Justiça barra posse de fazendeiros em parte de Terra Indígena do povo Chiquitano (MT)
Decisão reconhece a existência e ancestralidade do povo e determina a continuidade do processo demarcatório
da TI Portal do Encantado. ‘Uma garantia do nosso território para a geração atual e futura’, celebra liderança.
Por Beatriz Drague Ramos/OPAN
Há anos enfrentando ameaças e discriminação, o povo indígena Chiquitano está celebrando nos últimos dias uma vitória na Justiça Federal. O motivo é a decisão do juiz Rodrigo Bahia Accioly Lins, que reconheceu a identidade indígena e a demarcação da Terra Indígena (TI) Portal do Encantado, localizada na região sudoeste de Mato Grosso (MT). Na ação judicial, cuja tramitação começou em 2010, os proprietários da “Fazenda Tarumã I”, Maria Beatriz Theodoro Gomes e Domingos Alves Gomes Junior solicitavam a anulação do processo demarcatório realizado pela Fundação Nacional do Índio (Funai).
A sentença foi proferida no início do mês de junho e deve beneficiar mais de 442 indígenas que habitam naquela Terra Indígena. “Já passamos por muitas ameaças de morte, discriminação. A decisão vai garantir nosso território para a atual e futura geração, preservando a cultura e o meio ambiente”, disse Roselino Paravá Ramos, da aldeia Naltukirs Piciorsch. O cacique José de Arruda Mendes, da aldeia Acorizal também celebrou. “Cada vitória é um passo que damos e fortalece nosso povo, temos esperança que ainda há justiça no nosso país.”
A ação dos proprietários contra a Funai e a União Federal, com coautoria do estado de Mato Grosso, pedia a nulidade da Portaria 1.187 da Funai, de 11 de novembro de 2002, que constituiu um Grupo de Trabalho para estudos de identificação e delimitação, bem como da Portaria 2.219, de 30 de dezembro de 2010, do Ministério da Justiça, que declarou de posse permanente do grupo indígena Chiquitano a Terra Indígena Portal do Encantado, onde estão localizadas as aldeias Naltukirs Piciorsch, Acorizal, Paama Mastakama, Fazendinha e Central, com a extensão aproximada de 43 mil hectares.
A delimitação da TI Portal do Encantado alcançou cerca de 99,3 hectares que foram titulados em nome da fazenda Tarumã I (cerca de 20,4% de sua área total). Ali se encontram o cemitério Tarumã e os vestígios da antiga aldeia Morrinho, além de zonas de pesca e coleta às margens do rio Tarumã.
De acordo com os autores da ação, os indígenas que ali vivem não seriam Chiquitanos, mas sim descendentes de bolivianos que migraram, já que o local faz fronteira com a Bolívia. “São civis nascidos no Brasil descendentes de povos bolivianos emigrados para o Mato Grosso como mão-de-obra, quando já completamente integrados à comunidade civil, em nada se distinguindo de toda a população da região”, argumentaram eles.
Por sua vez, o estado de Mato Grosso alegou no processo que a origem do imóvel rural seriam títulos vendidos pelo próprio estado entre 1940 e 1960, posteriormente revendidos para o casal Gomes.
Por outro lado, a União, na figura da Funai, justificou que a Terra Indígena é de ocupação tradicional, nos termos da Constituição de 1988, fato que foi reconhecido no processo de demarcação realizado pela entidade, de acordo com a Lei 6.001/1973 – Estatuto de Índio – e o Decreto 1.775/1996, que dispõe sobre o procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas.
Laudo antropológico demonstra ocupação tradicional
Diante disso, o magistrado Mauro Cesar Garcia Patini autorizou a realização da perícia antropológica em março de 2016. No laudo pericial, elaborado pelo antropólogo João Dal Poz Neto em 2019, ficou demonstrada a presença de grupos indígenas na região desde, ao menos, as últimas décadas do século XVIII.
Foram encontrados inúmeros vestígios de antigas aldeias, tanto nos limites da TI Portal do Encantado quanto nos arredores, assim como os cemitérios Fortuna, Tarumã, Anjinhos, Acorizal e outros nas imediações, onde estão sepultados os antepassados diretos (pais, tios, avós, bisavós) dos atuais Chiquitanos.
O laudo apontou ainda a localização geográfica de quatro sítios arqueológicos registrados pelo arqueólogo Francisco Pugliese em 2011: as antigas aldeias São Miguel e São Miguelito, os locais de caça e coleta Tucunzeiro I e II e a Furna, na Serra do Baú.
Foram identificados alguns costumes presentes no dia a dia destas comunidades que distinguem a condição indígena dos Chiquitanos, tais como: os sobrenomes que delimitam as fronteiras étnicas e servem de critério de pertencimento a uma parentela, a língua materna ainda falada por alguns anciãos e utilizada em rezas e cantos coletivos, a divisão das tarefas cotidianas, a agricultura, como mutirões e plantios de ervas medicinais. Além disso, foram identificadas bebidas, comidas e artesanatos, como peneiras, cestos, peneiras e apás, considerados pelos Chiquitanos como marcas de sua identidade.
O antropólogo ainda verificou a existência de curandeiros com especialidades distintas, com conhecimentos de plantas, óleos animais e vegetais, massagens, benzimentos, sucção e outras técnicas de cura. Adornos e pinturas corporais foram também observados no decorrer dos trabalhos periciais.
