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Brasil amplia contribuições à Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas

Participação de comunidades locais na Convenção do Clima esquenta discussão em Bonn na rota para a COP29, quando deverá haver decisão sobre o tema. Formad se manifesta.

Por Andreia Fanzeres/OPAN

Participantes da 11ª reunião do Grupo de Trabalho Facilitador da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas (LCIPP).

Bonn, Alemanha – Entre os dias 29 de maio e 1º de junho de 2024, ocorreu em Bonn, na Alemanha, a 11ª Reunião do Grupo de Trabalho Facilitador (FWG) da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas (LCIPP) da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC). Em meio aos pontos mais previsíveis da pauta, os participantes deixaram a reunião com a sensação de que a temperatura está subindo quando o assunto se volta para as comunidades locais. De acordo com decisões da COP24 (Katowice) e COP26 (Glasgow), definiu-se que três cadeiras deveriam ser preenchidas por comunidades locais até a COP29, que acontecerá em Baku, no Azerbaijão. Mas, até agora, a questão é tratada como tabu.

Apesar de constarem no nome deste espaço oficial da Convenção, estabelecido no Acordo de Paris, a participação das comunidades locais é um ponto de tensão sem resolução porque elas ainda não conseguem se inserir nos trabalhos. Até a reunião da semana passada, Gustavo Sanchez, presidente da Aliança Mesoamericana de Povos e Florestas (AMPB), era uma voz solitária ao solicitar que este tema fosse ao menos debatido, em vão. Desta vez, com o apoio de outras intervenções, sobretudo do Brasil, Sanchez pediu a palavra no primeiro dia de reunião requerendo que fosse inserido na pauta um ponto sobre o mecanismo de indicação dos representantes de comunidades locais na Plataforma, apresentando uma carta assinada por 20 organizações representativas de comunidades locais e mais de 50 entidades da sociedade civil do Brasil, México, Guatemala, Honduras, Nicarágua, Costa Rica, Panamá, Colômbia e Alemanha, que endossaram o pedido. “Acreditamos que a inclusão das comunidades locais no Grupo de Trabalho Facilitador não deve mais ser adiada, pois acarreta uma situação de vulnerabilidade e sem garantia de direitos. Estas comunidades deveriam ter voz, pois são cruciais para enfrentar a crise climática e alcançar as metas do Acordo de Paris e criar um mundo resiliente ao clima, conforme destacado na conferência da ONU sobre mudanças climáticas”, afirma o documento, que foi protocolado.

Gustavo Sanchez solicitando a inclusão do tema na pauta.

A reação dos membros ao pedido de inclusão deste tema na pauta impressionou alguns participantes, uma vez que o ponto não apenas seguiu sendo ignorado, como os microfones foram violentamente retirados da plenária para evitar novas intervenções.

A atual co-presidente indígena do FWG justificou, no dia seguinte, que o tema sobre a participação de comunidades locais está fora do mandato dos membros da Plataforma. “Não queremos ser desrespeitosos, mas não é responsabilidade do FWG determinar a composição da plataforma. Este é um ponto de negociação entre as Partes, e isso se dá sem a participação dos povos indígenas nem das comunidades locais”, acrescentou Graeme Reed, representante indígena da América do Norte, no final da reunião.

Depoimento de Herman Oliveira em defesa das comunidades locais.

Conforme explicou à plenária da 11ª reunião do FWG Herman Oliveira, secretário-executivo do Fórum Popular Socioambiental de Mato Grosso (Formad), as comunidades tradicionais são reconhecidas juridicamente pelo governo brasileiro a partir de uma política nacional graças a uma história de muita luta e graças a um processo participativo na elaboração de políticas públicas que salvaguardam seu modo de vida, sua cultura e seus territórios, e que são um exemplo para o mundo. “Parece-me que faltou empatia por parte dos membros da plataforma. Despeço-me com a esperança de que um espaço como este na UNFCCC esteja aberto à discussão deste tema e considere experiências e situações que trazemos do Brasil e que, pelo visto, são desconhecidas por este grupo”, disse.


