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O acordo sem voz: lideranças exigem finalização da Câmara de Conciliação do Marco Temporal

O ministro Gilmar Mendes, em vez de suspender a Lei 14.701/23, instaurou a Câmara de Conciliação do Marco Temporal. As audiências começaram em agosto de 2024, mas o que se viu durante o processo foi uma preocupação maior com os interesses dos ocupantes ilegais de terras indígenas em detrimento dos povos originários.

Imagina você ser arrancado do seu lar, um lugar que sempre foi seu e dos seus ancestrais. Os anos passam e quando diminuem os riscos e existe a esperança de um retorno, uma barreira surge: uma data que limita a volta. Sim! Quem não estava no local em 1988 não pode voltar. 

Indígenas pedem o fim da tese do marco temporal. (Foto: APIB)

É o que tem acontecido com os povos indígenas do Brasil, com a tese do marco temporal, que impede o caminho de volta aos territórios, impondo um prazo – a data de 5 de outubro de 1988, promulgação da Constituição Federal – para a realização do processo de demarcação.

Algo tão absurdo não poderia seguir adiante e foi considerado inconstitucional em setembro de 2023 pelo Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento do Recurso Extraordinário 1017365, de repercussão geral. Mas, sem representatividade em votos no Congresso Nacional, os povos indígenas foram alvo de um novo golpe. No mês seguinte, o Congresso Nacional aprovou a Lei 14.701/23 que, entre outros retrocessos, só admite a demarcação de terras indígenas em que se comprove a ocupação  ou  a disputa pela área na data de 5 de outubro de 1988.

Desde então, foram apresentadas cinco ações no STF: quatro questionando a validade da nova lei (ADI 7582, ADI 7583, ADI 7586 e ADO 86) e uma que pede à Suprema Corte para declarar a sua constitucionalidade (ADC 87). 

O ministro Gilmar Mendes é relator das ações e, em vez de suspender a lei para evitar os danos decorrentes de sua vigência, instaurou uma Câmara de Conciliação do Marco Temporal. As audiências começaram em agosto de 2024, com a participação de representantes da União, do Congresso Nacional, dos governos estaduais e municipais, da sociedade civil e da população indígena.

Segundo o ministro, o objetivo era buscar uma solução consensual. Mas o que se viu durante o processo foi uma preocupação maior com os interesses dos ocupantes ilegais de terras indígenas em detrimento dos povos originários, que desde o começo pediram o fim da mesa da conciliação. Além disso, o processo se mostrou pouco transparente: as informações sobre as reuniões e as definições eram escassas e apresentadas em linguagem jurídica, limitadas a textos curtos e técnicos em cada encontro.

Ata da última reunião da mesa de conciliação. Foto: print da ATA do STF

Enquanto isso, o discurso do ministro tem sido o de que todos os argumentos dos membros seriam considerados no material a ser revisado pela comissão. Inclusive propostas em que não se tenha chegado a um consenso e eventuais posições divergentes sobre temas discutidos nas audiências.

A APIB percebeu as verdadeiras intenções da Câmara de Conciliação desde o primeiro dia. “Esta câmara está sendo constituída para retirar direitos indígenas. Por essa razão, a gente decidiu deixar esse espaço. A gente não considera legítimo”, reforçou o advogado Maurício Terena.

A saída da APIB aconteceu em agosto de 2024. Na época, representantes da instituição leram uma carta e apontaram a incoerência de um espaço destinado a negociar direitos fundamentais dos povos indígenas, entre os quais o direito à demarcação de terras, já resguardado pela decisão do pleno (por nove a dois votos) da Suprema Corte, que decidiu pela inconstitucionalidade da tese do marco temporal.

Três prorrogações 

A Câmara de Conciliação já havia sido prorrogada duas vezes e no dia 2 de abril deste ano aconteceria a sua última audiência. Porém, a reunião terminou sem um consenso entre os membros e o ministro Gilmar Mendes anunciou no dia 25 de abril a terceira prorrogação. Agora, o prazo final para se chegar a uma ‘conciliação’ é a data de 25 de junho de 2025.

A decisão de estender as discussões atendeu ao pedido do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, que solicitaram um prazo adicional para a conclusão da análise do anteprojeto de lei complementar. 

“Diante desse cenário, considerando os pedidos de ambas as Casas do Poder Legislativo da União, aliada à corroboração do próprio Poder Executivo federal, exige-se a prorrogação dos trabalhos da Comissão Especial, de modo a viabilizar o aprofundamento dos debates em torno do Anteprojeto apresentado nos autos”, afirmou o ministro.

A última reunião aconteceu no dia 19 de maio. Os trechos discutidos na audiência trataram de propostas sobre atividades econômicas em terras indígenas, indenização por restrição ao usufruto dessas terras, autossustentabilidade dos povos originários e garantias e proteções judiciais, além da sugestão de um protocolo humanizado para reintegração ou manutenção de posse.

No próximo encontro, os participantes devem concluir a análise do anteprojeto de lei sobre o Marco Temporal, com o debate retomando a partir do último capítulo, que trata das disposições finais. Durante a audiência, foi informado que o ministro Gilmar Mendes ainda definirá as datas dos próximos encontros. 

Finalizada a fase de audiências, todos os direcionamentos colhidos serão submetidos à apreciação dos 11 ministros do Supremo, que poderão considerá-los no julgamento do mérito das cinco ações em curso. Adicionalmente, os pleitos apresentados nos autos do processo relativos ao mérito serão avaliados pelo relator.

Povos indígenas pedem o fim do marco temporal

Durante a mesa “O Acordo Sem Voz: A Câmara de Conciliação no STF e a Reconfiguração da Política Indigenista no Brasil” no Acampamento Terra Livre, em Brasília, em abril deste ano, o advogado Maurício Terena, que na época atuava na Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), reforçou a reivindicação dos povos indígenas pelo fim da tese do marco temporal.

