OPAN

Mulheres Paumari ocupam espaços estratégicos na gestão do território

Participando do manejo sustentável de pirarucu, elas se destacam pela competência em funções importantes.

Por Marina Rabello/OPAN

“A gente dizia: Não é só homem que tem que estar lá falando, participando de reuniões. A gente também tem que estar lá” lembra Deusilene Paumari, 35 anos, mãe de 8 filhos, e a primeira presidente da Associação Indígena do Povo da Água – AIPA, que representa o povo Paumari de três Terras Indígenas no rio Tapauá, afluente do rio Purus, no Amazonas. Até chegarem à presidência da recém-criada associação, em 2019, e hoje se destacarem em diversas funções ligadas à gestão dos territórios, manejo sustentável de pirarucu, e fortalecimento cultural, as mulheres paumari percorreram um longo caminho, abrindo com persistência e coragem os espaços atualmente ocupados. A caminhada vem rendendo importantes conquistas, como a criação, na última assembleia da AIPA, da Coordenação de Organização de Encontros de Mulheres Indígenas, que será responsável pela mobilização permanente das mulheres paumari em torno de suas pautas de interesse.

Deusilene e Sara Paumari, lideranças femininas do povo, tecem juntas um cesto em uma das oficinas organizadas pelas mulheres | Foto: Adriano Gambarini/OPAN

Neste mês de março, no qual se comemora o Dia Internacional das Mulheres, vamos relembrar essa trajetória a partir do ponto de vista de duas mulheres e fortes lideranças do povo Paumari do rio Tapauá: a Sara Paumari, que é professora e foi uma das primeiras mulheres a ganharem destaque no manejo sustentável de pirarucu; e Deusilene Paumari, cuja fala abre a matéria, e que foi a primeira presidente da AIPA, entre 2019 e 2022.

Unidas pelo futuro paumari

Os caminhos de Sara e Deusilene estão entrecruzados em muitos pontos, e evidenciam como as mulheres de seu povo têm se empoderado com o manejo sustentável de pirarucu. No início da iniciativa, a maioria delas não participava das reuniões, porque tinha que cuidar dos filhos pequenos. Com o tempo, foram entendendo que tinham papel fundamental na iniciativa de manejo sustentável pesqueiro, que a princípio, parecia envolver somente os homens. “Meu marido falou para eu parar com os ciúmes, e começar a frequentar as reuniões também. Aí eu comecei a ir”, lembra Deusilene.

No início, elas tiveram que batalhar para que suas demandas fossem ouvidas, e sua participação na gestão e proteção dos territórios reconhecida. Com o tempo, elas foram ganhando força, e mais mulheres começaram a se envolver e reivindicar espaços para participação no manejo sustentável de pirarucu e outras atividades ligadas à gestão das TIs. “Teve uma reunião com o pessoal da OPAN, onde eles deram oportunidade para a mulherada falar. A gente ficou até assustada, porque os homens nunca tinham dado oportunidade para a gente falar. Quando chegou esse dia, a gente ficou tão surpresa, que a gente não teve nada para falar. A gente começou a perceber que os homens estavam nos acolhendo, e que a gente podia passar a se envolver mais no manejo, e não ficar só nos cuidados com as crianças”, recorda a ex-presidente da AIPA.

Sara começou a se envolver com o manejo também pelo desejo de contribuir com o projeto de futuro coletivo. “Eu ia em todas as reuniões e percebia que os homens sofriam muito pela nossa ausência. A gente podia estar lá trabalhando junto com eles. Começamos pela cozinha, e fomos ganhando participação em todas as funções”, explica ela, que foi a primeira coordenadora da cozinha, em 2013. Neste cargo, Sara era responsável pelo planejamento e preparo da alimentação do grupo durante a pesca e outras atividades do calendário paumari relacionadas ao manejo. “Eu tinha o costume de cozinhar a merenda na escola, por isso me indicaram. Mas fiquei insegura, porque é bem diferente cozinhar para crianças e adultos”, relembra Sara.

