Povo Xavante aponta violações no processo de licenciamento de empreendimento no Rio das Mortes
Indígenas de ao menos quatro territórios estão sendo excluídos das audiências públicas para debater a PCH “Entre Rios”, que deve impactar a vida dos Xavante e Bororo. “O Rio das Mortes é nosso rio sagrado, sua vida é fundamental para a nossa cultura”, diz a Associação Xavante Warã
Por Beatriz Drague Ramos/OPAN
Em busca do pleno exercício do direito à consulta livre, prévia e informada, garantido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), indígenas do povo Xavante denunciam que o processo de licenciamento do projeto da Pequena Central Hidrelétrica (PCH) Entre Rios, em fase de licenciamento na Secretaria do Meio Ambiente do estado de Mato Grosso (SEMA-MT), está ocorrendo sem a participação de todas as comunidades. O empreendimento prevê a construção de uma PCH no Rio dos Peixes, na cidade de Primavera do Leste, em Mato Grosso (MT). Os indígenas pedem a inclusão de mais quatro Terras Indígenas (TIs) que foram excluídas do processo, quando somadas às TIs mais de 12 mil pessoas podem ser atingidas pelo projeto.
Na visão do articulador político da Associação Xavante Warã, Hiparidi Dzutsi Wa Top’tiro, o projeto da PCH Entre Rios vem somando críticas por conta das flagrantes violações de direitos. “Tem que ter uma consulta livre, prévia e informada. O empreendedor faz meia boca, ele coopta algumas lideranças para dizer que aquilo é uma consulta. A consulta tem que ser dentro do território e não levando as lideranças para um hotel, por exemplo”, disse.
O projeto é da empresa Bom Futuro Energia, ligada aos donos do grupo Bom Futuro, reconhecido como um dos maiores do setor agropecuário. A companhia tem como um dos principais sócios Eraí Maggi Scheffer, conhecido como o “rei da soja”, sendo um dos maiores produtores do grão do Brasil. As primeiras conversas dos empresários com os indígenas começaram em meados de 2019, e desde então a pauta tem atormentado os Xavante e Bororo. Em uma carta divulgada ainda em 2020, os indígenas já falavam que eram recorrentes as tentativas de divisão do povo.
Já em abril, a Associação Xavante Warã levou à Fundação Nacional do Índio (Funai) um ofício no qual requer a participação das TIs Xavante de São Marcos, Areões e Pimentel Barbosa e a TI Meruri, do povo Boe Bororo, nas audiências públicas sobre o empreendimento, uma vez que essas terras estão sendo excluídas dos Estudos de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) e do próprio Termo de Referência da Funai. Depois disso, no início de maio deste ano, a Associação Xavante Warã publicou um novo documento voltando a criticar o processo de consulta.
Contratada para realizar o EIA/RIMA e o Estudo de Componente Indígena (ECI) da PCH, a MRS Consultoria indica apenas a TI Sangradouro, dos povos Xavante e Bororo, como a região diretamente afetada pelo empreendimento. Segundo Hiparidi, já existe uma pressão da empresa para iniciar o ECI. “Eles já querem apresentar o plano de trabalho para o ECI e estamos dizendo não. Queremos o nosso protocolo de consulta antes”.
Para dar sequência às consultas públicas, o povo Xavante reivindica o chamado protocolo de consulta, ou seja, um documento no qual estão sistematizadas as regras, procedimentos e princípios relacionados ao modo de vida de um povo e a forma como deve ser feita a consulta por parte de governos e empresas, até a obtenção de seu consentimento.
A TI Sangradouro citada no EIA/RIMA está situada a 6,8 km da PCH Entre Rios, ou seja, dentro do raio de 40 quilômetros das obras, a distância indicada pela Portaria Interministerial nº 60, de 2015 como parâmetro para definir a área potencialmente impactada por empreendimentos hidrelétricos e utilizada pelas empresas como critério no licenciamento das PCHs.
Ademais, essa também é a justificativa da Funai e da Bom Futuro para excluir as TIs A’uwé Xavante de São Marcos, Areões e Pimentel Barbosa e Meruri do processo. Ainda assim, a própria portaria informa que esse marco pode ser modificado “em função das especificidades da atividade ou do empreendimento e das peculiaridades locais”.
A indigenista Tânia Crocco, assessora da aldeia Ripá, da TI Pimentel Barbosa, explica que essa terra é contígua à TI Wedezé (declarada), ambas desconsideradas pela Funai e Bom Futuro. “Elas são divididas pelo rio das Mortes. Ainda incidindo sobre parte das duas TIs está o refúgio da vida silvestre (RVS) onde há quelônios (tartarugas) bem alí no rio das Mortes, imagine o tamanho do estrago que esta PCH pode fazer.”
Segundo a indigenista, o povo Xavante é essencialmente caçador e coletor e a pesca é também parte fundamental na cultura do povo. “Algumas espécies de peixes sobem o Rio das Mortes e têm parte de sua reprodução em lagoas adjacentes ao rio. Com a alteração da vazão, provavelmente essas espécies desaparecerão”, diz.
Além das falhas na consulta, os Xavante criticam a quantidade de possíveis impactos ambientais ligados ao empreendimento, ao todo são 25 impactos negativos listados no EIA/RIMA, que vão da contaminação do solo e dos recursos hídricos, fragmentação de habitats de espécies de animais, perda de conectividade da fauna terrestre, até o risco de aumento de doenças.
