Brasil dá seu recado no Egito
Delegação da Amazônia brasileira abre trabalhos na COP27 com contribuições técnicas na reunião da Plataforma Indígena da UNFCCC. Barreira do idioma ainda é desafio.
Por Andreia Fanzeres/OPAN
O Brasil marcou presença na 8ª Reunião do Grupo de Trabalho Facilitador da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC, na sigla em inglês), que aconteceu de 1 a 4 de novembro em Sharm-el-Sheikh, no Egito. Como de praxe, a reunião desta instância oficial da UNFCCC acontece antes da abertura oficial da conferência do clima. A novidade, nesta COP27, ficou por conta do momento inédito em que a delegação indígena da Amazônia brasileira aportou contribuições técnicas ao plano de trabalho da Plataforma. E demonstrou, de forma inequívoca, que se houvesse condições mais equânimes de participação por meio da garantia de tradução para o português, poderia ter feito muito mais.
A língua portuguesa não é um dos idiomas oficiais da UNFCCC. Por isso, nas reuniões dos órgãos da convenção do clima, não é fornecida estrutura de tradução, como fazem para o espanhol, árabe, francês, inglês, russo e chinês. A delegação brasileira tem comparecido às reuniões do grupo de trabalho facilitador da Plataforma com o apoio de uma intérprete e com aparelhos próprios de tradução. Apesar dessa solução provisória, são necessários esforços adicionais para superar as interferências e ruídos de um sistema paralelo de tradução, que, mesmo assim, não dá condições de comunicação amplas e equivalentes às dos demais observadores.
Até agora, não há medidas para a solução do impasse. “A Amazônia tem centenas de povos indígenas que protegem milhares de hectares de florestas fundamentais para o equilíbrio do clima. A falta da tradução das reuniões para o português tem prejudicado a nossa participação. Precisamos criar pontes e não muros”, discursou Dineva Kayabi na plenária do último dia de reunião da Plataforma, em apenas dois minutos a ela concedidos.
Para Hindou Ibrahim, notória ativista indígena do Chad e ex-presidente do grupo de trabalho facilitador entre 2020 e 2021, a falta de tradução implica numa questão de inclusão e acessibilidade às discussões que interessam aos povos indígenas e comunidades locais, sendo uma barreira ao compartilhamento e valorização do seu conhecimento tradicional, que é uma das funções da Plataforma. “É obrigação da Plataforma encontrar as facilidades, inclusive tecnológicas, para que os intérpretes digam de um modo que todos possam entender o que os povos indígenas estão falando”, afirmou. “As línguas oficiais das Nações Unidas não atendem e não garantem a participação de detentores de conhecimento. É preciso flexibilidade”, pontuou Hindou enquanto relatava a realização de uma das atividades da Plataforma. Segundo ela, há muitos povos de seu país que não falam francês nem árabe, razão pela qual a tradução foi garantida na reunião bi-regional da África e Ásia, que ocorreu em N’Djamena, no Chad, em outubro deste ano. “Este é um espaço que precisa ser conquistado pelos brasileiros na Plataforma e isso vai beneficiar não só a Amazônia, mas pessoas de outros países também”, avalia Jessica Wapichana, jovem gestora ambiental do Conselho Indígena de Roraima (CIR).
Jessica foi a porta-voz da delegação brasileira que constituiu um grupo técnico durante a reunião da Plataforma, quando foram solicitadas contribuições concretas ao plano que implementa as atividades definidas em 2021 e deverão ser concluídas até 2024. Afinal, a chamada “COP da implementação” foi lema também da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas da UNFCCC.
Contribuições técnicas
Uma das principais sugestões da delegação indígena brasileira foi ligada à atividade 5 do plano de trabalho, que é a promoção de treinamentos para membros dos países e agências da ONU para um maior engajamento nas questões indígenas. Neste caso, a proposta é de ampliar esforços para que novos países engajem-se na plataforma, que é composta de modo paritário por indígenas e representantes dos Estados, e não apenas aqueles que já estão envolvidos. Isso poderá promover melhores condições de incidência dos povos indígenas em suas pautas nas mesas de negociação da UNFCCC, pois apenas os países têm poder de voto. Esta proposta responde objetivamente ao cenário exposto por Pasang Sherpa, diretora executiva do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento dos Povos Indígenas do Nepal (Cipred). “Os povos indígenas têm também um papel importante trabalhando com os governos porque as mudanças têm que acontecer em todos os níveis. O engajamento dos Estados não tem sido suficiente”, observou.
Outra contribuição importante da delegação brasileira referiu-se à atividade 3, que busca identificar e disseminar informações sobre o desenvolvimento e o uso de currículos e materiais elaborados por povos indígenas ligados às questões climáticas destacando o conhecimento tradicional em sistemas educacionais formais e informais. Esse, aliás, foi um dos temas que suscitaram mais comentários e contribuições entre os membros e os observadores presentes em Sharm-el-Sheikh. “Em Camarões, é preciso estabelecer um sistema educacional diferenciado por causa da condição nômade dos povos”, comentou uma indígena do país.
Walter Gutierrez, representante governamental do Grupo da América Latina e Caribe (Grulac), que é indígena aymara, compartilhou exemplos da Bolívia na construção de currículos próprios dos povos indígenas com um eixo articulador comum: harmonia e equilíbrio com a Mãe-Terra. “Há povos que vivem a mais de 4.500 metros acima do nível do mar, onde a água disponível é salgada. Eles têm conhecimento para lavar o sal da água e semear. Na nossa Constituição, reconhecemos o modelo educacional sociocomunitário produtivo, buscando coerência da educação com a cultura e a língua dos povos. O conhecimento não está limitado aos livros. Ele é construído ao longo da vida e há formas diferentes de compartilhar esse conhecimento além da escola”, disse.
Lokol Paulo, indígena de Uganda, sugeriu que seria importante tecer esforços para documentar os diferentes sistemas de conhecimento. “Os saberes indígenas são dinâmicos, dependem das condições ambientais, dos territórios, está sempre mudando. Nós aprendemos com a experiência”, afirmou. “No sistema aborígine, nenhuma criança é reprovada. Quando ela chega aos 12 anos, já tem doutorado em ciências ambientais, biologia marinha, astronomia. Isso não se ensina no papel. Está no nosso DNA. Educação é soberania”, acrescentou o ancião Ray Minniecon, da Austrália.
O Brasil, nesse assunto, não fica para trás. “Nosso país tem larga experiência na construção de políticas públicas ligadas à educação indígena, valorizando o conhecimento dos povos no sistema educacional, seja formal ou informal. Por isso sugerimos que nos próximos anos nosso país tenha espaço para compartilhar na plataforma todas essas experiências”, falou Jessica Wapichana, enquanto relatava as contribuições do grupo de trabalho dos indígenas brasileiros.
A Operação Amazônia Nativa (OPAN) e a Rede de Cooperação Amazônica (RCA) trabalham em parceria na preparação e acompanhamento de indígenas da Amazônia brasileira em espaços de incidência internacional, como a Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas da UNFCCC. Na COP27, participam Sineia Bezerra do Vale, Jessica Maria Wapichana, Jabson Nagelo (Conselho Indígena de Roraima), Dineva Maria Kayabi (Rede Juruena Vivo), Ianukula Kaiabi Suiá (Associação Terra Indígena Xingu), Dadá Baniwa (Federação das Organizações Indígenas do Alto Rio Negro), com tradução de Merel van der Mark e assessoria de Patrícia Zuppi (RCA), Andreia Fanzeres e Gustavo Silveira (OPAN).