Entrevista: Ailton Krenak fala à OPAN
“Se o Lévi-Strauss viesse de novo ao Brasil, em vez de escrever Tristes Trópicos ele criaria uma obra chamada Delírio Tropical.”
Por Josie Jeronimo/OPAN
Quando, em setembro de 1987 , Ailton Krenak ocupou a tribuna do Congresso trajando um terno branco à moda dos “kewa”, mas com o rosto pintado de preto que ressaltava sua origem, ele marcou a história da Assembleia Constituinte com uma das mais belas e emblemáticas passagens. Do discurso e das movimentações das forças sociais, nasceu o capítulo que versa sobre os direitos indígenas em nossa Carta Magna. Hoje, o escritor, ambientalista e jornalista ocupa as telas. O isolamento social e a impossibilidade de se deslocar pelo país não o impedem de seguir com a missão de liderança indígena que inspira e provoca. Em entrevista à OPAN, Krenak analisa a guerra de narrativas e os ataques das fake news e sugere uma estratégia eficiente da utilização das plataformas digitais. “Quando a gente fala em demarcar tela, não estamos falando em lotar de conteúdos, como um youtuber que passa horas falando coisas que ninguém mais está escutando. Não é isso. Uma economia na comunicação tem mais consequências do que o excesso.”
O escritor revela, ainda, não esperar que a conquista de uma sociedade mais igualitária ocorra somente pelas mãos dos que administram a coisa pública. “Nós estamos sofrendo uma erosão das relações sociais que vivíamos há 30 anos. Pensar em política pública hoje é quase romantismo.”
Onde você está passando a quarentena?
Estou na reserva indígena Crenaque, é uma área pequena, são 4 mil hectares, somos 130 famílias. Estamos confinados, literalmente, antes da pandemia. O caráter de confinamento é o tamanho da terra. A reserva indígena Crenaque foi criada pelo SPI na década de 1920. Em 2023, o marco demarcatório vai completar 100 anos. A província de Minas Gerais doou em acordo com o SPI uma parte da margem esquerda do rio Doce para os botocudos que permaneciam aqui. Depois, acabaram com a floresta e a gente ficou vivendo em uma ilha deserta, na beira de um rio em coma, esperando o antropoceno chegar.
Tem acompanhado as publicidades da Vale e da Fundação Renova sobre a regeneração do Rio Doce? As informações procedem?
Como o Ministério Público impôs uma série de condicionantes para que a Vale pudesse ter a licença, para que a Samarco pudesse voltar a ter a autorização para operar, eles ficaram em suspenso e começaram a produzir fake news para dizer que estão cumprindo o TAC, o termo de ajuste de conduta. Acontece que, no caso aqui no médio rio Doce, vai completar cinco anos e eles ainda estão no estágio que é chamado de ações emergenciais. Parece que está tudo andando. As mineradoras tentam criar um cenário onde as comunidades estão assistidas e está todo mundo curtindo geral. Ela é oportuna, porque está aproveitando exatamente a pandemia. Todo mundo está confinado. Como é que você vai acreditar que as pessoas tenham como supervisionar o que esses empreiteiros estão fazendo? Desde abril, estão suspensas as ações da Renova na reserva, porque nós pedimos ao MP que bloqueasse a presença deles aqui, para evitar que transformassem o período de pandemia em cronograma de obra. Não faz, mas presta conta da obra pronta. Na propaganda mentirosa que eles estão botando na televisão, a gente vê a água do rio bonita, tem gente até surfando no rio. Para além da nossa capacidade de resiliência, de reinvenção de mundo, esses sacanas desses empresários estão contratando os melhores escritórios de propaganda, marketing. Daqui a pouco, eles vão ganhar um prêmio: o prêmio ambiental brasileiro pela capacidade de maquiagem.
Pegando o gancho das fake news, você tem ocupado bem as telas, usado muito as redes sociais. Essa é a nova forma de militância na guerra de narrativas?
É óbvio que eu não gostaria de estar atrás de uma tela. Minha experiência de ativismo sempre envolveu um relacionamento ativo com os lugares e as pessoas. Nós estamos todos capturados por essa tela. A gente pode ficar dentro dessa tela como consumidor de informações produzidas pelos outros, seja lá o que for, sem julgamento do que é bom ou ruim. Ficar do lado de cá, consumindo. Mas a gente também pode produzir conteúdo para esse ambiente que é vasto e que não delimita o lugar de fala. Quando cai no balaio da web, é tudo igual. O que vai fazer diferença é a capacidade de quem está se comunicando conseguir atingir, afetar, os outros. A grande maioria das pessoas desconfia de tudo que está na internet e seleciona algumas crenças, as quais se apegam como religião.
