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Contaminação por agrotóxicos foi identificada em 88% de amostras vegetais na Terra Indígena Tirecatinga, em Mato Grosso

Oito de nove ervas medicinais e frutas coletadas continham agrotóxicos, inclusive produtos proibidos no Brasil e no exterior. Relatos dos indígenas demonstram um cenário preocupante.

A população da Terra Indígena (TI) Tirecatinga, localizada na cidade de Sapezal, oeste de Mato Grosso, está sendo impactada pelo uso de agrotóxicos em lavouras no entorno da área. A região é uma das que concentra maior quantidade de agrotóxicos no país. Por meio de uma pesquisa sobre contaminações em terras indígenas e na cadeia produtiva do algodão, realizada pelo Núcleo de Estudos em Ambiente, Saúde e Trabalho, do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal de Mato Grosso (Neast/ISC/UFMT), em parceria com a Operação Amazônia Nativa (OPAN), a Associação Thutalinãnsu, das mulheres, e comunidades de Tirecatinga, foi possível detalhar o tipo de produtos utilizados e a gravidade da situação. Entre as amostras, 88% estavam contaminadas, oito de nove ervas medicinais e frutas.

A presença de agrotóxicos na TI Tirecatinga tem provocado uma série de doenças e problemas de saúde. Em uma das aldeias, este ano, num período de três meses houve três inícios de aborto espontâneo. “Estamos falando de uma comunidade de 60 pessoas em que, de 10 mulheres grávidas, três tiveram início de aborto espontâneo”, destaca a professora Márcia Montanari, da coordenação da pesquisa pelo Neast da UFMT.

Imagem do barbatimão, em que foram verificados seis tipos de agrotóxicos. Foto: Suyane Katikitalosu Terena Nambikwara/Thutalinãnsu

“O problema é que eles passam em cima da aldeia. Cai aquele sereno de veneno”, diz Leontina Nambikwara. Ela é uma das moradoras dessa aldeia que convive com a pulverização de forma direta. Por cima, por conta dos aviões que passam sem respeitar o limite de 500 metros estabelecidos na legislação federal (Instrução Normativa 02/2008 do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento); frente no entorno, devido à aplicação com menos de 90 metros exigidos para pulverização terrestre na legislação estadual – decreto 1362/2012/MT.

Outros resultados à saúde observados na TI Tirecatinga e relacionados à contaminação por agrotóxicos são crises de ansiedade e depressão, problemas respiratórios, pedra na vesícula, apendicite, dores de cabeça, náuseas e enjoos, além de situações de má formação fetal e nascimento de crianças com necessidades especiais. “A gente fica preocupado sobre como vão ser formadas as nossas crianças, que tipos de doenças chegarão entre nós, que tipo de situação a gente vai estar passando com as nossas futuras gerações”, diz a presidente da Associação Thutalinãnsu, Cleide Adriana da Silva Terena.

Tirecatinga, localizada em região de Cerrado, cercada de fazendas para plantio de commodities agrícolas.. Mapa: Cristian Felipe Rodrigues Pereira/OPAN

Além dos impactos diretos às pessoas, o desenvolvimento e a saúde da fauna e da flora são outros motivos de preocupação para os indígenas. A população observa contaminações de peixes e animais de caça como porco do mato e ema, modificações no sabor do mel, baixo desenvolvimento de roçados, diminuição na reprodução e disponibilidade de frutas e plantas.

“O birici todo ano tinha, só que agora acabou. Não tem mais. E é uma fruta muito deliciosa”, diz Terezinha Amazokairo, de Tirecatinga, formada em ciências da natureza e estudiosa sobre plantas medicinais. “Na aldeia Três Jacu ficava até forradinho o chão de birici”, diz ela, contando que iam até longe coletar as frutas e faziam suco, chamado de xixa. A partir da pesquisa sobre os agrotóxicos, ela acredita ter encontrado a resposta para a escassez do birici. Agora, Terezinha pensa as formas de retomar a espécie e ao mesmo tempo se sente preocupada com outra planta, o pequi, que é muito consumido e compõe a renda das comunidades, mas quase não tem frutificado nos últimos dois anos.

Tais perdas e alterações ambientais e para a saúde representam impactos para a vida sociocultural dos indígenas de Tirecatinga. “Sair de casa pra ir na mata e pegar a planta medicinal é uma prática de caráter social forte, reatualizada no cotidiano das aldeias do povo Nambikwara”, observa a coordenadora da OPAN no projeto, Adriana Werneck Regina. “Comprometer a perpetuação dessa diversidade de plantas medicinais significa comprometer a continuidade dessas práticas, que tem a ver com a capacidade do povo ter autonomia de se cuidar, de se tratar, de se medicar, então você na verdade afeta a autonomia do povo de praticar essa medicina local, tradicional e histórica”.

Árvore de pequi na Terra Indígena Tirecatinga. Foto Adriano Gambarini/OPAN

Agrotóxicos proibidos

O carbofurano, proibido no Brasil desde 2017 e há mais de 50 anos na Europa e em estados americanos, foi um dos produtos encontrados nas amostras. Ele pode causar risco de morte após ingestão ou inalação, danos severos aos sistemas neurológico, respiratório e endócrino, malformação fetal em humanos, morte de animais silvestres e grande persistência ambiental. Também foi encontrada atrazina, um herbicida do grupo químico triazina que tem função dessecante, proibido na União Europeia desde 2004, e o carbendazim, fungicida altamente tóxico, que teve a comercialização suspensa no Brasil este ano para conclusão do processo de reavaliação toxicológica.

Terezinha Amazokairo junto ao indigenista da OPAN Edemar Treuherz durante coleta das ervas medicinais para pesquisa. Foto: Suyane Katikitalosu Terena Nambikwara/Thutalinãnsu

Além desses, as amostras continham acetamiprido, associado a doenças crônicas hepáticas e neurológicas, produto de grande periculosidade ambiental pela sua persistência, grande mobilidade no solo, potencial contaminação de lençóis freáticos e tóxico para minhocas e insetos polinizadores. Foi verificado ainda o methomil, inseticida altamente tóxico que pode ocasionar efeitos agudos graves à coordenação motora, tremores, convulsões e óbito após inalação em grande quantidade.

Salto de Utiariti, entre as Terra Indígenas Tirecatinga e Utiariti. Foto: Laercio Miranda/OPAN

Diante desse contexto de contaminações e prejuízos em diversas dimensões da vida e do território, a professora Márcia Montanari, do Neast, afirma ser importante um acompanhamento dos profissionais de saúde visando a redução desses impactos. “É preciso que os serviços de saúde fiquem atentos ao que está acontecendo nos territórios, que informem a população e os fazendeiros do entorno pedindo que se respeitem as áreas de limite e as condições de uso para pulverização, que se respeite a legislação para que de fato existam maneiras de reduzir esse impacto, essas pressões sobre o território de Tirecatinga”, conclui.