Decreto do governo dá aval para a ampliação do uso de agrotóxicos e contaminação de rios
Inspirado no Pacote do Veneno, instrumento publicado pelo governo federal no mês de outubro facilita o uso de agrotóxicos em ambientes hídricos. Para pesquisadores, a medida que reduz a transparência sobre registros irá consolidar e expandir os impactos já sentidos pelos povos dentro de seus territórios.
POR BEATRIZ DRAGUE RAMOS/OPAN
A contaminação de rios e nascentes com venenos causadores de câncer, mutação genética, além de doenças respiratórias, neurológicas, na saúde mental, como a depressão, por exemplo, abortos espontâneos e ainda má formações fetais pode atingir cada vez mais as Terras Indígenas (TIs) de Mato Grosso (MT). Isso deve ocorrer por conta do Decreto 10.833/2021 publicado no início de outubro deste ano, pelo governo Jair Bolsonaro (sem partido). Segundo integrantes da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, a medida facilita a aprovação de agrotóxicos no Brasil e permite o uso dessas substâncias em ambientes hídricos, florestas nativas e ambientes urbanos.
Pesquisadores também apontam que o decreto como um todo prejudica a proteção do ambiente e a saúde, em relação aos impactos dos agrotóxicos. Fora isso, membros da Campanha avaliam que o novo decreto se aproxima do chamado “Pacote do Veneno”, um Projeto de Lei (PL 6.299/2002) que ainda tramita no Legislativo.
De acordo com a engenheira agrônoma Fran Paula, integrante da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, as mudanças no decreto podem aumentar a contaminação por agrotóxicos nos rios de Mato Grosso. “O registro de agrotóxicos para a agricultura poderá ser usado para ambientes hídricos e até para a capina química.”
Antes do decreto, apenas três agrotóxicos eram autorizados pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para uso direto no ambiente hídrico, conforme a regulamentação disposta no artigo 7º do Decreto 4.074, de 4 de janeiro de 2002. Hoje o novo decreto abre a possibilidade que outros agrotóxicos utilizados em lavouras agrícolas sejam aprovados para esses ambientes pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e pelo Ibama.
Com esse novo ponto na lei, a agrônoma exemplifica que produções que são feitas em sistemas irrigados, como por exemplo, a hidroponia, o arroz e também a piscicultura, poderão usar agrotóxicos que não são autorizados para esses ambientes atualmente e são aplicados de maneira irregular. “Precisamos de mais estudos aprofundados sobre o impacto disso, considerando que muitos agrotóxicos são persistentes na água. Hoje, nós temos alguns agrotóxicos que são autorizados para a cultura da soja, porém eles distorcem a autorização para usar também como larvicidas, em tanques de pisciculturas, de forma irregular. Isso não era permitido na lei anterior ao decreto.”
Atualmente, o produto é registrado para um tipo só de ambiente, ilustra a pesquisadora: “Por exemplo, se está registrado para a soja, o cultivo é só para agricultura, não é um registro, por exemplo, para áreas de hidroponia”, afirma, referindo-se à técnica de cultivar plantas sem solo, no sistema em que as raízes recebem uma solução nutritiva.”
Nessa linha, ela explica que o uso de agrotóxicos em ambientes hídricos, florestas nativas e ambientes urbanos, como disposto no oitavo artigo do decreto, pode representar uma maior exposição a esses químicos para a população indígena de Mato Grosso, que já sofre com a contaminação nas águas do estado. “Considerando o avanço do agronegócio sobre os territórios indígenas, há consequentemente muita utilização de agrotóxicos, seja via terrestre ou via aérea, e a gente recebe denúncias do uso desses agrotóxicos como uma arma química, ou seja, de forma intencional sobre esses territórios”, cita.
Em relação aos impactos na saúde, o decreto é considerado como um passo para a implementação do Pacote do Veneno, principalmente porque ele abre a possibilidade de registro de agrotóxicos que são comprovadamente considerados cancerígenos. “Com o decreto, agrotóxicos que causam o câncer, a mutação genética, a desregulamentação hormonal, os danos ao embrião e os danos ao aparelho reprodutivo podem ser registrados”, critica. Fran alerta que a decisão é um retrocesso. “Pode, inclusive, permitir que agrotóxicos já banidos voltem ao mercado. Ou seja, mais veneno no agro brasileiro e menos saúde para a população.”
Outro ponto levantado pela agrônoma é o afrouxamento no controle do registro dos agrotóxicos, isso porque apesar de pressupor o desenvolvimento de um Sistema de Informações de Agrotóxicos (SIA), e de prever que muitas informações saiam do Diário Oficial da União (DOU) e sejam publicadas no SIA, o decreto não garante o acesso da população a informações deste sistema.