Foi através de um vídeo publicado no Instagram que o articulador da Associação Xavante Warã, Tsedzaiwe Moradzawe buscou se manifestar contra os prejuízos que podem ser gerados caso o projeto da PCH Entre Rios saia do papel. “Por que estamos contra a PCH? Vai ter muita destruição no nosso Cerrado, no nosso costume, no nosso alimento, no peixe”, explicou o indígena, na gravação feita em maio deste ano, na aldeia Abelhinha, da Terra Indígena (TI) Sangradouro, uma entre as cinco TIs xavante já homologadas que podem ser impactadas.
A Bom Futuro busca ainda obter as licenças para a construção das PCHs Cumbuco e Geóloga Lucimar Gomes, ambas no rio Cumbuco, um dos afluentes do rio das Mortes.
Diante disso, os Xavante cobram a consulta a todas as TIs banhadas pelo rio das Mortes e que também estão situadas abaixo do local destinado para a construção das PCHs. “Este Relatório [o EIA/RIMA] comprova que a hidrelétrica será uma barreira física que impede que o rio siga fluindo, impedindo a migração e a reprodução dos peixes, além de destruir as matas do Ró (“Cerrado”), ameaçando a existência de todos os seres sagrados do Cerrado”, dizem os indígenas da Associação Xavante Warã em nota publicada em suas redes sociais.
No mesmo documento os indígenas criticam a audiência pública que ocorreu no dia três de maio. Segundo eles, uma audiência pública que “não seja representativa, capaz de incluir os interessados e afetados, deve acarretar o indeferimento do pedido de licença ambiental da obra”. Apesar da manifestação da entidade, o evento ocorreu de forma virtual. Nele, grande parte dos indígenas criticaram a consulta.
Ainda no decorrer da audiência o conselheiro do Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema) e secretário executivo do Fórum Mato-grossense de Meio Ambiente e Desenvolvimento (Formad), Herman Oliveira, destacou a necessidade da autonomia do protocolo de consulta. “Os protocolos de consulta não podem e não são construídos em diálogo direto entre o empreendedor e as comunidades indígenas, eles são construídos por intermédio do Estado que consigna a OIT e é o Estado brasileiro que tem a obrigação de mediar a relação entre o empreendedor e as comunidades direta ou indiretamente afetadas.”
O Formad ainda questionou a viabilidade da PCH Entre Rios,que pode, ao todo, provocar mais de 25 impactos negativos. Em resposta, Alexandre Nunes da Rosa, geólogo, coordenador da equipe de elaboração do EIA/RIMA e diretor da MRS Estudos Ambientais afirmou que independentemente dos impactos ambientais, essa análise é feita pela magnitude do empreendimento. “O que a gente faz é sempre listar todos os possíveis impactos para que esses quando ocorrerem e se ocorrerem possam ser mitigados através dos seus programas”, disse.
Os programas ambientais, segundo a empresa “servem para controlar, corrigir, evitar ou extinguir os impactos ambientais que o empreendimento pode causar”.
À vista disso, Herman avalia que as PCHs atendem sobretudo a um interesse econômico no país e não necessariamente a uma demanda social por energia elétrica. “A energia elétrica que deveria ser essencial se tornou uma mercadoria, que segue a lógica capitalista. Se não fosse isso, a energia poderia ser auto regulada pelo estado e inclusive contar com o controle social direto e isso não ocorre.”
Segundo reportagem publicada no site National Geographic pelo pesquisador Thiago Couto, no Brasil, as pequenas hidrelétricas correspondem a 85% das 1.517 hidrelétricas em operação, mas elas são responsáveis por gerar apenas 7% da hidroeletricidade do país.
A entidade explica em texto divulgado nas redes que “o vínculo dos Xavante com seu território e com o Cerrado é uma necessidade vital e espiritual. Na sua língua, essa territorialidade encontra uma expressão: maranã bododi, ‘caminho pela mata no território contínuo A’uwe Xavante’”.
Segundo o Promotor de Justiça Luciano Martins da Silva, as falas ditas na audiência pública expuseram falhas no processo de diálogo com a comunidade da cidade de Primavera do Leste e com os indígenas. “As manifestações proferidas pelos participantes na audiência pública ocorrida em 03 de maio deixaram claro que as autoridades locais, inclusive autoridades ambientais e empresários, como os produtores rurais afetados diretamente pelo empreendimento, sequer foram consultados durante a elaboração do EIA.”
Ademais, segundo Luciano, no dia anterior ao da audiência pública, a Associação Xavante Warã encaminhou ao Ministério Público uma carta solicitando que a audiência pública acontecesse de forma presencial, o que não ocorreu. “Diante disso, o MPE iniciou diálogo com o MPF pela Procuradoria da República em Barra do Garças a fim de, por meio de atuação conjunta, promover a observância da legislação pertinente, bem como das formalidades relativas à publicidade e consulta popular no licenciamento do empreendimento. A Promotoria de Bacia Hidrográfica do São Lourenço (Dr. Cláudio em Itiquira) também está atuando conjuntamente.”
Procuradas pela OPAN, a Funai não respondeu aos questionamentos enviados até o momento, a reportagem segue aberta para a manifestação da instituição. Com relação a exclusão das TIs do processo de consulta, a Bom Futuro afirmou que “está seguindo o Termo de Referência e atuando dentro da legalidade”, a empresa ainda afirmou que “todo o processo de consulta foi realizado sob a condução da Funai.”
Matéria atualizada às 20h15 de 07/06/2022 para a inclusão das respostas da Bom Futuro.