Nesse primeiro ano, as mulheres já estavam bem articuladas, e isso foi fundamental para que a tarefa da equipe da cozinha fosse cumprida. “A gente não tinha utensílios de cozinha para preparar comida em grande quantidade. Só as coisas que usávamos para preparar as refeições das nossas famílias. Então cada mulher trouxe seus utensílios, e conseguimos dar conta de toda a alimentação da pesca. Deu tudo certo”, recorda Sara.

Margarida Paumari se manifesta em reunião para a divisão de equipes na pesca de 2021 | Foto: Marina Rabello/OPAN

Na pesca sustentável de pirarucu, todas as funções são remuneradas pelas horas trabalhadas, por meio de um sistema de pontos. As tarefas realizadas predominantemente pelas mulheres, como a cozinha, e a lavagem de uniformes, recebem o mesmo pagamento que outras funções. O reconhecimento ao trabalho das mulheres na cozinha, que provem alimentação saudável e saborosa aos participantes da pesca, contagem e outras reuniões, e a remuneração dessa tarefa em valor igual a todas as demais, trouxe satisfação às mulheres, mas não foi o suficiente para realizar todos os seus sonhos. “Chegou um momento em que a gente pensou que não dava mais para ficar só na cozinha e na lavagem dos uniformes. A gente queria também ocupar outras posições na limpeza do pirarucu, monitoramento, contagem”, ressalta Deusilene. “A mulherada vinha conversando sobre outros papéis que queriam desempenhar. Então começamos a aprender, e hoje estamos ocupando essas várias posições com um trabalho de muita qualidade”, comenta Sara.

As mulheres ganharam destaque em diferentes funções do manejo sustentável de pirarucu, como a limpeza do peixe | Foto: Adriano Gambarini/OPAN

Delivery paumari

O trabalho na cozinha durante a pesca e outras reuniões e atividades promovidas pela AIPA é árduo, e envolve muito planejamento para a produção de comida para grandes grupos, no meio da floresta. Os alimentos que não são providos nos territórios, precisam vir das cidades mais próximas (que ficam de horas a dias de barco de distância dos territórios), e comprados com antecedência, garantindo o preparo de ao menos quatro refeições todos os dias, enquanto durar cada atividade. Na pesca sustentável de pirarucu, que se prolonga por cerca de três semanas, a equipe de cozinha se divide entre o trabalho no flutuante da cozinha e nos lagos onde ocorre a pesca.

O flutuante da cozinha, que junto com o flutuante de pré-beneficiamento, e os demais barcos envolvidos na pesca, formam um conglomerado de embarcações que fica atracado nas redondezas dos lagos, é onde são preparadas as refeições para aqueles que estão trabalhando na recepção, limpeza, monitoramento e refrigeração do pirarucu. E para aqueles que estão descansando em seus barcos. Em geral, cada família tem um barco de madeira pequeno, que além de meio de transporte, é uma casa flutuante. Durante a pesca, esses barcos e flutuantes formam aldeias temporárias nos lagos e arredores.

Os flutuantes e demais barcos envolvidos na pesca formam um conglomerado de embarcações | Foto: Adriano Gambarini/OPAN

Nos lagos também são estruturadas cozinhas para o preparo das refeições dos pescadores e das suas famílias, que acompanham o trabalho. As famílias que estão no lago, dormem em seus barcos, e é montado um acampamento onde os pescadores e transportadores de pirarucu passam a noite, na beira. Para levar as refeições até os pescadores no meio do lago, as mulheres transportam as panelas nas voadeiras, e vão até cada canoa, levar comida saborosa e revigorante àqueles que estão trabalhando no sol, chuva e madrugada na captura de pirarucus. De manhã cedinho, elas repetem o trajeto passando por todas as canoas, para levar café quentinho, e biscoito. E assim se repete a rotina pelo tempo que durar a pesca.

