Um território em transformação
Calendários sazonais e etnomapas construídos pelos Xavante fortalece processo de gestão territorial.
Por: Andreia Fanzeres/OPAN
São Félix do Araguaia, MT – Concluído o conturbado processo de retirada de ocupantes da Terra Indígena Marãiwatsédé, os Xavante vêm desenvolvendo, nos últimos meses, diversos trabalhos de mapeamento e reconhecimento territorial, com apoio da OPAN. A intenção é identificar e registrar os diferentes olhares indígenas sobre seu próprio território para o uso atualmente, considerando os desafios da adaptação do modo de vida Xavante a uma área drasticamente modificada por duas décadas de desmatamento ilegal.
Todo esse processo de planejamento da gestão ambiental na terra indígena, com registros e levantamentos sobre história, cultura, saúde, jeito de viver, socioeconomia, vegetação e, ainda, acesso e manejo em locais estratégicos do território, servirá de base para a elaboração do Plano de Gestão Territorial da Terra Indígena Marãiwatsédé, com apoio da Fundação Nacional do Índio (Funai).
“Com o desmatamento e todo dinamismo cultural passado por essa comunidade, algumas atividades sazonais tradicionais já não são feitas da mesma forma. Assim, realizamos uma atividade de pesquisa-ação participativa com diferentes grupos da comunidade”, explica a indigenista e consultora da OPAN, Sayonara Silva, que facilitou o trabalho de elaboração de calendários sazonais em Marãiwatsédé, que aconteceu em diferentes etapas entre maio e julho de 2014.
Considerados subprodutos do futuro plano de gestão territorial, os calendários sazonais foram construídos pelos indígenas com informações sobre sua vida, focando nas principais atividades anuais da comunidade e respeitando grupos de idade, gênero, clãs e língua materna. “Adentramos uma parte do universo Xavante com relação às referências do tempo a partir das estrelas, os períodos sazonais anuais, os recursos disponíveis em cada período e alguns usos, finalidades, restrições de consumo de plantas e animais com a posterior elaboração dos calendários”, informou Sayonara.
Atualmente, nas roças indígenas encontram-se principalmente milho Nodzö xavante (com até sete variedades), milho Waru (híbrido), milho Waru ware(pipoca), além de feijão-xavante, abóbora, mandioca, arroz, melancia, amendoim e cará. Nos terrenos de plantio são cultivadas frutíferas consorciadas com espécies de adubação verde e arbóreas. Os alimentos advindos dos quintais contam com laranja, caju, jatobá, pequi, mamão, cana-de-açúcar, banana, abacaxi, batata-doce e outros. As práticas da caça, coleta e a pesca sofreram com anos de desmatamento e redução de hábitat, mas estão sendo, aos poucos, retomadas na medida em que os Xavante percebem os primeiros sinais de recuperação do território com a saída dos invasores. “A caça e a coleta eram formas primárias de subsistência e agora, com uma nova adaptação, os Xavante passam a dedicar mais tempo a suas roças e quintais. Em vez de grandes coletas com acampamentos temporários, ocorrem os abahi (coletas de um dia).”
Durante a primeira etapa da elaboração dos calendários sazonais, foram feitos desenhos sobre o meio ambiente (Ró) e a sua relação com os Xavante, com reflexões sobre o uso do território, suas atividades e impactos que vêm ocorrendo no entorno. A inserção dos anciãos no tempo por meio do trabalho de identificação de constelações resultou na definição de quatro períodos sazonais no ano Xavante, que, para os indígenas, começa no mês de maio.
Etnomapeamento
Complementarmente aos trabalhos de identificação e registro dos recursos naturais e costumes Xavante, com apoio da OPAN os indígenas vêm percorrendo seu território, recém desintrusado, para mapear áreas estratégicas para coleta, pesca, caça, locais sagrados, entre outros. Por isso, entre maio e julho de 2013, ocorreram também em Marãiwatsédé mais duas etapas dos trabalhos de etnomapeamento da terra indígena. A ideia é ter elementos para o processo de gestão territorial Xavante, considerando não só questões políticas do planejamento do território, mas também a dimensão ambiental das ações de etnodesenvolvimento, soberania alimentar, valorização da cultura, proteção e recuperação de seu território e conservação dos recursos naturais.
Hoje, as matas e campos de Cerrado, utilizados para a caça e a coleta, encontram-se extremamente reduzidos, em fragmentos esparsos na terra indígena. A degradação da área proporciona uma baixa produtividade das roças, comprometendo ainda mais a soberania alimentar deste povo. Tudo isso leva ao processo de reterritorialização, ou seja, o retorno e adaptação a uma nova maneira de viver, com a identificação do estado atual de locais importantes, ainda muito vivos na memória dos mais velhos, mas que os jovens ainda não tiveram a oportunidade de conhecer.
Neste caminho, além de reuniões, entrevistas, desenhos de mapas mentais, visitas guiadas aos roçados e expedições de coleta, os indígenas foram apresentados ao universo da cartografia ocidental, apropriando-se de mapas e imagens de satélite. De acordo com o indigenista e consultor da OPAN, Marcelino Soyinka, o trabalho buscou um equilíbrio entre a socialização de informações sobre o território e a apropriação da linguagem de mapas baseados em Sistemas de informação Geográfica (SIG).
“Em um cenário em que diversas questões são elencadas na linguagem dos mapas, é importante instrumentalizar os indígenas no uso e interpretação das ferramentas para que possam expressar-se por elas caso desejem, e também para que possam dialogar com quaisquer elementos externos que venham a ser apresentados neste formato”, disse Soyinka.
Ao refletirem sobre o significado do território de Marãiwatsédé, os Xavante demonstraram não só o vínculo utilitário, mas afetivo e espiritual, fundamentais para a compreensão da profunda ligação que têm com o local. Na fala dos mais velhos, Marãiwatsédé é “onde o espírito nunca se deixou vencer”, “o lugar do criador”, “nosso lar”, “mata que protege dos inimigos”.
Dzo’omori
Ao trabalharem sobre a representação gráfica do território, os Xavante revelaram grande interesse para percorrer o território, intensamente modificado pela ocupação ilegal, fragilizado por limitações para reocupação do espaço degradado e presença de estradas que ainda favorecem o trânsito de não indígenas, em clima ainda hostil. Deste modo, em julho, a OPAN apoiou a realização do Dzo’omori, uma expedição de coleta tradicionalmente realizada por mulheres, mas que desta vez contou também com crianças, anciãos e homens adultos.
Esta e outras expedições realizadas espontaneamente pelos indígenas têm permitido que, cada vez mais, eles estejam fortalecendo a vigilância territorial e o monitoramento dos recursos que lhes são tão caros nutricional e culturalmente. Segundo o ancião Dario, durante o dzo’omori, os Xavante ficavam muito mais tempo coletando recursos, semanas, às vezes meses, só voltando à aldeia com bastante caça, peixes, frutos e fibras. Para Soyinka, sem os invasores, a fauna está dando sinais de recuperação e os indígenas já conseguem caçar bem mais, tendo possibilidade de retomarem as antigas expedições.
Até o fim do ano, as próximas etapas dos trabalhos de etnomapeamento da Terra Indígena Marãiwatsédé fomentarão a realização de expedições ao território com maior duração e, a partir das informações já produzidas durante as etapas anteriores, serão apresentados mapas temáticos. “A intenção é realizar reflexões sobre eles e os assuntos de maior interesse para fins de mapeamento para que possam iniciar o processo de uso desses materiais nas discussões internas e externas, para apoio à tomada de suas decisões acerca do território”, explicou Soyinka.
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