Coletivo do Pirarucu debate futuro e aprimoramentos da atividade que preserva e garante renda para 160 comunidades ribeirinhas
De 8 a 10 de março, lideranças de comunidades manejadoras se reuniram em Manaus para fazer um diagnóstico da prática que mobiliza 2 mil famílias na gestão territorial e proteção ambiental da Amazônia.
Quando o assunto é pirarucu, a grandeza está sempre envolvida: o tamanho do peixe, as dimensões das áreas protegidas e o empenho das comunidades manejadoras. Essas forças foram apresentadas, analisadas e discutidas no encontro do Coletivo Pirarucu, que ocorreu em Manaus nos dias 8, 9 e 10 de março. O evento, o primeiro presencial desde o início da pandemia da covid-19, reuniu lideranças comunitárias de nove associações de base. Os coordenadores de manejo que estiveram na reunião mobilizam diretamente cerca de 3 mil manejadores , em 11 áreas, de oito municípios do Amazonas.
Nos três dias do encontro, os representantes das associações, de órgãos do poder público, de instituições que assessoram o trabalho dos manejadores e outros apoiadores relataram as práticas positivas e as transformações que o manejo tem proporcionado na vida das comunidades. A promoção de reuniões para trocar experiências é componente do planejamento estratégico de atuação na cadeia do pirarucu. “O coletivo é um fórum muito importante para o desenvolvimento de propostas e estratégias conjuntas, visando a valorização e o fortalecimento do manejo participativo do pirarucu, e para a comercialização do pescado”, explica Leonardo Pereira Kurihara, coordenador de projetos do Programa Amazonas, da Operação Amazônia Nativa (OPAN).
O apoio às reuniões do coletivo faz parte do projeto Cadeias de Valor Sustentáveis e Gestão Territorial e Ambiental em Áreas Protegidas da Amazônia Brasileira, que tem suporte da USAID/Brasil, por meio da PCAB (Partnership for the Conservation of Amazon Biodiversity), e é implementado pelo Instituto Internacional de Educação Brasil (IEB), sob coordenação técnica do Serviço Florestal dos Estados Unidos (USFS) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
Segundo o balanço da safra passada, foram capturados 25 mil pirarucus manejados, o que representa quase 1,3 mil toneladas de pescado. Esse volume representa a gestão territorial e ambiental de pelo menos 900 lagos, e movimentou cerca de R$ 7,7 milhões nos territórios envolvidos com a pesca, mesmo no contexto da pandemia.
Parte dessa produção vem sendo organizada por meio de um arranjo comercial conduzido pela Associação dos Produtores Rurais do Carauari (Asproc). E em busca de um mercado diferenciado, cerca de 27 toneladas desse arranjo coletivo foram destinadas à estratégia comercial da marca Gosto da Amazônia, sendo o produto vendido em restaurantes de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Belo Horizonte e Recife. O objetivo dessa ação é desenvolver os principais valores defendidos e praticados pelas instituições envolvidas neste processo: a preservação da natureza, comércio justo e transparente e desenvolvimento econômico local e social sustentável.
A análise das dificuldades enfrentadas pelos manejadores também pautou a reunião. As lideranças apontaram que apesar dos esforços das associações nas melhorias de gestão, no aprimoramento das técnicas sustentáveis de manejo e do saldo de serviços ambientais, a atividade ainda carece do aporte de políticas públicas para superar limitações. João Campos, diretor do Instituto Juruá, ressaltou que a atenção do Estado é fundamental, pois o manejo de pirarucu não é apenas uma atividade comercial que gera renda para comunidades, mas parte de toda uma cadeia de proteção da Amazônia e seus ecossistemas.
COMEMORAR CONQUISTAS E DISCUTIR APRIMORAMENTOS
A caminhada do Coletivo do Pirarucu vai bem e é motivo de orgulho e comemoração para as comunidades, como conta Gracieme Feitosa de Pinho, monitora de manejo da RDS Municipal Peixe-Boi, Jutaí. “A minha comunidade é muito carente, meu povo necessita muito. Todos lutamos muito para manter o manejo. Eu não consigo carregar o pirarucu, mas eu posso ajudar fazendo o monitoramento, gelando o peixe, levando até o porto da cidade. No dia que o dinheiro da venda chegou nas minhas mãos para eu repartir com o povo da minha comunidade, eu me emocionei”, conta.