Para Luene Karipuna, comunicadora da Associação de Mulheres Indígenas de Mutirão (AMIM) e da Coordenação de Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), as comunidades estão fazendo falta na Plataforma. “No Brasil, temos essa clareza de quem que são as comunidades tradicionais e quem são os povos indígenas, mas aqui na Plataforma ainda falta isso. Pelo que eu percebi, isso é uma questão que causa muito ruído de informação porque os países não entendem a forma como nós entendemos no Brasil”, reitera.

Sem reconhecimento formal

Conforme historiciza o Grupo de Trabalho Internacional sobre Assuntos Indígenas (IWGIA), a Plataforma é fruto de um processo de construção e incidência protagonizado pelos povos indígenas e a inserção do termo comunidades locais foi algo imposto pelas Partes, em 2015, sem que houvesse clareza sobre a definição deste termo ou sobre quem exatamente pleiteava esse espaço. Desde o início, o FWG funcionou de forma paritária, com sete cadeiras para os representantes indígenas de cada uma das sete regiões socioculturais, e sete de governos. Mas, o preenchimento de pelo menos três cadeiras por comunidades locais até a COP29 perturbaria esse equilíbrio, inédito em uma instância da UNFCCC.

Organizações representativas dos povos indígenas da região do Ártico, América do Norte e Austrália manifestaram por escrito à Plataforma a preocupação com a perda de paridade entre membros indígenas e de governos na LCIPP, na hipótese da inclusão de comunidades locais, uma vez que, neste caso, deverão ser indicados igual número de novos países na composição. As organizações do Ártico, inclusive, apontaram que o tema só devesse ser novamente discutido quando as comunidades locais formarem uma Constituency. O termo se refere às subcategorias dentro do grupo de organizações não governamentais observadoras reconhecidas pela Convenção do Clima e que facilitam a troca de informação e contato entre o secretariado da UNFCCC e as organizações da sociedade civil com distintos interesses. Atualmente, há nove desses subgrupos: Organizações de Negócios e Indústria (Bingo), Organizações Ambientais (ENGO), Governos Locais e Autoridades Municipais (LGMA), Organizações de Povos Indígenas (IPO), Organizações Independentes e de Pesquisa (Ringo), Sindicatos (Tungo), Mulheres e Gênero (WGC) e Juventude (Youngo). Segundo a UNFCCC, analisa-se um pedido de reconhecimento de uma Constituency para fazendeiros, que opera em caráter temporário. Comunidades locais não constam nesses grupos.

Por meio de solicitações a diversos órgãos das Nações Unidas, o Fórum Internacional de Povos Indígena sobre Mudanças Climáticas (IIPFC) argumenta que o uso do termo comunidades locais junto de povos indígenas sugere que outros grupos queiram se misturar em uma equivalência de direitos, o que é visto como uma ameaça. Segundo a entidade, uso do termo “comunidades locais” perpetua violações de direitos humanos dos povos indígenas e recomenda, entre outros aspectos, a abolição do uso combinado “de expressões não pertinentes à natureza específica dos povos indígenas”, como minorias ou comunidades locais. Este posicionamento foi endossado pelo Fórum Permanente das Nações Unidas sobre Assuntos Indígenas, pelo Mecanismo de Especialistas sobre os Direitos dos Povos Indígenas da ONU e pelo Relator Especial das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, em declaração conjunta publicada em fevereiro deste ano.

Relatório sobre a revisão do FWG

Durante a Conferência do Órgão Subsidiário de Assessoramento Técnico e Científico (SBSTA) da UNFCCC, de 3 a 13 de junho, o Grupo de Trabalho Facilitador da Plataforma encaminhará seu informe com alcances do processo de implementação desta instância, dificuldades, desafios e recomendações, junto com o novo plano de trabalho da LCIPP para o período de 2025 a 2027. Depois de ser discutido e recebido pelo SBSTA, será assunto para deliberação das Partes, na COP29, em Baku.

