como “global stoktake”, por adotar uma abordagem de difícil envolvimento indígena.
Vicky Tauli-Corpuz, que de 2014 a 2020 foi Relatora Especial da ONU para os Direitos dos Povos Indígenas, comentou que esse processo deve integrar efetivamente as vozes e os relatórios dos povos indígenas. “Isso significa que deve haver processos do nível local ao global para garantir que essas vozes sejam ouvidas e incluídas no relatório de avaliação. Se as Partes não incluírem essas vozes, relatórios independentes de povos indígenas devem ser aceitos. Nossa capacidade de fazer nossas próprias avaliações deve ser apoiada por meio de políticas, suporte técnico e finanças”, sugeriu.
Ao longo das próximas duas semanas em Glasgow a Plataforma de Comunidades Locais e de Povos Indígenas promoverá alguns eventos importantes, como uma mesa de diálogo entre povos indígenas e a presidência da COP26 (02/11), a reunião sobre conquistas da Plataforma em seu primeiro ciclo de dois anos de atividades (03/11), uma oficina com múltiplos atores-chaves sobre a Plataforma e o primeiro encontro anual de detentores de conhecimentos tradicionais (08/11). Em 2022, reuniões nas sete regiões socioculturais do mundo deverão eleger novos membros para a LCIPP, que serão os responsáveis por liderar a implementação do plano de trabalho para os próximos três anos. Eles assumirão sua gestão a partir de junho, quando ocorerrá a 7a reunião do Grupo de Trabalho Facilitador da Plataforma, na sede da UNFCCC, em Bonn, na Alemanha.
Mais informações:
Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas da UNFCCC
Rede de Cooperação Amazônica (RCA)
Operação Amazônia Nativa (OPAN)