Juruena contaminado
Pelo menos 20 milhões de litros de agrotóxicos ameaçam a vida dos moradores na sub-bacia do Juruena.
Por: Dafne Spolti/OPAN*
Cuiabá-MT – Enquanto imponentes imagens das plantações de soja e algodão de Mato Grosso viajam mundo afora em catálogos e revistas, a sub-bacia do rio Juruena, que abriga algumas das maiores e mais lucrativas propriedades exportadoras de grãos do Brasil, fica encoberta. Não se conhece sua beleza, que é difícil conter em palavras, nem os povos que utilizam seus rios para beber água, tirar o peixe e viver intensamente sua cultura. Por isso mesmo, pouco se fala sobre como o carro-chefe da economia do país é nocivo não só para um dos locais mais exuberantes do Cerrado, as nascentes da bacia do Tapajós, mas para a saúde de quem vive ali.
“Com 17, 18 anos eu vi o rio Juruena bonito. Hoje você vê só água. Não tem mais nada. E onde nós vamos achar peixe? O peixe está contaminado. A ema anda onde passam veneno. A gente mata e come. Achamos veneno de formiga na beira do rio. Soja cresce na barriga do pacu. Estoura o bucho dele e ele morre. Por isso o peixe está acabando”, disse André Celino Nambikwara às margens do rio Buriti, no município de Sapezal.
Em sua área, vizinha às lavouras, a questão dos agrotóxicos é problema oficial. No Plano de Gestão da Terra Indígena Tirecatinga, eles apontam a preocupação, registram que encontraram muitos galões de veneno para formiga no rio Papagaio e relatam uma vez em que foi necessário limpar o rio Buriti, que estava cheio do lixo das embalagens. “Achamos muitos galões azuis. Apanhamos tantos que enchemos uma canoa. Era tanto que não coube mais. Largamos o resto”, diz um trecho do documento.
Mesmo observando essas marcas do agronegócio, é difícil quem saiba da real dimensão do uso de agrotóxicos no município de Sapezal e nas cidades vizinhas. Em 2012 foram utilizados nove milhões de litros em Sapezal, sete milhões em Campos de Júlio e quatro milhões em Campo Novo do Parecis, de acordo com os últimos dados do Instituto de Defesa Agropecuária do Estado de Mato Grosso (Indea)1. Esta quantia é suficiente para encher de veneno oito piscinas olímpicas. Trata-se de um número tão alto que deixa para trás a atual média nacional de 7,3 litros por pessoa ao ano. Em Sapezal, isso chega a um número 52 vezes maior: 393 litros por pessoa, considerando a população de 2016, o que atinge imediatamente os trabalhadores das fazendas e alerta para o emaranhado tóxico a que a toda a população está submetida.
O professor Wanderlei Pignati, do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal de Mato Grosso (ISC/UFMT), coordenador do Projeto Juruena2, explica que o número se deve especialmente à produção de algodão, que recebe de 24 a 30 litros de agrotóxicos por hectare nessa região, campeã em seu plantio. Isso equivale ao dobro do que é utilizado no cultivo de soja, em que também é aplicada uma combinação explosiva dos mais diferentes produtos (herbicidas, inseticidas, fungicidas, dissecantes etc.).
O município de Sapezal tem a maior área plantada de algodão de Mato Grosso, estado responsável por 68% de sua produção no país3, que, por sua vez, é campeão mundial em consumo de agrotóxicos. Do total de aplicações dos venenos, para o algodão e outras lavouras, estima-se que 49% ficam no solo, 32% nas plantas e 19% se dispersam no ar, explicou Pignati, sendo que nos três casos, por meio das chuvas, também escorrem para os rios e reservatórios de água.
Como constatam os indígenas de Tirecatinga, os peixes não têm como escapar desse imenso volume de agrotóxicos que desce de um rio para o outro sucessivamente, alcançando diversos territórios. Em uma pesquisa de mestrado do Projeto Juruena, realizada pelo biólogo Luã K. Oliveira, além de encontrar veneno na água, foram identificados peixes contaminados. Em um deles foi constatado o flutriafol, um fungicida altamente tóxico presente no rio Verde, em uma região degradada, permeada por lavouras agrícolas, à margem direita da Terra Indígena Utiariti. Em outro caso, o peixe foi coletado na margem esquerda da Terra Indígena Paresi, no rio Juruena. Havia resíduos do herbicida atrazina, que é classificado como medianamente tóxico. Neste último caso, a região é conservada, o que leva a crer que a contaminação se deve ao uso de soja como ceva, uma mistura de alimentos jogados no rio para atrair os peixes.