“Entendemos que essa câmara de conciliação precisa ser finalizada e o Supremo deve cumprir seu papel de declarar a inconstitucionalidade do marco temporal. Essa câmara está em curso para liberar atividades econômicas e flexibilizar a consulta livre, prévia e informada. A nossa única força reside no que acontece agora, neste acampamento. A potência dos nossos cantos e da nossa mobilização é o que irá deter o marco temporal”. 

A advogada em direitos humanos e professora da Fundação Getulio Vargas (FGV), Eloisa Machado, também participou da mesa e avaliou a conciliação em quatro palavras: inconstitucional, injusta, ilegítima e imoral. 

“Inconstitucional porque ela inventa uma forma de proteger direitos indígenas. Como é que ela quer fazer essa proteção? Entregando para o outro lado a definição das regras de como essa disputa vai ser feita. Não há nenhuma possibilidade da gente reconhecer essa mesa de conciliação como algo que está dentro da regularidade das regras. Ela é inconstitucional, a própria mesa”.

Já a injustiça se manifesta na ameaça implícita aos povos indígenas. “Se eles não sentarem na mesa de conciliação, a constituição vai ser alterada. Uma emenda constitucional vai ser aprovada. E todos os direitos reconhecidos vão desaparecer. Ninguém concilia sob ameaça. Ninguém tem autonomia e liberdade de decidir algo, se está sendo ameaçado. E é isso que está acontecendo nesta mesa de conciliação”.

Ela aponta ainda a injustiça na definição unilateral do juiz, dos participantes e das regras do jogo, incluindo o resultado predeterminado, sem que os povos indígenas tenham voz para questionar qualquer aspecto. “Tudo isso já está definido, por uma pessoa só. E o movimento indígena e os povos indígenas não têm voz sequer para questionar as regras, o juiz e muito menos para interferir no resultado desse jogo”. 

Além disso, a advogada considera ilegítima pois as discussões sobre os artigos constitucionais para os direitos e o futuro das demarcações prosseguem na mesa de conciliação sem a participação dos povos indígenas, que se retiraram na negociação. Ela lembra que tanto a legislação brasileira quanto o direito internacional vedam decisões sobre direitos indígenas sem o consentimento dos povos envolvidos. Por fim, qualifica a mesa como imoral, denunciando a ocultação de intenções por meio da “armadilha” da negociação.

“Não pode existir nenhuma decisão sobre direitos indígenas sem a concordância dos povos indígenas. Já não podia antes e muito menos agora. Mas é assim que está acontecendo no Supremo Tribunal Federal. Ela também é imoral porque nessa mesa de conciliação as pessoas estão escondendo as suas reais intenções, através dessa armadilha de sentar em uma mesa e negociar”. 

A advogada, Juliana de Paula Batista, especialista em direito socioambiental e que acompanha as discussões no STF, também afirma que a bancada ruralista e seus representantes na mesa de conciliação só aceitarão negociar se o pressuposto for a drástica redução dos direitos indígenas.

“Estão há anos investindo recursos e agenda nessa empreitada. Ao que parece, é mais fácil agredir direitos indígenas do que investir esses recursos para resolver os problemas do setor. Encontraram no ministro Gilmar Mendes um aliado histórico para teatralizar a destruição com verniz de imparcialidade. É provável que nada de bom saia dali. Restará ao Plenário do STF coragem para colocar um freio de arrumação no que está acontecendo”, disse.

A presidente da Federação dos Povos Indígenas de Mato Grosso (Fepoimt), Eliane Xunakalo, expressou profunda preocupação com o impacto do marco temporal nos povos indígenas do estado. “Aqui em Mato Grosso, temos povos que há muito tempo lutam pelo reconhecimento de seus territórios, que são a dignidade humana para nós”, afirmou.

Eliane ressalta que “sem o território, não temos dignidade, pois ele nos dá vida, alimento, cultura. É onde existimos, onde estão nossas cosmologias, ancestrais e o sagrado. O marco temporal é prejudicial porque é uma forma de genocídio.” Ela citou comunidades como Baía dos Guató, Kapoto Kenori, Manoki e Myky, que aguardam esse reconhecimento essencial. 

Sem marco temporal? 

Ao longo das audiências foram retiradas das propostas de texto a definição de uma data para o marco temporal das demarcações e a autorização para mineração em terras indígenas já demarcadas.

O ministro afirmou que a inconstitucionalidade do marco temporal, que determina que só podem ser demarcadas as terras ocupadas por povos indígenas na promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988, já foi pacificada pelo Supremo e não seria discutida.

Contudo, com a Lei 14.701 ainda em vigor e a persistência da Mesa de Conciliação no STF, numerosos processos de demarcação permanecem paralisados. Processos que já sofrem historicamente com a lentidão estatal na concretização dos direitos indígenas, embora estejam assegurados pela Constituição Federal.

Em reunião com membros do Conselho Indígena de Roraima (CIR) nesta segunda-feira (26), a Funai reafirmou sua posição contrária à Lei 14.701/2023. A legislação é vista pelo órgão como um obstáculo à política indigenista e um grave prejuízo aos direitos dos povos indígenas.

A presidente da Funai, Joenia Wapichana, e o procurador-chefe da Procuradoria Federal Especializada (PFE) junto à Funai, Matheus Oliveira, garantiram ao CIR que a instituição permanece na mesa de conciliação do STF para defender os direitos dos povos indígenas. “O nosso posicionamento é de defender os direitos dos povos indígenas sem retrocesso”, reforçou Joenia.