Quando a gente fala em demarcar tela, não estamos falando em lotar de conteúdos, como um youtuber que passa horas falando coisas que ninguém mais está escutando. Não é isso. Uma economia na comunicação tem mais consequências do que o excesso. Uso essas mídias mais do que eu gostaria. Sou muito convocado a falar e não posso me negar. Nós nunca tivemos voz no meio dessa sociedade racista, preconceituosa e que nega aos povos indígenas o direito de falar.
Como o jovem Krenak do fim da década de 1980 olharia para a atual juventude indígena? Os povos estão bem representados?
As novas gerações estão sabendo fazer um uso muito consequente desse espaço de tela, a exemplo dos artistas indígenas. A nossa querida Naine Terena é a curadora da exposição “Vexóa: nós sabemos”, lá na Pinacoteca em São Paulo. Será inaugurada brevemente uma exposição só de artistas indígenas, que tem a curadoria da Naine. É uma exposição potente. Traz um discurso que extrapola a especulação que a arte contemporânea faz. Apresenta a voz plural dos povos originários e tem uma capacidade de comunicar que está abalando a convicção dos velhos donos de galerias. Nós estamos trincando os muros dos museus. Quando eu falo da importância que essas novas gerações têm, eu falo do Denilson Baniwa, eu imagino a Daiara Tukano. Ela fez uma intervenção aqui em Minas Gerais, em um edifício de 28 andares, um mural com uma imagem poderosa. É uma intervenção no espaço urbano que está repercutindo como o maior mural de arte feito por uma mulher indígena no mundo, em critérios de extensão, dimensão e em qualidade. É uma obra que deveria ser levada para outros lugares do mundo, para além desse prédio aqui em Belo Horizonte.
O Jaider Esbell fez uma intervenção em um viaduto no centro de Belo Horizonte, o viaduto Santa Tereza, com duas jibóias. Uma instalação tão fantástica que chegou a provocar a ira do (Jair) Bolsonaro e da gangue dele aqui na Câmara Municipal de Belo Horizonte, onde um vereador fez uma proposta para retirar a obra dizendo que aquilo era coisa de chinês. Fake news é um vereador mineiro dizer que a obra de um artista indígena Macuxi é chinesa. É fake news ou então eles estão declarando que são burros convictos.
Com sua experiência na coisa pública, você considera possível ocorrer um amadurecimento das consciências via instituições democráticas, com a aplicação de políticas, a exemplo da ampliação do currículo formal escolar que já conta com disciplinas que ensinam e debatem a história dos negros?
A minha experiência em política não é tão íntima do sistema público brasileiro, assim. Eu fiz uma intervenção nos debates da nossa Constituinte em 1987 e o fato de ter ajudado a incluir na nossa Constituição o capítulo dos Direitos Indígenas é mais relevante para minha compreensão do Brasil do que os dez anos em que eu assessorei o governo do estado de Minas na promoção da política pública para os povos indígenas. São coisas que não se comunicam diretamente. Mas aconteceram muitas coisas nessas três décadas que separam os debates da Constituinte do momento que estamos vivendo agora. A mais relevante é que nós passamos a integrar uma sociedade digital. A globalização nos botou dentro da web. E muitas coisas, muitas decisões, inclusive da própria administração, do Direito e da política, são feitas virtualmente.
Está diminuindo muito o sentido da pessoa, do cidadão. E as relações interpessoais estão sendo esvaziadas até o ponto onde fica todo mundo resolvendo as coisas pela internet. Desde tirar a carteira de motorista até fazer um exame de saúde, uma consulta médica. Estamos sofrendo uma erosão das relações sociais que vivíamos há 30 anos. Pensar em política pública hoje é quase que romantismo. Um jornalista da Flórida me ligou outro dia perguntando se eu achava que estava acontecendo uma guerra civil nos Estados Unidos. Respondi que não acredito, porque a capacidade interna do império de promover destruição em massa sugere que se tiver uma rebelião, matam todos. Principalmente se o (Donald) Trump estivesse governando.