Com isso, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) não é mais obrigado a publicar registros de agrotóxicos no Diário Oficial. “Vai haver menos transparência, inclusive de órgãos como o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento no registro dessas substâncias e até dos seus aplicadores. O que dificulta ainda mais os nossos processos de denúncia do uso de agrotóxicos como violação de direitos humanos contra povos indígenas,” diz Fran.
A presença de agrotóxicos nas águas é uma realidade na TI Tirecatinga, localizada no município de Sapezal e ocupada pelo povo Nambikwara. Pesquisas feitas pelo Núcleo de Estudos Ambientais e Saúde do Trabalhador (Neast), do Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), entre os anos de 2015 e 2018, em Sapezal, cidade em que se localiza a TI Tirecatinga mostraram que há uma poluição sistêmica por agrotóxicos no ambiente hídrico e em sua biodiversidade, como em águas subterrâneas, rios, chuvas e em peixes.
O biólogo, doutorando em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP/Fiocruz) e professor de educação básica da rede estadual de Mato Grosso, Luã Kramer de Oliveira, que fez parte do Neast junto a outros pesquisadores, avalia que esta poluição é gerada pelo grande volume de uso dos agrotóxicos nas lavouras agrícolas e pastagens de criações de bovinos nestes municípios.
“Os agrotóxicos utilizados nestas produções não ficam apenas na planta ou na espécie-alvo, eles se movimentam por todo o ecossistema regional, pois parte deles evaporam e circulam na atmosfera (ar e chuva). Outra parte fica no solo, e com a chuva pode ser absorvido até às águas subterrâneas, ou carregado até córregos e rios”, esclarece.
Essa contaminação citada pelo pesquisador é percebida com angústia por Edna Pareci, 63 anos, indígena do povo Pareci que vive na aldeia Anchieta, da TI Tirecatinga, há décadas. “Estou muito preocupada com a situação dos nossos rios. Além da diminuição dos peixes, o próprio rio está secando e as cabeceiras estão morrendo. As lavouras já acabaram com as cabeceiras. O produtor maior produz algodão, que tem muito mais do que a soja”, lamenta.
Um levantamento do Neast concluído em 2017 constatou que a produção de algodão em Sapezal recebia de 24 a 30 litros de agrotóxicos por hectare. A região é campeã nesse plantio. Isso equivale ao dobro do que é utilizado no cultivo de soja. O professor da UFMT, doutor em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública Fundação Oswaldo Cruz e pesquisador do Neast, Wanderlei Pignati, estima hoje que esses números cresceram. “São cerca de 33 litros de agrotóxicos por hectare recebidos pela produção de algodão em Sapezal, de acordo com dados do Instituto de Defesa Agropecuária do Estado de Mato Grosso (Indea/MT)”, afirmou Pignati.
Os rios Papagaio e Buriti passam dentro da TI Tirecatinga. Edna afirma que a chuva leva as substâncias para as cabeceiras dos rios. “Quando chove, a enxurrada leva o veneno para as cabeceiras, e aí desce para o rio. E isso está prejudicando os peixes, os animais e está nos prejudicando. As crianças estão tendo alergias que não tinham há tempos, e muitas estão nascendo com problemas. Quando venta, dá infecção na garganta das crianças, diarréia, gripe e resfriado”, alerta.
Além dos agrotóxicos que acabam se dispersando no meio ambiente, Edna relata que os peixes em propriedades privadas têm sido alimentados com uma mistura de soja e milho potencialmente transgênicos. “Os fazendeiros que moram perto da beira do rio colocam a ceva dentro da água, com soja e milho envenenado, os peixes comem, a soja estufa dentro da barriga e ele morre”, conta, citando o alimento usado pelos pescadores para atrair os peixes.
O indigenista Ricardo da Costa Carvalho, da Operação Amazônia Nativa (OPAN), explica que a ceva também afeta a migração dos peixes, diminuindo a circulação do animal pelos rios. “A principal fonte proteica dos indígenas é de peixes de migração. Então, são peixes que circulam nos rios ou para reprodução, subindo, ou para alimentação na descida. Com a ceva fixa, esses peixes deixam de circular pelo ambiente e pela bacia como um todo. Isso causa uma concentração dos peixes na região dos fazendeiros, e essa concentração só é benéfica para a questão de quem está pescando nos pesqueiros.”
O alcance dos agrotóxicos nas águas provoca a morte de ovos de peixes na época da piracema, como aponta um indígena do povo Rikbaktsa que preferiu não se identificar, no relatório técnico Percepção Indígena da Contaminação por Agrotóxico, do Projeto do Campo ao Corpo, produzido pela antropóloga e indigenista da OPAN, Adriana Werneck Regina. “O peixe está diminuindo cada vez mais no rio do Sangue, no rio Arinos e também no rio Juruena, pois, justamente na época da piracema, época das chuvas, é que os fazendeiros pulverizam as plantações com veneno, que corre para o rios, para as cabeceiras, matando os ovos recém postos”, declarou.
