Um marco para a valorização da variedade linguística de Mato Grosso
Seminário de Línguas Indígenas reuniu professores, lideranças e pesquisadores para compartilharem experiências e estratégias de revitalização de idiomas que são parte fundamental da identidade e cultura dos povos originários
“Pá estado moto makia kukuxipakewá amí nanixí!” – em português, “nosso estado tem uma riqueza que você desconhece”. Esta frase, escrita na língua do povo Umutina-Balatiponé, revela um segredo: Mato Grosso abriga uma rica diversidade linguística com cerca de 30 idiomas indígenas ainda pouco conhecidos pela maioria dos mais de 3 milhões de habitantes do estado.
De 26 a 28 de novembro, foi realizado em Cuiabá o I Seminário de Línguas Indígenas, que reuniu professores, lideranças e pesquisadores para discutir a preservação desse patrimônio cultural, fundamental para a identidade e a cultura dos povos originários.
Ivar Luiz Vendruscolo Busatto, coordenador geral da Operação Amazônia Nativa (OPAN), participou do evento e ressaltou que a situação das línguas indígenas em Mato Grosso é complexa e desigual. Enquanto alguns povos falam exclusivamente sua língua materna, outros enfrentam desafios como a falta de falantes. Nesse sentido, destacou a necessidade de ações urgentes para a preservação das línguas tradicionais.
“O seminário é uma oportunidade incrível de ver que é possível não apenas salvar as línguas indígenas, mas buscar tudo que é possível para que de fato essa grande riqueza que expressa a cultura, a vida, a sensibilidade e a espiritualidade dos povos tenha as melhores possibilidades de não se perder”.
Francisca Novantino, do povo Paresi e vice-presidente do Conselho Estadual de Educação Escolar Indígena de Mato Grosso (CEI), celebrou o seminário como um momento de visibilizar as iniciativas pedagógicas que valorizam as línguas indígenas nas escolas.
“A gente está muito contente porque várias dessas ações que são realizadas nas escolas indígenas nem sabíamos que estavam acontecendo”, disse a vice-presidente, que ressaltou a importância de compartilhar as experiências positivas para incentivar a continuidade dessas ações.
Como exemplo, Novantino mencionou o povo Umutina-Balatiponé que conseguiu revitalizar não só a língua, mas também os cantos e as danças. Conforme a educadora, a formação de professores indígenas da própria comunidade foi um passo importante nesse processo.
A professora Eliane Boroponepá Monzilar, do povo Umutina-Balatiponé e coordenadora da Licenciatura Intercultural Indígena na Faculdade Indígena Intercultural (Faindi), compartilhou sua jornada: “Aprendi a falar meu idioma quando entrei na universidade. Por isso, destaco a importância da formação de professores. Quando éramos acadêmicos do Terceiro Grau Indígena que despertamos para fazer a imersão dentro da cultura e da língua. Hoje, nossas crianças e jovens sabem falar palavras, frases e estão produzindo textos na língua”.
Segundo Eliane, a formação superior proporcionou as ferramentas necessárias para pesquisar e documentar a língua, incentivando a interação entre os estudantes e os anciãos. “Na época fomos buscar os anciãos e os arquivos para aprender a língua, que estava adormecida”, disse a coordenadora.
Ela lembra que a revitalização da língua Umutina-Balatiponé foi um processo desafiador, mas está muito feliz por hoje vivenciar os resultados. “Foi semeado e já está florescendo, que é a questão da língua”.
Além da formação de professores indígenas, a criação de materiais didáticos e o uso de tecnologias como aplicativos são iniciativas importantes para a preservação das línguas indígenas. O povo Myky, por exemplo, desenvolveu um dicionário e realiza atividades que combinam a tradição oral com a escrita.
“Nós falamos e escrevemos bem no nosso idioma tradicional, que possui características próprias, com diferenças em relação ao português, como a ausência de determinadas letras”, disse o professor Wajakuxi Myky, da Terra Myky, em Brasnorte.
“Por exemplo, nós não usamos d, f, g e z e tudo está registrado no nosso dicionário, que foi feito com ajuda dos anciãos, que vão até a sala de aula e ajudam os alunos a escreverem textos”, acrescentou.
Outra iniciativa compartilhada no seminário foi a do povo Boe-Bororo, que está desenvolvendo um aplicativo para o ensino da língua. O professor Mariel Mariscot Bento Kujiboekureu, da Escola Estadual Indígena Sagrado Coração de Jesus da Aldeia Merure, contou que a ideia de criar o aplicativo surgiu a partir de um estudo realizado pelos próprios membros da comunidade, com o apoio de um linguista.
“A gente está nessa luta de dar uma nova vida para a língua bororo, porque no passado teve uma quebra e isso causou efeitos na nossa comunidade. E esse aplicativo é uma forma lúdica, porque as nossas crianças e jovens usam muito o celular. Então, queremos usar a tecnologia a nosso favor”.
A previsão é de que o aplicativo seja lançado em 2025. Mariel explicou que a comunidade Boe-Bororo terá acesso livre às aulas, mas as pessoas de fora vão precisar pagar um valor para conhecer a língua tradicional de seu povo.
Soletrando Terena
Inspirados no concurso de soletração da TV Globo, o povo Terena criou o ‘Soletrando Terena’. O professor Antonino Reginaldo Jorge, da Escola Estadual Indígena Élio Turi Rondon Terena, da Aldeia Copenoti na Reserva Indígena Terena Gleba Iriri, afirmou que o projeto acabou indo além de ensinar os alunos a soletrar palavras no idioma tradicional e envolveu toda a comunidade.
“Os pais vieram me contar que as crianças acordavam e dormiam falando as palavras. E até os pais passaram a falar a língua Terena”, contou o professor sobre o projeto, que além de estimular os alunos a falar e escrever, também fortaleceu a identidade cultural do povo.
Após o sucesso do projeto, a escola definiu que em 2025 será realizada mais uma edição do ‘Soletrando Terena’, que vai envolver as quatro aldeias do território.
Desafios
O professor Paulo Henrique Martinho Skiripi, do povo Rikbaktsa, alerta para os desafios enfrentados pelas línguas dos povos originários: a pressão da cultura não indígena e a falta de valorização da educação tradicional.
“Antes, a língua era ensinada no berço familiar. Hoje, é totalmente diferente porque você tem que ir para a escola, que não é uma escola que reflete a realidade da nossa comunidade”, afirma Skiripi.
Para reverter esse cenário, o professor defende a participação ativa das comunidades na construção de um currículo que valorize suas línguas e culturas, além da documentação das diferentes variações linguísticas. “Nós é que temos que dizer como é que nós escrevemos e como é que nós falamos”.
A luta pela preservação das línguas indígenas é um desafio constante, mas as iniciativas apresentadas no seminário demonstram que é possível superar obstáculos e garantir a transmissão desse patrimônio cultural para as futuras gerações. A força e a resiliência dos povos indígenas são a maior esperança para a manutenção dessa rica diversidade linguística.