Sônia Guajajara assume ministério e anuncia política com protagonismo indígena
Em histórico discurso de posse, Sônia Guajajara destacou o início de uma política indígena e não mais indigenista. Também reforçou a importância dos povos originários no combate à crise climática e cravou que o futuro é ancestral.
Por Túlio Paniago/OPAN
Sônia Guajajara, que já era a primeira indígena a compor uma chapa à presidência da república, agora se tornou a primeira a ser empossada ministra de Estado. A cerimônia de posse do Ministério dos Povos Indígenas aconteceu nesta quarta-feira (11) no Palácio do Planalto. Em seu primeiro discurso, Sônia confirmou a recriação do Conselho Nacional de Política Indigenista, órgão extinto pelo governo Bolsonaro em 2019, e destacou que a criação do Ministério e sua nomeação simbolizam mudanças no modo de se pensar políticas públicas destinadas aos povos originários. “Esse Ministério chega comprometido com a promoção de uma política indígena, não mais uma política indigenista, com o potencial de fazer frente às mazelas que tomaram nossos corpos, memórias e vidas”.
Ela reforçou o caráter histórico do acontecimento ao comparar com a elaboração do Capítulo dos Índios na Constituição de 1988. “Hoje vocês estão presenciando um momento de transição histórica, tal qual foi a singular colaboração indígena na Assembleia Nacional Constituinte. Naquela ocasião, um passo muito importante foi dado com o fim do paradigma integracionista e da tutela. Hoje vocês presenciam um passo ainda maior com esse Ministério. Esperamos com isso fazer respeitar a nossa existência e o nosso protagonismo. Não será fácil superar 522 anos em quatro. Mas estamos dispostos a fazer desse momento a grande retomada da força ancestral da alma e espírito brasileiros. Nunca mais um Brasil sem nós”.
A ministra relembrou do descaso e das violações promovidas pelo Estado brasileiro ao longo do tempo, culminando na invisibilidade social dos povos indígenas. “Essa invisibilidade secular é fruto do racismo, da desigualdade e de uma democracia de baixa representatividade, que nos colocou na triste paisagem das sub-representações e sub-notificações sociais do país. São séculos de violências e violações e não é mais tolerável aceitar políticas públicas inadequadas aos corpos, às cosmologias e às compreensões indígenas sobre o uso da terra”.
O discurso também abarcou a diversidade e os modos de viver dos povos indígenas. “Existimos de muitas e diferentes formas. Estamos nas cidades, nas aldeias, nas florestas, exercendo os mais diversos ofícios que vocês puderem imaginar. Vivemos no mesmo tempo e espaço que qualquer um de vocês, somos contemporâneos deste presente e vamos construir o Brasil do futuro, porque o futuro do planeta é ancestral”.
O evento ainda marcou a posse de Anielle Franco para o também inédito Ministério da Igualdade Racial. Guajajara aproveitou a ocasião para reforçar que indígenas e negros brasileiros compartilham histórias de resistência e luta. “A partir de agora essa invisibilidade não pode camuflar nossa realidade. Estamos aqui de pé para mostrar que nós não iremos nos render. A nossa posse, minha e de Anielle Franco, é o mais legítimo símbolo dessa resistência secular preta e indígena do nosso Brasil”.
Protagonismo diante da crise climática global
Sônia ressaltou que os povos indígenas também são protagonistas quando se trata de conter o desmatamento, combater o aquecimento global e preservar a sociobiodiversidade. “Se antes as demarcações tinham enfoque na preservação da nossa cultura, novos estudos têm demonstrado que a demarcação dos territórios também são fundamentais para a estabilidade de ecossistemas em todo o planeta, assegurando qualidade de vida inclusive nas grandes cidades. A criação desse Ministério sinaliza ao mundo o compromisso do Estado brasileiro com a emergência e justiça climática, além de inclusão, reconhecimento e início da reparação histórica da invisibilidade e da negação de direitos”.