Aqui no Brasil, estamos reproduzindo a mesma distopia. Falar em política pública é ignorar que nós estamos sendo governados por milícias fascistas. Você quer que milícias fascistas promovam a política pública? Que tipo de política que eles vão promover? Só se for uma política de genocídio, de ecocídio. Como levar o debate sobre o ensino da história e cultura dos povos indígenas para a escola se elas não estão funcionando? É preciso considerar o fato de que a gente não tem escola. Parece aquela música do Raul Seixas: o dia em que a Terra parou. Nós estamos em um estado de suspensão onde o único cara que quebra a rima da canção é o ladrão. Os outros todos ficam em casa e o ladrão sai para governar.
A pandemia agravou a crise?
Nós estamos vivendo de fato um evento global, onde alguns países estão piores e outros melhores. É uma grave crise de paradigma, uma crise ética, moral. Sem falar na crise política e sanitária. Poderíamos confrontar a pandemia se tivéssemos, nesses vários lugares do mundo, nas comunidades, sociedades, respeito uns pelos outros. Mas como estão matando negros índios e latinos, no meio dessa carnificina não tem muita criatividade, inteligência funcionando. As pessoas ou estão refugiadas ou estão atacando. É uma tristeza. E eu me surpreendo muito com a aceitação das minhas intervenções a ponto de me nomearem para um troféu, que é muito destacado na literatura, o Juca Pato. E eu fico olhando e pensando: será que isso é falta de assunto? Não tem mais ninguém aí, não? É como acender uma vela quando acaba a luz. E alguns dizem que, por isso, você se destacou, que deveria ser premiado por segurar a vela.
Apesar de você dizer que “a terra parou”, autoridades tentam utilizar mecanismos virtuais para seguir uma agenda que cassa direitos, a exemplo da votação de recurso no Supremo Tribunal Federal (STF) que ameaça as demarcações de terras e a utilização de meios virtuais para o licenciamento ambiental. Como você tem visto esses movimentos?
Esses debates sobre o marco temporal e o licenciamento virtual, assim como a transferência de questões gravíssimas da sociedade para o mundo digital, fazem parte da nova cultura negacionista que está se sobrepondo às relações dos Poderes da República. É deplorável que o STF esteja fazendo essa dancinha da mentira junto com o Executivo. O Brasil está engolfado por esse hiper-liberalismo que faz de conta que está combatendo a pandemia, faz de conta que está controlando a crise climática, faz de conta que está governando o mundo. Mas o mundo está sendo movido exclusivamente pelo mercado. A Convenção de Genebra responsabiliza o Estado brasileiro por genocídio. Isso deveria ser suficiente para saber que nós estamos fora da lei. O Brasil é um Estado fora da lei. Então é tudo mentira. Eles negam a Constituição, ofendem a história social brasileira e produzem mentiras. Daqui a pouco, eles vão criar o Ministério do Amor e vão botar a Flordelis para ministra. A gente tem autoridades andando por aí com tornozeleira, um ministro da Justiça que é terrivelmente evangélico. Então nós estamos numa guerra santa, só que você não consegue distinguir quem é o santo guerreiro e quem é o dragão da maldade. Eles estão travestidos. Tem um monte de evangélico vomitando bíblias por aí na cara da gente e fazendo todo tipo de prostituição doméstica.
Nós estamos vivendo um delírio tropical. Se o Lévi-Strauss viesse de novo ao Brasil, em vez de escrever “Tristes Trópicos”, provavelmente ele teria a ideia de criar uma obra chamada Delírio Tropical. Está claro que estamos todos adoecendo. Os povos indígenas conseguem manter uma integridade na luta contra o sistema colonial e nenhum de nós lança mão de argumento ofensivo para discriminar ou sacanear qualquer outra pessoa. A gente sabe que os brancos estão com a mão atolada no sangue. A gente podia até publicamente acusar essa branquitude assassina de ser a responsável pelo buraco que o Brasil está, mas a gente não faz isso, porque a gente deixa que o mundo inteiro veja a merda que virou o Brasil. Parece que nunca vivemos um período histórico tão depreciativo da nossa memória plural de sociedade. Mesmo no período horroroso que foi o Estado Novo, com Getúlio Vargas, que ficava flertando com o nazismo, eles não eram tão descarados ao ponto de se enrolar na bandeira dos EUA e bater continência para chefe de Estado estrangeiro. Então, eles renunciaram ao sentido de constituir uma nação e assumiram esse lugar subalterno de colônia.