O documento cita como resultados os esforços do FWG em promover o intercâmbio ético e equitativo de conhecimentos sobre soluções climáticas holísticas entre os povos indígenas, comunidades locais, as partes e outros colaboradores; o fomento à capacidade entre povos indígenas, comunidades locais e Partes para alcançar participação significativa no processo da Convenção, integração de suas diversas perspectivas, sistemas de conhecimento, valores e cosmovisões na formulação e implementação de políticas climáticas. Assinala também várias dificuldades que impedem a participação plena e efetiva dos povos indígenas e das comunidades locais no processo da Convenção, como a necessidade de incorporar enfoque holístico das soluções climáticas, superação de barreiras linguísticas, dificuldades operacionais relacionadas à transição de seus membros, entre outros. A maneira como o documento é escrito, mantendo na redação a menção às comunidades locais, chama atenção para esta flagrante contradição, uma vez que nenhuma dessas ações contou com o efetivo envolvimento dessas comunidades na implementação das ações da plataforma até agora.

Mas, com tom de neutralidade, o informe ao SBSTA relata que “a participação das comunidades locais no trabalho realizado na LCIPP segue sendo limitada. O FWG tem enfrentado dificuldades para cumprir seu mandato de seguir avançando na operacionalização da LCIPP e facilitar a implementação de suas funções. A ausência de uma definição universalmente aceita de “comunidades locais” tem tornado a sua participação desafiadora em diversas atividades da plataforma. Além disso, a representação de comunidades locais na LCIPP vai ser considerada na revisão do FWG”. E, para enfrentar essa situação, sugere que “sejam explorados caminhos para apoiar o envolvimento de comunidades locais no trabalho da plataforma. Isso poderia incluir atividades específicas destinadas a aumentar o envolvimento das comunidades locais no processo da UNFCCC no âmbito dos planos de trabalho dos órgãos constituídos e fluxos de trabalho relevantes, com base nas atividades da LCIPP”. O documento cita a realização de um workshop em Bonn, em 2019, e recomenda esforços futuros para ampliar o envolvimento das comunidades locais com base nos encaminhamentos deste encontro.

Contribuições da delegação brasileira

Os 14 membros do FWG definiram 12 pontos de encaminhamento de forma consensual na 11ª reunião do FWG. Entre eles, registraram que houve troca de seus co-presidentes, assumindo como co-presidente indígena da Plataforma a Sra. Cathryn Eatock, da Austrália, representando a Região Sociocultural do Pacífico, e o Sr. Walter Gutierrez, representando o Grupo Regional de Países da América Latina e Caribe (Grulac). Seu mandato encerra-se na 13ª reunião do FWG, ano que vem, em Bonn. Também foi decidido que a 12ª reunião do FWG acontecerá em Baku, no Azerbaijão, de 5 a 8 de novembro de 2024.

O documento final da reunião destaca que devam ser incorporados os entendimentos oriundos das discussões dos pequenos grupos de trabalho em esforços para completar a implementação do plano 2022-2024, e também disponibilizando o resumo dessas contribuições. Este é um passo importante para o Brasil, que vem conseguindo contribuir oralmente e por escrito neste espaço, garantindo maior visibilidade às suas contribuições técnicas graças à adoção da metodologia de trabalho em pequenos grupos.

Discussões nos pequenos grupos. Foto: Sergio Corella.

Representando a delegação do Brasil nos informes dos grupos de trabalho, Sineia Bezerra do Vale, do Conselho Indígena de Roraima (CIR) e coordenadora nacional do Comitê Indígena de Mudança Climática (CIMC) enfatizou que devem ser implementados mecanismos e processos mais transparentes para assegurar a participação de povos indígenas e comunidades locais nas atividades previstas pela própria Plataforma, como encontros de detentores de conhecimento e jovens, sem que a fluência na língua inglesa seja um limitante. Além disso, sugeriu que deva ser promovido um encontro para detentores de conhecimentos específico para comunidades locais, pela importância de avançar nesse tema, considerando exemplos e referências jurídicas adotadas no Brasil.