A valorização do conhecimento de povos e comunidades tradicionais também foi uma das pautas levantadas pela ministra. “São também conhecimentos científicos. E hoje são uma das últimas alternativas para conter a crise climática. É preciso que esse conhecimento seja valorizado na prática por todo o território nacional por meio de políticas locais, considerando a diversidade de povos, culturas e territórios”.
Manifestação política e homenagem aos mortos
Sônia criticou a ação de bolsonaristas terroristas que invadiram e depredaram os prédios dos três poderes. Ela afirmou que eles danificaram as estruturas, mas jamais irão destruir a democracia, pois um novo golpe não será permitido. Em seguida, puxou o coro “sem anistia” e foi ovacionada pela plateia, que a acompanhou em uníssono brado.
Também fez questão de nomear mais de uma dezena de indígenas que foram vitimados recentemente. “Não posso deixar de lembrar dos parentes que foram retirados de nosso convívio pela bala do fascismo, que imperou no Brasil nos últimos anos, derramando sem pudor muito sangue indígena. Lembremos da força daqueles que tombaram na luta. Parentes vitimados pelo garimpo ilegal, pela invasão de seus territórios e por tantas outras ações e omissões do Estado”.
Sônia homenageou ainda o indigenista Bruno Araújo Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips, assassinados na região do Vale do Javari, no Amazonas, em junho de 2022. “Preciso destacar a força de Bruno Pereira e Dom Philips, em memória de quem saúdo todos os nossos aliados e aliadas defensores do meio ambiente e dos direitos humanos. Esse brutal assassinato não pode permanecer impune”.
Equipe do Ministério dos Povos Indígenas
A ministra aproveitou a ocasião para anunciar a equipe do Ministério, que será composto por Eloy Terena (secretário-executivo); Jozi Kaigang (Chefe de Gabinete); Eunice Kerexu (Secretária de Direitos Ambientais e Territoriais); Ceiça Pitaguary (Secretária de Gestão Ambiental e Territorial Indígena); Juma Xipaia (Secretária de Articulação e Promoção de Direitos Indígenas); e Marcos Xucuru (Assessor especial do Ministério).
Por fim, reafirmou seu compromisso de promover políticas que garantam uma efetiva cidadania indígena. “Isso não se faz sem demarcação de territórios, proteção e gestão ambiental e territorial, acesso à educação, acesso e permanência à universidade pública gratuita e de qualidade, ampla cobertura e acesso à saúde integral. É com esse espírito que assumo a missão de sensibilizar toda a sociedade brasileira para, juntos, reflorestarmos mentes e corações, rumo a uma democracia do bem viver, de todos os brasileiros e brasileiras.
Trajetória de Sônia Guajajara
Nascida na Terra Indígena Araribóia, no Maranhão, é do povo Guajajara/Tenetehara. Aos dez anos, saiu de sua terra para estudar na cidade de Imperatriz, onde mais tarde trabalhou como doméstica. Aos quinze, se mudou para Minas Gerais para cursar o ensino médio.
Após concluir o ensino médio, voltou para o estado natal e se formou em Letras e Enfermagem pela Universidade Estadual do Maranhão. Também possui pós-graduação em Educação Especial pela mesma universidade. Foi conquistando espaço com a militância e ganhou projeção em órgãos internacionais, como no Conselho de Direitos Humanos da ONU.
Em 2009, foi vice-coordenadora da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). Em 2013, assumiu a coordenação-executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Recebeu, em 2015, a Ordem do Mérito Cultural.
Liderança indígena mais votada do país na última eleição e a primeira eleita pelo estado de São Paulo, com 156 mil votos, Sônia Guajajara foi considerada uma das 100 pessoas mais influentes do mundo em 2022 pela revista Time. Fez parte da equipe de transição do terceiro governo Lula e agora é ministra dos Povos Indígenas.