Em meio à pandemia, projeto aumenta risco de vulnerabilidade das terras indígenas
Proposto pelo governo estadual de Mato Grosso e em tramitação acelerada na Assembleia Legislativa, o projeto abre caminho para impactos ambientais e o acirramento de conflitos fundiários.
De iniciativa do governo estadual, o Projeto de Lei Complementar nº17/2020 ameaça diretamente um total de 27 áreas delimitadas, declaradas ou em estudo pela Fundação Nacional do Índio (Funai), permitindo validação de Cadastro Ambiental Rural (CAR) em áreas parcialmente e inteiramente sobrepostas a elas.
Além disso, o PL define procedimentos para validação de CAR em TI regularizadas e homologadas, o que impactará 116 territórios indígenas em todas as fases de regularização. A medida estava prevista para entrar em votação ainda nesta quarta-feira (29) na Assembleia Legislativa.
Os beneficiados, em sua maioria, serão grandes imóveis rurais, aponta nota técnica assinada em conjunto pela Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso (Fepoimt), o Instituto Centro de Vida (ICV), a International Rivers e a Operação Amazônia Nativa (OPAN).
“Imóveis rurais sobrepostos às terras indígenas ficarão com caminho livre para a uma regularização fundiária maculada de nulidade, por ferir as garantias constitucionalmente reconhecidas aos povos indígenas dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”, alerta o documento.
De acordo com dados fornecidos pela Funai em 2018, Mato Grosso tem 27 áreas indígenas em estudo (15), delimitadas (4) ou declaradas (8), ou seja, em etapas anteriores à homologação. Há ainda outras 29 áreas reivindicadas pelos indígenas, mas que ainda não tiveram seus estudos de reconhecimento iniciados.
A nota técnica aponta que, embora correspondam a pouco mais de 11% da área total de territórios indígenas do Estado, as áreas não homologadas concentram 82,4% das sobreposições nos Cadastros Ambientais Rurais (CAR) declarados no Sistema Mato-Grossense de Cadastro Ambiental Rural (SIMCAR).
“Vale destacar que a maioria (63%) é de grandes propriedades, maiores que 400 hectares”, diz a nota.
Ao todo, hoje, o sistema estadual contabiliza sobreposições em 13 áreas indígenas não homologadas que somam 2.425.195 hectares. São 207 propriedades rurais cadastradas que reúnem 327.784 hectares de áreas dentro de terras indígenas.
Para as entidades, não restam dúvidas de que a aprovação da proposta vai ampliar a vulnerabilidade dos povos indígenas, que já enfrentam os desafios da chegada da pandemia do coronavírus às aldeias.
“A resultante desse projeto seria um aumento de conflitos agrários, violências, invasões às terras indígenas, expondo sobremaneira os povos indígenas em situação de agravamento de vulnerabilidade pela pandemia do Covid-19”, afirma a nota.
Nos termos em que foi colocada, alertam as entidades, a proposição reúne potencial para causar impactos mesmo antes de ser aprovada, uma vez que traz reforço institucional às ações de grupos contrários aos processos de demarcação.
“A simples existência do Projeto de Lei tende a criar especulação fundiária e a ter impactos em territórios em disputa (…) significando assim avanços de ocupações ilegais de terra.”
Alinhamento nacional
O projeto de lei proposto pelo governo de Mato Grosso não é uma ação isolada, mas um alinhamento às alterações trazidas pela Instrução Normativa 09/2020 da FUNAI, publicada no dia 16 de abril.
A medida, que disciplinou “o requerimento, análise e emissão da Declaração de Reconhecimento de Limites em relação a imóveis privados”, ignorou deliberadamente as terras indígenas em outras fases no processo administrativo.
Para as entidades, a nova regra demonstra um objetivo contrário à própria missão institucional da FUNAI, ao afirmar que não cabe à instituição “produzir documentos que restrinjam a posse de imóveis privados em face de estudos de identificação e delimitação de terras indígenas ou constituição de reservas indígenas.”
Ao se alinhar a esse movimento, diz a nota, o governo do Estado aponta na direção contrária dos compromissos internacionais firmados no âmbito da estratégia Produzir Conservar e Incluir (PCI) e do Programa Redd+ for Early Movers (REM).
Anunciada em 2015 na COP de Paris, a PCI consiste em uma estratégia de desenvolvimento agrícola de baixo carbono com uma série de metas que o estado de Mato Grosso se comprometeu em respeitar até 2030.
A estratégia permitiu ao estado consolidar as suas políticas de redução do desmatamento, estabelecer um planejamento estratégico para o crescimento da produção de commodities sem novos desmatamentos e com o respeito às populações em situação de vulnerabilidade.
Também abriu caminho para a captação de recursos internacionais para a implementação de ações de preservação, produção sustentável e inclusão, como o Programa REM, que assegurou um apoio internacional inicial de 44 milhões de euros. Esse descumprimento pode ameaçar o fluxo de recursos atuais.
“Outras captações e apoios como a renegociação da dívida estadual pelo Banco Mundial ou o investimento de recursos por fundos de investimento como o Fundo Althelia, Nama Facility ou o Fundo Andgreen também foram atrelados a esses compromissos socioambientais”, alerta.
Sem participação
Por fim, a nota critica a tramitação acelerada do projeto, especialmente quando se vive um momento crítica de isolamento social em razão da pandemia.
“Além das violações diretas e dos riscos que o PLC nº17/2020 traz, a sua tramitação durante a pandemia do novo coronavírus restringe aberta e consideravelmente o acompanhamento da sociedade civil e impede a participação das populações diretamente atingidas pelo texto”.
Para o presidente da Fepoimt, Crisanto Rudzö Tseremey’wá, a medida proposta equivale a “rasgar a legislação”. “A constituição e o STF já deixaram claro que os povos indígenas têm direitos originários sobre as terras indígenas em processo de demarcação”, afirma.
A diretora adjunta do ICV, Alice Thuault, diz identificar uma “clara ação coordenada” entre o Projeto de Lei e a Instrução Normativa nº9 da FUNAI.
“Essas alterações provocam impactos diretos e imediatos na integridade dos territórios indígenas de Mato Grosso, onde os dados públicos do SIMCAR já mostram que mais de 267 imóveis rurais estão disputando a posse da terra. Ainda mais grave é ver o governo propor isso durante a pandemia, onde a participação dos povos mais vulneráveis e diretamente impactados pela proposta é limitada”, afirma.
Andreia Fanzeres, coordenadora do programa de direitos indígenas da OPAN, disse que o governo extrapola sua competência ao legislar sobre os direitos indígenas. “Isso é inadmissível. O supremo já apreciou matérias em 2013 e reforçou o entendimento em julgamento em 2019 de que a proteção jurídica as terras indígenas é um dever do Estado independentemente de sua fase de regularização.”
Acesse a nota técnica elaborada em conjunto pela OPAN, ICV e Fepoimt.
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