Segundo o perito Dal Poz, a presença histórica dos Chiquitano persiste em ambos os lados da fronteira Brasil – Bolívia, bem como nas zonas urbanas e em dezenas de localidades rurais dos municípios de Cáceres, Porto Esperidião, Pontes e Lacerda e Vila Bela da Santíssima Trindade. A aldeia Acorizal, por exemplo, já estava assentada no mesmo local onde hoje se encontra atualmente desde as primeiras décadas do século XX.
Histórico de expulsões e preconceito
A discriminação e a segregação do povo indígena Chiquitano de seus territórios foram também abordados na perícia antropológica. Segundo o levantamento, por volta de 1940, a implantação de Destacamentos Militares ao longo da fronteira Brasil – Bolívia, vinculados ao 2º Batalhão de Fronteira do Exército, com sede em Cáceres, trouxe a restrições ao uso e à ocupação das terras em que os Chiquitanos viviam. As famílias indígenas foram convertidas então em “permissionárias” do Exército, ou seja, elas passaram a prestar serviços aos militares que ocuparam suas terras e em troca lhes era assegurada a permanência na área.
Alguns dos militares tornaram-se fazendeiros, por compra ou posse de terras onde habitavam famílias Chiquitanos. Neste cenário, os indígenas ficaram submetidos ao trabalho obrigatório na conservação do estabelecimento militar, ao pagamento de taxas e à proibição de construir novas moradias para os filhos casados.
A migração e a ocupação da zona fronteiriça por assentamentos rurais, fazendas e agropecuárias, muitas delas com incentivos fiscais administrados pela Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) ou pela Superintendência de Desenvolvimento do Centro-Oeste (Sudeco), a partir da década de 1970, desalojaram muitas famílias e comunidades inteiras dos Chiquitanos naquela região, salientou também o laudo pericial.
Outro ponto importante foi destacado pela antropóloga Joana Fernandes Silva, que coordenou os trabalhos de identificação da TI Portal do Encantado nos anos 1990, quando ocorreu a construção do gasoduto Brasil-Bolívia. “Reconhecidos e tidos como ‘bugres’ eram amplamente empregados e explorados nos trabalhos nas fazendas, sofrendo violências de vários tipos, como se pode imaginar que ocorre no emprego de mão de obra quase escravizada”, diz a Joana.
Soilo Urupe Chue, representante da Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso (Fepoimt) e indígena Chiquitano da aldeia Vila Nova Barbecho, localizada há cerca de 50 km da TI Portal do Encantado, recordou que o período em que militares chegaram às terras dos Chiquitanos foi de muito sofrimento. “Na tentativa de integrar a gente à sociedade deles, eles fizeram sérios ataques. Rodovias foram abertas e com isso o desmatamento também aumentou.”
Desta forma, os Chiquitanos ficaram confinados às beiras de estrada da região de Cáceres e Porto Esperidião, até a fronteira física com a Bolívia, afirma a antropóloga Joana, lembrando também do contexto do início dos estudos de identificação da Terra Indígena. “Assim que se descobriu, na região, que a Funai pretendia demarcar essas terras, se criou todo um discurso de que eles eram estrangeiros, bolivianos e que não eram indígenas. Localizamos cemitérios indígenas pisoteados pelo gado, de onde se depreende que eles foram expulsos desses locais.”
A polêmica sobre a identidade dos Chiquitanos ganhou grandes proporções. Segundo ela, houve toda uma orquestração de fazendeiros e políticos de Mato Grosso para criar uma narrativa recusando a nacionalidade dos Chiquitanos e a indianidade deles, aponta. “Aí temos um conflito étnico que envolve poder do agronegócio e da política institucional do estado e disputa por terras.”
A etnicidade dos Chiquitanos foi largamente examinada por antropólogos, linguistas e geógrafos, além de ser reconhecida oficialmente pela Funai, declara Joana. “O fato de alguma família eventualmente ser paga para afirmar que não são Chiquitanos e que não se reconhecem como tal, não implica dizer que os indígenas Chiquitanos não existem.”
O procurador federal Cezar Augusto Lima do Nascimento atuou no caso na defesa do povo Chiquitano por meio da Advocacia-Geral da União (AGU). Segundo ele, a decisão confirmou integralmente os atos administrativos realizados pela Funai.
Cezar explica que a decisão passa a valer após 15 dias de sua publicação, apesar de os autores ainda poderem recorrer. “O recurso pode suspender os efeitos da sentença. Cabe ao TRF-1 (Tribunal Regional Federal da Primeira Região) não conceder o efeito de suspender. Nesse caso, a Funai poderá executar a sentença provisoriamente, desenhando e demarcando o território.”
Na sentença, o juiz afirma que as terras, para os povos indígenas, representam muito mais do que um bem material. “Correspondem à própria identidade das comunidades, viabilizando as manifestações culturais e tradicionais, reproduzindo os costumes e legando-os para os seus descendentes.”
Apesar de tal reconhecimento, Soilo Urupe destaca que outras comunidades do povo Chiquitano ainda lutam pela garantia de seus territórios. “Tem a TI e a aldeia Vila Nova Barbecho, a TI de Aparecida e outras aldeias na região de Vila Bela, Aeroporto, Bocaina, Santa Mônica, Casalvasco, Nova Fortuna, todas essas são aldeias que de alguma forma foram desfeitas pelos colonizadores e que agora estão fazendo a reivindicação e encontram resistência para poder se manter na luta por causa das ameaças constantes”, conclui.