Nelson Nambikwara também reclama da prática ilegal de instalação de armadilhas à base de soja nos rios da sub-bacia do Juruena, como no caudaloso e límpido Buriti. “Por causa da ceva, os peixes não navegam mais. É difícil de pegar. Eles ficam concentrados. É chiqueiro de peixe. Falam para o índio que não pode caçar nem pescar. Mas está cheio de ceva no rio”, disse. Pedro Nambikwara faz uma projeção dos próximos tempos caso a realidade não mude: “Daqui a um tempo, a gente não vai nem pegar água para beber do rio. Tem galão de veneno, usam óleo, produto químico se fizerem usinas4. O peixe não está acostumado com isso”.
Além das análises, Oliveira observou no município de Campo Novo do Parecis a pulverização de uma lavoura exatamente ao lado de um rebanho bovino, o que contradiz até mesmo os fracos limites colocados pela lei estadual 1651/2013, que reduziu de 300 para 90 metros a distância terrestre (de populações, fontes de água potável, criatórios de animais etc.) para pulverização de agrotóxicos. Na ocasião, o gado ficou muito agitado por conta das substâncias, uma mistura de glifosato com inseticida e outros produtos que continham mais glifosato, como foi observado in loco. O pesquisador explicou que, ao contrário da atrazina, a molécula de glifosato modifica-se em cerca de uma semana, e que sua análise se torna ainda mais difícil quando associada a outras substâncias. Segundo ele, isso é utilizado pelo setor do agronegócio como forma de negar a utilização do veneno. “Eles se aproveitam disso para falar que não há contaminação”, revela o pesquisador.
Um bom conselho
Por conta da dificuldade de coleta dos dados, Luã K. Oliveira enfatiza que são muito importantes as outras formas de verificação do uso dos venenos. Para os indígenas, trata-se principalmente de identificar os elementos que alteram sua vida de forma direta, como observa o coordenador geral da Operação Amazônia Nativa (OPAN)5, Ivar Busatto “O que estão dizendo é sobre os problemas que realmente acontecem. Não estão falando para aquele agricultor que tem responsabilidade, que busca usar a menor quantidade de veneno possível, fazer o pousio e o controle biológico de pragas”, explicou.
Busatto mencionou o samba-enredo da Imperatriz Leopoldinense do carnaval deste ano. Ele faz questão de reconhecer as dificuldades pelas quais os agricultores passam para ter sucesso em suas lavouras, principalmente perante as multinacionais, mas destacou que a música não inflige difamações e defendeu que os agricultores aproveitem a mensagem de quem vive há séculos nessas terras. “Dizem ‘cuide do solo, da água e do ar que todo mundo vai gostar de vocês’. O chamado dos índios é na paz o no amor. Eles deveriam incorporar e brincar junto, dizer muito obrigado pelo conselho e procurar melhorar”.
* Contribuições de Tarcísio dos Santos, Andreia Fanzeres e Diogo Henrique Giroto/OPAN. Texto publicado na revista Eco 21, edição 243/fevereiro/2017.
1 – Dados sistematizados por Wanderlei Pignati/ISC/UFMT.
2 – Realizado a pedido do Ministério do Trabalho, investiga o impacto do uso de agrotóxicos na saúde de trabalhadores e no ambiente ocupacional e geral por meio de avaliações do nível de contaminação nas águas, nos sedimentos de rios e alimentos, avaliando os diversos fatores ocupacionais, físicos, ecológicos e antrópicos que podem estar influenciando nos níveis de contaminação.
3 – Informações da Companhia Nacional de Abastecimento disponíveis aqui.
4 – Leia o artigo da OPAN “Barragens e violações dos direitos indígenas na bacia do Juruena”, no livro “Ocekadi: hidrelétricas, conflitos socioambientais e resistências na bacia do Tapajós.
5 – Organização indigenista fundada em 1969. Tem como objetivo a contribuição para a autonomia social, cultural e política dos povos indígenas.
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