As mulheres embarcam com as panelas nas canoas para servir as refeições aos pescadores nos lagos | Foto: Marina Rabello/OPAN

Diferentes mulheres já passaram pelo cargo de coordenadora da cozinha, e esse trabalho contribuiu na construção do prestígio delas perante as comunidades, enquanto liderança. Essa habilidade de cuidar dos recursos alimentícios, e prover comida boa e farta durante os dias de trabalho intenso na pesca, é uma qualidade muito bem avaliada. E as mulheres foram sentindo o reconhecimento por parte dos homens da qualidade de seu trabalho, e a abertura deles para que participassem de outras funções que desejassem. Hoje as mulheres se destacam na limpeza do pirarucu, no monitoramento do pescado – preenchimento de planilha para registro de cada pirarucu pescado -, na gestão da AIPA e de projetos.

Tecendo a união

A participação das mulheres se ampliou conforme o manejo sustentável de pirarucu foi se fortalecendo, e elas passaram a ter papel central na atividade. Tanto que já na criação da AIPA, em 2019, a primeira presidente eleita pela associação foi uma mulher, a Deusilene Paumari. Na assembleia de criação da associação, ela se candidatou em uma chapa com Germano Paumari, professor e liderança do povo.  “Eu falei que topava ser presidente, mas falei sem pensar em ser eleita. Porque tinha várias outras chapas. Eu fui trabalhar na cozinha, porque eu estava na coordenação da cozinha na assembleia, e o pessoal foi votando. Aí quando fui chamar todos para comer, começaram a me aplaudir. Foi muito legal, esse dia foi muito emocionante para mim. A mulherada falava ‘você é nossa presidente’”, relata a primeira presidente da AIPA.  

Em 2021, ainda como presidente, Deusilene foi convidada a participar de uma formação voltada a mulheres indígenas, chamada Entre Parentas, organizada pela OPAN e pelo Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB). Na formação, além de aprenderem sobre o gerenciamento de associações e projetos, Deusilene e as mulheres paumari foram convidadas a elaborar e executar um projeto de R$10.000,00. As mulheres, já mais articuladas, realizaram reuniões para decidir conjuntamente em torno do que giraria o projeto. Foi decidido por elas, que o recurso deveria ser usado na realização de encontros e intercâmbios de mulheres para o fortalecimento dos conhecimentos sobre a arte de tecer com fibras naturais.

Entre 2021 e 2022, foram realizados diversos encontros, tanto entre mulheres Paumari do Tapauá, quanto entre elas e as Paumari da Terra Indígena Paumari do Lago Marahã (localizada também no médio Purus), que mantém o hábito cotidiano do teçume. Os encontros tiveram o objetivo de proporcionar a transmissão de conhecimentos entre as mulheres mais experientes na arte e aquelas que precisam praticar mais, ou estão começando a aprender. Essas são também oportunidades para a valorização dos conhecimentos paumari: nos cestos, por exemplo, são tecidos grafismos cujo pano de fundo é a cosmologia do povo.

Estes encontros têm tido muito sucesso em estimular as mulheres Paumari a aprenderem a arte do teçume. “O foco é fortalecer nossos conhecimentos, não deixar as novas gerações sem saber como fazer um cesto e um abano”, explica Deusilene. E têm demonstrado a importância da mobilização constante das mulheres em torno das pautas que consideram importante. “Foi percebendo isso que a gente achou importante criar uma coordenação da AIPA focada na organização de encontros de mulheres”, explica Sara. Essa nova coordenação temática do trabalho das mulheres foi aprovada na última assembleia da associação, no segundo semestre de 2022. Neste mandato, Sara é a vice- coordenadora, ao lado da titular Kamelice Paumari.

Os encontros também mostram que as mulheres paumari estão conseguindo provocar reflexões e mudanças nas relações de gênero do povo. Para que elas pudessem se dedicar integralmente aos encontros, os homens se organizaram para coordenar a cozinha, fato inédito. “É um processo, demora, mas a gente vai vendo mudança, e cada vez mais mulheres envolvidas nessa articulação, somando forças com os homens na proteção do nosso território e dos nossos conhecimentos. E vai continuar assim”, afirma Sara, cheia de esperança.