Estes agrotóxicos presentes em todos os componentes ambientais, no ar, água e solo, interagem com as espécies animais e vegetais da região, diz Kramer. “Dessa forma, eles afetam o desenvolvimento e a reprodução destes seres vivos, e, portanto, impactam negativamente na preservação da biodiversidade local.”
Áreas da Terra Indígena Xavante Marãiwatsédé, em Mato Grosso, também foram alvo de agrotóxicos nos últimos anos, conforme revelou o pesquisador Francco Antonio Lima, biólogo e mestre em Saúde Coletiva pela UFMT. No estudo “A extensão do ‘agro’ e do tóxico: saúde e ambiente na terra indígena Marãiwatsédé, Mato Grosso” feito entre os anos de 2013 a 2015, foram encontradas “muitas embalagens de agrotóxicos, fertilizantes expostos no solo e um trator pulverizador, abandonado durante a desintrusão, com um tanque de aproximadamente 1000 litros com agrotóxico.”
Lima também visualizou montes de fertilizantes químicos em várias áreas da TI e na aldeia Marãiwatsédé, próximo ao córrego. Foi detectado ainda o resíduo de 0,19 Micrograma por litro [µg/l] de permetrina na água, um inseticida avaliado como Altamente Perigoso pela Pesticide Action Network (Rede de Ação contra Agrotóxicos, PAN na sigla em inglês), uma coalizão de 600 organizações não governamentais de 90 países que atuam para minimizar os efeitos nocivos de pesticidas.
O especialista concluiu que este valor está abaixo do valor máximo permitido pela legislação brasileira, mas no limite da legislação europeia. Entretanto, a presença de lavouras em atividade nos limites da TI são fontes constantes de emissão de agrotóxicos, possibilitando novas poluições de “fora para dentro” da TI.
Anos depois do estudo realizado por Francco Antonio Lima, um avião agrícola foi visto despejando veneno dentro da Terra Indígena Marãiwatsédé, no nordeste de Mato Grosso. A verdadeira chuva de veneno ocorreu em março de 2018, e segundo moradores da aldeia Madzabdzé, gerou um surto de doenças respiratórias, sobretudo entre as crianças.
Luã explica que a contaminação de rios provoca sequelas também na alimentação de peixes. “Nos rios e nascentes atingidos por agrotóxicos, observa-se a redução da reprodução de todas as espécies aquáticas, o que resulta na diminuição de peixes e tracajás, por exemplo, que fazem parte da alimentação dos povos indígenas. Outro impacto é na qualidade da água, pois dependendo do nível da contaminação por agrotóxicos, o rio ou córrego pode se tornar impróprio para banho e consumo, causando alergias e intoxicações àqueles que utilizam essa água.”
Ambientes hídricos como nascentes, córregos, rios, lagos, lagoas, lençóis freáticos e aquíferos correm alto risco com o novo decreto, aponta Luã. “Creio que na prática o que os ruralistas querem é a livre permissão para usar os venenos agrícolas nas pisciculturas e represas, para o controle de espécies indesejadas, sobretudo algas. Quando o agrotóxico é aplicado no ambiente hídrico, a quantidade de substância que entra em contato com os seres vivos aquáticos é muito maior do que ocorre em um caso de agrotóxico que é levado até o rio pela chuva, solo ou água subterrânea. O impacto é muito maior.”
Como reação à medida do Executivo, um projeto de decreto legislativo (PDL) foi apresentado na Câmara dos Deputados em 13 de outubro para suspender os atos do decreto do governo. Para além de provocar prejuízos à transparência e aos rios e terras indígenas, o decreto também traz outras mudanças na legislação relacionada aos agrotóxicos, a Campanha Contra os Agrotóxicos e Pela Vida identificou mais de 10 retrocessos no dispositivo, confira no link os pontos expostos pela Campanha em uma nota técnica.
Questionadas, a Casa Civil não respondeu às perguntas enviadas, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) respondeu que a avaliação dos agrotóxicos que serão utilizados em ambientes hídricos continua sendo dos órgãos da saúde e do meio ambiente. O MAPA, disse ainda que o Sistema de Informações de Agrotóxicos (SIA) começou a ser desenvolvido neste ano. E que o “prazo de conclusão é de três anos, sendo possível que algumas funcionalidades estejam operacionais até o fim do próximo ano.” A pasta alegou ainda que o decreto não prevê a possibilidade de que agrotóxicos banidos voltem a ser permitidos no país.