Entenda em seis pontos as diretrizes do CNJ para os povos indígenas no acesso ao Judiciário
O ato recomendatório traz procedimentos para garantir o pleno exercício dos direitos dos povos indígenas na Justiça. Saiba o que pode ser exigido em um processo judicial quando há pessoas e povos originários envolvidos.
Por Beatriz Drague Ramos/ OPAN
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão responsável pela formulação da política judiciária do país, adotou um importante posicionamento em prol dos povos indígenas. No dia 22 de abril, o presidente do conselho, ministro Luiz Fux, publicou a resolução de nº 454. Ela estabelece instruções para a garantia do direito ao acesso ao Judiciário de pessoas e povos indígenas.
Na prática, essa medida pode ser usada em processos cíveis, como em processos com temas ligados ao acolhimento familiar de crianças indígenas e, ainda, em ações judiciais que tratam de posses de terras. Além disso, pode ser destacada em processos criminais. A resolução orienta sobre como fazer citações dos indígenas, respeitando seus usos, costumes e tradições.
O ato reforça a determinação constitucional, que assegura aos povos indígenas “o reconhecimento da organização social, dos costumes, das línguas, das crenças, das tradições e dos direitos originários sobre as terras tradicionalmente ocupadas, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os bens, assim como reconhecem a legitimidade dos índios, suas comunidades e organizações para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses.”
Para que a resolução seja cumprida, o CNJ irá mobilizar tribunais, em colaboração com as escolas de magistratura, para a promoção de cursos a fim de qualificar os juízes e demais funcionários públicos nos locais e seções judiciárias com maior população indígena. Também será elaborado um material sobre os temas destacados na resolução.
1 – Autoidentificação
A resolução esclarece que todo indígena tem direito a se autoidentificar, sendo o indígena a pessoa que se identifica como pertencente a um povo indígena e é por ele reconhecido. A autoidentificação pode ser empregada em qualquer fase de um processo judicial.
Segundo a resolução, é tarefa do poder judiciário registrar as informações decorrentes da autoidentificação em seus sistemas informatizados, também é função do judiciário estabelecer uma linguagem clara e acessível aos indígenas no processo.
O texto da resolução frisa que a autoidentificação do indivíduo como pertencente a determinado povo indígena não lhe retira a condição de titular dos direitos reconhecidos a todo e qualquer brasileiro.
O advogado indígena do povo Macuxi e assessor jurídico do Departamento Jurídico do Conselho Indígena de Roraima (CIR), Ivo Cípio Aureliano, ressalta a importância da medida pois, segundo ele, é difícil, sobretudo na esfera criminal, que esse reconhecimento dos direitos indígenas ocorra. “Muitas vezes se fala só direito indígena em contexto de luta pelo território, mas não se fala sobre o direito do indígena enquanto indivíduo, com a sua especificidade cultural, língua, tradição, tudo mais. A resolução busca efetivar esses direitos na prática, da identificação do indígena dentro desses processos judiciais. Isso é extremamente importante.”
Pensando na justiça criminal, Ivo aponta que a resolução pode ajudar, por exemplo, a saber quantos indígenas estão no sistema carcerário, a partir do emprego sistemático da autoidentificação. “É um dos casos desta resolução que deve gerar um efeito prático.”
2 – Assistência jurídica e garantia de um intérprete
Segundo o texto, os povos indígenas, suas comunidades e organizações possuem autonomia para constituir advogado ou assumir a condição de assistido da Defensoria Pública nos processos de seu interesse, conforme sua cultura e organização social”.
Com a instrução, fica o poder judiciário responsável por buscar a especificação do povo e do idioma falado. O Judiciário deve asseverar a total compreensão dos atos processuais ao indígena, com a nomeação de intérprete, e possibilitar perícias antropológicas quando necessário, para a identificação do idioma e dos costumes respectivos a cada povo.
Também é estabelecido o diálogo interétnico e intercultural, ou seja, em um processo judicial devem ser adotados instrumentos de aproximação entre a atuação dos órgãos que integram o Sistema de Justiça, com as diferentes culturas e as variadas formas de compreensão da justiça e dos direitos, inclusive com a adoção de rotinas e procedimentos diferenciados, para atender as especificidades socioculturais desses povos. Nesse sentido, devem ser respeitados os protocolos de consulta estabelecidos com o povo ou comunidade.