Com a experiência e o aprimoramento das técnicas de manejo, as comunidades passam a entender cada vez mais as dinâmicas do trabalho voltado à perspectiva de conquista de mercados. As vendas do pescado e a distribuição dos lucros geram a percepção de abundância nos territórios. A população do peixe, que já esteve ameaçada, cresce, juntamente com o tamanho médio dos espécimes, que está ultrapassando os dois metros em alguns locais. “Em 1985, começou a baixar muito o número de peixes. Aí, surgiu o pessoal da OPAN, falando do projeto de manejo. Nós dissemos: isso aí sabemos fazer. Compartilhamos técnicas e hoje as nossas crianças podem ver o trabalho que fazemos”, afirma Nilson Paumari.
Além das técnicas de manejo, as associações amadurecem seus métodos de gestão. Grupos do coletivo têm se dedicado a realizar inventário do material usado na atividade e adquirido com os recursos da pesca, e aprimorado mecanismos de beneficiamento do peixe após tirá-lo do lago, para garantir a ideal limpeza, acondicionamento e transporte do pescado. Pedro Constantino, consultor do Serviço Florestal dos Estados Unidos, ressalta que além dos avanços práticos da atividade, o grupo conquistou um lugar de fala na sociedade civil e consolidou credibilidade junto aos órgãos decisores do Estado. “A atuação do coletivo se dá em diversas frentes. E uma das conquistas mais importantes é a capacidade de formar uma voz única de todos os grupos manejadores. Essa voz única ganha mais força para dialogar com órgãos de governo, com implementadores de políticas, para assim estabelecer preços mais justos”, analisa.
O sucesso do trabalho do grupo, e a comemoração pelo avanço da distribuição do peixe em mercados de diferentes estados, não tirou do coletivo o foco nas questões que precisam ser melhoradas para que o pescado se consolide como um produto de qualidade que também traz um histórico de valor: a promoção da proteção de áreas protegidas (terras indígenas, unidades de conservação) da Amazônia.
Entre os pontos aos quais o Coletivo está atento, há o desafio de reverter a situação dos baixos preços do pescado; trabalhar com um calendário de possíveis enchentes e dinâmicas de escoamento dos lagos; e articular soluções para a vigilância do território, que tem sido alvo de invasores e atividades de pesca de forma desordenada.
POLÍTICAS PÚBLICAS
Além do aperfeiçoamento dos processos internos, o Coletivo do Pirarucu precisa do estímulo de políticas públicas para alçar voos cada vez maiores. E é justo que seja assim. Os serviços ambientais que são prestados pelos povos indígenas e ribeirinhos manejadores aliviam o Estado brasileiro de um considerável montante de despesas econômicas e operacionais.
No entanto, a retribuição a esses manejadores, que deveria vir em forma de apoio técnico, subvenções e estrutura logística, é na maioria das vezes insuficiente ou mal adaptada à realidade amazônica. “São processos complexos, no sentido burocrático, documental. E há uma dificuldade dessas associações na adequação da documentação para efetivamente acessar políticas como a PGPM-Bio. Os grupos ainda não conseguem acessar as políticas de maneira satisfatória. É grande a barreira documental, é necessário submeter o encaminhamento e uma série de documentos, pessoais e da organização”, afirma Felipe Rossoni, indigenista da OPAN.
Durante o encontro, manejadores e representantes de instituições e de órgãos públicos apontaram os desafios e as perspectivas da atividade. Um dos relatos relembrou como a experiência dos Paumari – ao acessar a Política de Garantia de Preços Mínimos para os Produtos da Sociobiodiversidade (PGPM-Bio), regime que garante preço mínimo para produtos extrativistas – beneficiou a vida da comunidade.
A adesão a iniciativas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) também é motivo de orgulho para os manejadores que são assessorados pela Associação dos Comunitários que Trabalham com Desenvolvimento Sustentável no Município de Jutaí (ACJ). O programa incentiva o consumo e o fortalecimento da cadeia produtiva deste pescado e fornece peixe para famílias que estão inscritas no cadastro social do governo, formando assim uma “corrente do bem”, de mútuo fortalecimento para as comunidades.
O êxito do manejo do pirarucu reflete o cuidado dos povos e comunidades locais com as terras em que vivem, resume João da Mata, analista do ICMBio. “Há muito empenho dos manejadores, das famílias envolvidas. Por isso, há essa relação de transparência e confiança. Isso enriquece o processo e traz credibilidade para o manejo, como iniciativa robusta de geração de renda alternativa e conservação dos recursos naturais. O impacto positivo é muito grande.”