OPAN

UM RITO DE PASSAGEM PARA O POVO MANOKI

Após 14 anos sem realizar a cerimônia, o povo Manoki se reuniu na aldeia Cravari (a 100 quilômetros da cidade de Brasnorte, MT) para celebrar o ‘batizado’, um ritual solene de introdução dos jovens à vida adulta.

Para alguns o nome é “ritual” ou “rito de passagem”, mas para aqueles que participam do evento o nome é bem mais “familiar”: os índios o chamam de “batizado”. Influência cristã? Seguramente; mas o termo foi incorporado, deglutido e ressignificado da melhor maneira Manoki.

À primeira vista, um observador mal informado poderia dizer que os índios Manoki são “aculturados”, pois, como “bons cristãos” que são, vão à missa ou cultos religiosos todos os domingos. Para os de fora que chegam à aldeia salta ao olhar as motos, os aparelhos de MP3, o bailão de música sertaneja, as roupas da moda, as casas de tijolos e eternit. Porém, à sua própria maneira, conjugam na lógica nativa os modos de vida ocidental e indígena, dentro de suas complexas e híbridas estruturas culturais, forjadas no último século de contato. Sobreviventes da marcha civilizatória levada a cabo pela sociedade envolvente, o povo Manoki vem aumentando substancialmente sua população e revivendo elementos culturais e identitários de sua tradição indígena, reprimida sistematicamente nas mais de duas décadas de missão jesuíta.

Após 14 anos sem realizar a cerimônia, que marca a passagem para a vida adulta dos meninos Manoki, os indígenas enfrentaram o desafio de reunir todo o povo na aldeia Cravari, a 100 quilômetros do município de Brasnorte (MT), para a realização do batizado. O ritual consiste em uma introdução à vida adulta por meio do conhecimento dos meninos da casa dos homens, cuja visita ou aproximação é vedada às todas as mulheres e aos homens que ainda não tenham passado pelo rito. Esse tabu é central na cosmologia e, conseqüentemente, na vida desse povo, que tem como eixo principal de sua religiosidade o culto ao “vizinho” ou yetá presente na casa dos homens. Estes, segundo eles, são espíritos da floresta e de seus antepassados que precisam de alimentos periodicamente para a manutenção da saúde e da harmonia entre as famílias manoki.

Foi necessária a realização de uma “catequese” – mais um termo “deturpado”, no melhor dos sentidos, pela perspectiva Manoki – que se estendeu por alguns meses antes do evento, para a preparação adequada dos jovens. O velho Manoki, Celso Xinuxi, foi encarregado de ensinar aos meninos os mitos e ensinamentos sobre o yetá, em diversos encontros com os 25 jovens que foram iniciados pelo batizado. “Não pode falar nada pra mãe de vocês, é muito perigoso, não pode mais andar muito com as meninas, nem com os garotos que não viram o vizinho, eles não podem saber de nada, é segredo”, comentava Celso inúmeras vezes aos jovens curiosos.

A OPAN auxiliou as lideranças Manoki, propondo encontros e reuniões para a mobilização comunitária e o debate do tema, além de mediar alguns conflitos que ameaçavam impossibilitar o acontecimento. Afinal, no dia 21 de junho, as famílias se reuniram para um grande almoço de confraternização e despedida dos filhos, que ficaram separados de suas mães e irmãs durante uma semana. Os Myky, considerados como “povo irmão” pelos Manoki, vieram para participar e ajudar nos ensinamentos rituais. Durante este tempo, o cotidiano das aldeias se alterou completamente, visto que todos estavam dispostos a ajudar no esforço para a realização das atividades sagradas. Quilos de beiju, carne assada e litros de chicha eram elaborados diariamente pelas mulheres para possibilitar o trabalho dos homens na derrubada e limpeza da roça para o ritual. O caçador Bernardino, munido de sua Winchester calibre 22’, comentava animado “os espíritos ajudaram muito nas caçadas desses dias: pegamos sete antas, doze emas, duas seriemas e dois veados; uma quantidade incomum nessas terras de cerrado cobertas por soja”.

Seguindo a tradição, os jovens iniciados tiveram seus narizes e orelhas perfurados, inclusive os dois kewa (denominação para não indígenas) convidados a participar do evento. Outro acontecimento raro que se efetivou durante as comemorações foi a reclusão das mulheres durante as madrugadas para a saída do vizinho da casa dos homens. Os diversos espíritos Manoki se apresentaram no pátio da aldeia, retomando o ritual de perguntas e respostas entre as mulheres, retidas dentro de uma grande oca, e os espíritos yetá, nadipyu, manchapuli, walalucu e waduhi, que se revezaram durante a semana.

Com a saída dos meninos da reclusão, a emoção foi generalizada e se deu no contraste do choro das mães saudosas e da seriedade dos filhos amadurecidos. As câmeras fotográficas e filmadoras digitais registravam o orgulho da comunidade Manoki exibindo suas tradições para as gerações futuras. Todos adornados com suas artes plumárias e pinturas corporais: é hora de dançar e cantar a passagem, não só dos meninos, mas do povo como um todo.

 

 

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