O diálogo interétnico e intercultural deve ser feito por meio de linguagem clara e acessível, com escuta ativa e direito à informação. Ivo ressalta que com o diálogo interétnico, existe por exemplo, a possibilidade de um juiz ouvir várias partes. “Ele pode ouvir a comunidade, a liderança, ou um antropólogo para que se chegue a uma decisão sobre aquele problema que veio parar na justiça.”
3 – Notificação de órgãos competentes
Em uma ação judicial que tenha relação com a posse de terras ocupadas por indígenas, o Poder Judiciário tem a responsabilidade de dar ciência ao povo indígena interessado, com instauração de diálogo interétnico e intercultural, e comunicar à Fundação Nacional do Índio (Funai) e ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), para que informem sobre a situação jurídica das terras.
Da mesma forma, é função do Poder Judiciário promover a intimação da Funai e do Ministério Público Federal (MPF) nas demandas envolvendo direitos de pessoas ou comunidades indígenas, assim como intimar a União, a depender da matéria, para que manifeste eventual interesse de intervir na causa.
A atuação do Ministério Público e da Defensoria Pública nos processos que envolvam interesses dos indígenas não retira a necessidade de intimação do povo interessado para viabilizar sua direta participação, ressalvados os povos isolados e de recente contato.
Se o CNJ for chamado para atuar na implementação de deliberações e recomendações da Corte Interamericana de Direitos Humanos e outros órgãos internacionais de direitos humanos, os povos e as comunidades indígenas afetadas serão ouvidas pela Unidade de Monitoramento e Fiscalização, do próprio CNJ.
4 – Respeito à territorialidade
Há ainda a orientação de dar preferência à forma presencial para a coleta de depoimentos de indígenas, em seu próprio território, sempre que possível e conveniente aos serviços judiciários. São admitidos depoimentos em língua nativa.
A organização das audiências e das inspeções em territórios indígenas será feita em conjunto com a comunidade, de forma a respeitar seus ritos e tradições. Durante cultos religiosos, cerimônias ou rituais próprios de cada grupo, não será praticado o ato de comunicação processual de indígena ou comunidade.
5 – Autodeterminação dos povos indígenas e povos em isolamento voluntário
De acordo com a resolução, o Judiciário deve respeitar os povos em isolamento voluntário e garantir que terceiros não se aproximem de tais comunidades. A eventual iniciativa de contato deve partir exclusivamente desses povos.
Considerando a política de não contato com os povos indígenas isolados, instituída em 1987 pelo Estado brasileiro, o Judiciário deve atender as diretrizes e estratégias específicas e respeitar os princípios da precaução e da prevenção, de forma a preservar o contato.
Havendo indícios de que um processo judicial possa afetar povos ou terras tradicionalmente ocupadas por indígenas, a Funai deverá ser notificada a informar se o caso atinge, ainda que de forma indireta, os direitos de povos isolados ou de recente contato, assim como se existe restrição de uso vigente no território. O mesmo questionamento à Funai pode ser feito às organizações indígenas de âmbito local, regional ou nacional.
6 – Direitos das crianças indígenas
Os direitos das crianças também estão presentes na deliberação. Casos de acolhimento familiar ou institucional, à adoção, à tutela, ou à guarda, devem ocorrer prioritariamente na sua comunidade ou em outras comunidades indígenas.
Os órgãos do Judiciário devem respeitar a determinação do interesse superior da criança, especialmente, o direito de toda criança indígena, em comum com membros de seu povo, de desfrutar de sua própria cultura, de professar e praticar sua própria religião ou de falar sua própria língua. Ainda devem ser considerados e respeitados os costumes, a organização social, as línguas, as crenças e as tradições, bem como as instituições dos povos indígenas.
Dessa forma, o ato assegura que o acolhimento institucional ou em família não indígena deverá ser excepcional, sendo adotado na impossibilidade, bem fundamentada, de acolhimento por família indígena.