Sineia do Vale. Fotos: Luene Karipuna/AMIM/Coiab

Maurício Yekuana, da Hutukara Associação Yanomami (HAY) reiterou que o caminho da resiliência climática passa pela conclusão de todos os processos demarcação de terras indígenas e reconhecimento dos territórios de comunidades tradicionais. E, ainda, pela implementação de instrumentos de gestão territoriais. “Ressaltamos a importância do reconhecimento da dimensão cultural, simbólica e espiritual das mudanças climáticas sobre os territórios e o bem-viver dos povos indígenas e das comunidades tradicionais. Impactos a esses sistemas de conhecimento resultam em redução da resiliência desses povos. Para que sejam culturalmente adaptadas e efetivas, as metodologias precisam respeitar o tempo desses povos no contexto da construção de políticas e ações climáticas”, afirmou.

Entre outros pontos, o documento de posicionamento da delegação brasileira cita como inovação de políticas climáticas no Brasil a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental Quilombola (PGNTAQ), instituída em novembro do ano passado e que traz, entre seus objetivos da integridade territorial dos territórios quilombolas “realizar ações de informação e sensibilização sobre impactos da emergência climática, justiça climática e racismo ambiental nos territórios quilombolas e em seu entorno e promover a criação de sistemas participativos de diagnóstico e monitoramento dos impactos da emergência climática, com vistas à elaboração de estratégias preventivas e ações de mitigação e adaptação nos territórios quilombolas”.

Ele também reitera, para a LCIPP, que são materiais de referência os Protocolos de consulta de Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais do Brasil, os Planos de Gestão de Terras Indígenas, os Planos de Vida e os Planos Indígenas de Adaptação às Mudanças Climáticas.

A delegação do Brasil sugeriu, ainda, como temas para oficinas anuais de treinamento no âmbito da LCIPP a inclusão do racismo ambiental nas discussões sobre transição justa; a potencialização do tema das demarcações de terras indígenas nas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDC); e salvaguardas de povos indígenas e o mercado de carbono. Também recomendou que sessões com múltiplas partes interessadas, realizadas pela Plataforma, adotem metodologias inspiradas no Diálogo de Talanoa, para serem mais efetivas. E que os temas de perdas e danos (incluindo aspectos espirituais) e acesso direto a financiamento climático pela juventude indígena sejam priorizados nas discussões desta instância.

Na visão de Luene Karipuna, a plataforma é um espaço que ainda precisa ser dominado pelos povos indígenas e comunidades tradicionais. “Existe grande dificuldade de acessarmos esse espaço pela linguagem, e pelo fato de a dinâmica de atividades ser muito corrida e cansativa. Porém, é o método mais importante que temos pra fazer recomendações para a COP”. A Plataforma tem me ajudado muito não só para aprender sobre as discussões nesse espaço, mas me ensinando como a gente incide em políticas públicas Brasil sobre salvaguardas e mudanças climáticas no meu estado, o Amapá. Desde o ano passado tenho acompanhado as formações da Rede de Cooperação Amazônica (RCA), as preparações para Dubai (COP28) e agora aqui para Bonn”, comenta Luene. “As pessoas acham que a COP é onde acontece tudo, mas a gente percebeu que onde acontece tudo é na Plataforma, nas conferências SB [dos órgãos subsidiários da Convenção do Clima], no Caucus Indígena, que é onde tudo é construído”, avalia.

A delegação do Brasil na 11ª reunião do FWG/LCIPP foi formada por Dinaman Tuxá e Lais Brasileiro, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Sineia Bezerra do Vale (CIR/CIMC), Luene Karipuna, representando a Associação das Mulheres Indígenas em Mutirão (AMIM) e a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Maurício Yekuana, da Associação Hutukara, Patrícia Zuppi, da Rede de Cooperação Amazônia (RCA), Andreia Fanzeres, da Operação Amazônia Nativa ( OPAN), Herman Oliveira, do Formad, Maíra Fainguerlent, do Instituto Clima e Sociedade (iCS), Isaka Huni Kuin, Taily Terena, Francisco de Felippo e Suliete Baré, pelo Ministério dos Povos Indígenas ( MPI).