Mochila xavante de prevenção a incêndios florestais é concluída
Indígenas passaram por treinamento e agora vão conduzir a implementação do material pedagógico junto às comunidades
Por Arielly Barth e Túlio Paniago/OPAN
A construção da mochila de prevenção a incêndios florestais junto aos Xavante da Terra Indígena (TI) Marãiwatsédé durou mais de um ano. A ferramenta pedagógica já é utilizada em comunidades no Peru, Equador, Colômbia e Paraguai e, pela primeira vez, foi construída a partir da cosmovisão de uma comunidade indígena. Em junho, quando foram entregues as primeiras mochilas, um grupo Xavante passou pelo treinamento para a implementação do material junto às aldeias.
Composto por uma mochila, um tecido de 2 por 1 metros, dezenas de figuras e um guia pedagógico, o conteúdo foi produzido com o objetivo de contribuir com a redução dos incêndios florestais a partir da sensibilização e da aplicação de práticas sustentáveis de manejo integrado do fogo, sem perder de vista o seu uso tradicional na cultura Xavante.
Durante o treinamento, representantes de diferentes aldeias passaram por uma prática guiada sobre como utilizar o material. O condutor da atividade faz perguntas (indicadas no guia) relacionadas à origem do fogo na cosmovisão Xavante, ao seu uso tradicional, às transformações do território, aos desmatamentos e incêndios, dentre outros temas. O tecido é preenchido com figuras conforme as respostas dos participantes. Por fim, a ideia é que sejam estabelecidos acordos comunitários de boas práticas de manejo do fogo a partir das reflexões e discussões suscitadas.
A mochila de prevenção a incêndios florestais foi construída em três etapas: pactuação e desenvolvimentos dos temas junto à comunidade; construção dos materiais em diálogo com as aldeias; e validação pelos Xavante. “A concepção e a tradução de todo o material teve protagonismo Xavante. Foi um processo que contou com a participação de professores, lideranças, mulheres e anciões”, explica Artema Lima, coordenadora do Programa Mato Grosso na Operação Amazônia Nativa (OPAN).
Gonçalo Wedewawe, jovem indígena que participou do treinamento, garantiu que será multiplicador do aprendizado junto aos demais membros da comunidade. “Não foi à toa que ganhei essa mochila. Vou convidar os jovens, os velhos, todos que quiserem participar, para eles trabalharem e aprenderem cada vez mais, porque tem muitas coisas que eles não sabem e ainda podem aprender”.
Para Carolina Rewaptu, cacica e professora da comunidade, o projeto é importante porque trabalha com a temática do fogo em várias esferas. “O uso tradicional do fogo, a prevenção e o combate a incêndios florestais são conhecimentos importantes. Porque é bom o uso do fogo para a cultura, mas também é bom saber como controlar”, reflete.
O material pedagógico parte da cosmovisão e da relação ancestral dos Xavante com o fogo. Além de ser elemento central do mito de criação, o fogo está presente em diversos usos cotidianos e ritualísticos. “É importante que o jovem aprenda esse conhecimento da ancestralidade, que o fogo é importante”, pontua Carolina.
No início deste mês, o material foi apresentado à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) pela cacica Carolina Rewaptu e pelo cacique Estevão Tsimitsute. Eles foram recebidos por servidores da Procuradoria Federal Especializada (PFE), Assessoria Parlamentar (Aspar), Coordenação-Geral de Gestão Ambiental (CGGam), Coordenação-Geral de Promoção ao Etnodesenvolvimento (CGEtno) e Coordenação-Geral de Monitoramento Territorial (CGMT). Também estiveram presentes na reunião representantes da Operação Amazônia Nativa (OPAN) e do Serviço Florestal dos Estados Unidos (USFS).
Por se tratar de um projeto piloto no Brasil, a mochila está sendo testada apenas em três das 14 aldeias da TI. Posteriormente, as demais mochilas serão distribuídas para a implementação em todo o território. A partir da experiência em outras comunidades, a expectativa é positiva. “Temos atuado em diversas partes do mundo para prevenir e reduzir os efeitos dos incêndios florestais e empoderar comunidades tradicionais para tornar decisões mais eficientes e efetivas. Essa ferramenta reúne o conhecimento Xavante para apoiar sua disseminação no processo de prevenção e manejo do fogo”, explica Pedro Constantino, do Serviço Florestal dos Estados Unidos (USFS).
Contexto histórico da TI Marãiwatsédé
Os Xavante de Marãiwatsédé são pioneiros no Brasil na implantação da mochila de prevenção a incêndios florestais. O povo lida frequentemente com incêndios, afinal cerca de 70% da vegetação nativa, em uma área de transição entre a Amazônia e o Cerrado, foi substituída por pastagens. Esse processo ocorreu no período de mais de 40 anos em que o povo foi mantido longe de seu território tradicional em favor de interesses de latifundiários. Retirados pelo Governo Federal em 1966, os Xavante só conseguiram retornar em 2004, sendo que a desintrusão de posseiros e fazendeiros do território só ocorreu em 2013.
“Quando voltaram após a desintrusão, encontraram o território devastado, transformado em pasto. E a cultura de manejo de fogo é muito importante do ponto de vista cultural, como no ritual da caçada Xavante, onde se usa o fogo para manejar o Cerrado e conseguir alimentos, além de fortalecer a cultura tradicional junto às novas gerações. Enfim, essas práticas passaram a exigir novos cuidados e acordos para evitar incêndios florestais, pois, além do território devastado, hoje ainda há o agravante das mudanças climáticas e incêndios criminosos cometidos no período da seca por pessoas de fora da TI”, contextualiza Lola Rebollar, indigenista da OPAN.
Mochila de Prevenção de Incêndios Florestais
Desenvolvido em 2020, o Programa Fogo Regional para a América do Sul surgiu como resposta ao aumento dos incêndios no continente. A iniciativa do USFS, com apoio da Usaid, reúne parceiros e aliados na região. O programa trabalha com várias entidades oficiais e privadas, universidades e comunidades indígenas, os apoiando com recursos técnicos e humanos, especialmente no território amazônico.
Nesse contexto, a mochila se apresenta como uma ferramenta inovadora para sensibilizar e fundamentar comunidades no que diz respeito às temáticas educativas de manejo integrado do fogo, tornando-se um instrumento estratégico para a prevenção de incêndios florestais, que estão aumentando em tamanho, frequência e intensidade nos últimos anos.
A experiência brasileira é fruto de uma parceria entre o povo Xavante de Marãiwatsédé, a OPAN, com apoio do USFS e da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid).