Prefácio
Este estudo foi encomendado pela Operação Amazônia Nativa (OPAN) para responder a algumas questões que possam contribuir com um melhor conhecimento sobre como tem sido pensada e realizada a aplicação do ICMS Ecológico no estado de Mato Grosso do ponto de vista local.
Queríamos compreender melhor como tem sido aplicado esse recurso nos seus contextos concretos de execução, entender as concepções e dificuldades dos gestores responsáveis pela efetivação do ICMS Ecológico para fortalecer o potencial de política de conservação ambiental aliada a novas tecnologias e espaços de gestão pública que esta lei de incentivo fiscal propicia, ao se desdobrar e apoiar sua execução pela via das políticas públicas.
Diferentemente de outros estudos sobre esse tema, onde é recorrente apreender o ICMS Ecológico como instrumento econômico, temos aqui uma abordagem sociológica que abre brechas propositivas ao privilegiar em sua metodologia os focos políticos para análise investigando o que pensam e o que dizem, como praticam, como entendem seu lugar e seu papel os próprios atores diretos desta política (gestores e legisladores municipais). Desse modo, aparece aqui o ICMS Ecológico como instrumento de gestão territorial e ambiental, por meio da sondagem dos caminhos possíveis da execução deste instrumento legal, político e econômico. Uma das principais contribuições deste estudo em relação a outros já realizados até o momento talvez seja esse retrato tão local por meio dessa metodologia de pesquisa e análise.
Objetivamente, de um eixo mais central, essa pesquisa visa captar qual impacto desta ‘política pública’ no fortalecimento de áreas protegidas e comparar o que é dito nas entrevistas com o que mostram os dados estatísticos, desvelando quanto vale, de fato, a contribuição desse repasse. Os municípios que perderam repasses têm provavelmente lições a ensinar.
Os municípios retratados foram escolhidos por critério de escala, selecionados entre os apontados como os que mais e os que menos recebem o repasse e os que estão num patamar intermediário. Compõem a amostra desta análise os municípios de Barra do Bugres, Chapada do Guimarães, Comodoro, Sapezal e Brasnorte, (e Tesouro, por entrevistas à distância). O público alvo das entrevistas foram os atores do poder público local: prefeitos, ex-prefeitos, secretários (planejamento, administração, finanças, meio ambiente…), técnicos, vereadores. Além desses, foram entrevistadas algumas lideranças indígenas, inserindo e nos dando a conhecer também o ponto de vista desses atores, cidadãos que se destacam de forma proativa nesse cenário, uma vez que a própria população local não faz uso de suas possibilidades de participação, posto que frequentemente desconhecem os seus mecanismos.
Além dos dados primários da pesquisa de campo, a análise se vale ainda da revisão bibliográfica do tema, da exposição dos marcos legal e dos dados secundários relativos aos indicadores socioeconômicos segundo o IBGE e demais fontes oficiais de cada um dos municípios visitados.
Nesse retrato, os municípios podem se espelhar uns nos outros, encontrar suas dificuldades comuns, contrastar suas soluções, comparar seus discursos, refletir suas práticas. E, quem sabe, se perguntar: o que de fato poderia se querer construir aqui, neste lugar, a partir das aptidões e vocações da configuração local e seus potenciais particulares?
É necessário que se diga que a encomenda deste estudo é motivada também pelo envolvimento da Operação Amazônia Nativa (OPAN) com esta temática a partir das ações de apoio à elaboração e execução de propostas aprovadas para aplicação transparente dos recursos do ICMS Ecológico na proteção de terras indígenas. Foi pioneiro em Mato Grosso o projeto piloto celebrado em convênio no ano de 2002 entre os Enawene Nawe e o município de Juína, logo após a regulamentação, em 2001, da LC 73/2000, que institui o ICMS Ecológico no estado. Esse repasse é ainda hoje uma realidade em alguns lugares sem que, contudo, houvesse avanços na concretização da aplicação dos recursos do ICMS Ecológico assentada como política pública estadual/municipal.
Ainda que o ponto de partida e de chegada da OPAN sejam as populações indígenas, acima de tudo nossa expectativa neste caso é a proteção da biodiversidade e do patrimônio natural não no sentido ambientalista estrito, mas no sentido lato, pela convicção de que as matrizes ambientais constituem a base de sustentação de qualquer sociedade humana. Lição vivenciada em mais de quatro décadas de contato e convivência intensa com os ameríndios, que não divorciaram suas práticas econômicas da conservação do meio que lhes dá esteio.
Nesse rumo, mais do que interessados exclusivamente em definir ou determinar modos e quantitativos de repasses ou de formas de aplicação do ICMS Ecológico em terras indígenas – pauta de construção que deverá ocorrer passo a passo, caso a caso, sendo os indígenas sujeitos no processo – importa antes à OPAN favorecer e contribuir com diálogos e processos locais de bem-estar social amplo, ou seja, com processos inclusivos, coletivos, democráticos. O meio ambiente entendido como suporte das ações humanas deve ser abordado social, política e economicamente pela perspectiva do bem comum.
Nas palavras da autora (p.6): “O imposto opera na lógica do provedor-recebedor, na qual os benefícios são repassados àqueles municípios que têm unidade de conservação e/ou terra indígena. Em síntese, ICMS Ecológico é ‘qualquer critério ou conjunto de critérios, relacionados à busca de solução para problemas ambientais’ (SEMA:2008)”.
De acordo com o percurso da análise proposto aqui, a autora nos convida a deslocar o olhar que vê o meio ambiente como problema para percebê-lo como parte intrínseca da solução, estando o problema em outro lugar, assim como testemunha o registro sobre a experiência do Paraná, estado pioneiro na experiência do ICMS Ecológico.
Mas o que nos interessa chamar atenção nesse trajeto histórico ainda em curso é que a ‘solução para problemas ambientais’ não virá de fórmulas globais, mas de soluções locais. Sendo assim, esse incentivo fiscal pode inspirar e concretizar soluções para os problemas locais tendo nas matrizes ambientais um bem aliado e não um entrave.
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Parece no mínimo curioso que parcela significativa da população brasileira, após uma semana inteira de trabalho, enfrentamento de trânsito, filas, fastfoods, noites mal dormidas, barulho, poluição visual, atmosférica, ambiental, stress, ressacas, depressões…, possa eventualmente deleitar-se com reportagens jornalísticas que mostram lugares que nos remetem ao ‘paraíso’. Águas termais, vastos parques, longevidade, alimentação tradicional, técnicas terapêuticas, holísticas, formas de sociabilidade, ruas limpíssimas, enfim, ambientes e pessoas em bem-estar.
Quando passeamos por Brasnorte, por exemplo, ouvimos muitos pássaros, vemos araras, encontramos fragmentos florestais, circulação intensa de bicicletas, ervas medicinais, quintais, pessoas educadas, gentis e receptivas, tanta coisa! Ficamos imaginando, como será seu futuro?
Será que, conforme for crescendo, haverá refúgios verdes para o descanso da população trabalhadora, ou este será um luxo para poucos? Será que os quintais terão que se espremer pela especulação imobiliária e que as matas ciliares serão invadidas por condomínio residenciais impedindo os banhos, as pescarias e o lazer das famílias locais? Será que o sistema de abastecimento e esgoto, a coleta de lixo, o destino de resíduos sólidos terá se preparado junto com a população para o inevitável crescimento? Será que vai ter ciclovia? Será que, com a estrada asfaltada, a aquisição massiva de alimentos de fora, que sempre foi majoritária, fará migrar mais uma vez os pequenos agricultores? Será uma cópia de padrões ultrapassados de urbanização que privatiza os espaços públicos e institui a rua como espaço de violência ou será a invenção de espaços de sociabilidade e convívio em núcleos urbanos prósperos e sadios?
Essas perguntas podem ser feitas para inúmeros e diversos municípios brasileiros. Mato Grosso, no entanto, por seu processo de ocupação intensa de histórico mais recente, tem ainda a oportunidade de planejar o futuro de suas cidades. Vivemos um momento interessante para tomar decisões, escolher caminhos, zonear espaços, elaborar planos diretores, ampliar o envolvimento de atores sociais para criar paraísos possíveis. Soluções locais engendram soluções globais.
Este estudo vem a público no ano em que o Brasil sediou a Copa do Mundo e foi no ‘país do futebol’ que, novamente, a FIFA nos lembrou de sua campanha de mais uma década contra o racismo – Say no to racism. Nesse palco, o Brasil mantém dois tons: reconhecido por sua capacidade diplomática de mediar conflitos, referência de paz entre povos e, o outro, uma política interna que adota medidas jurídico-burocráticas que incitam práticas de etnocídio, pistolagem, vandalismos, tanto em contextos rurais quanto urbanos.
Mas hoje o próprio mercado é capaz de mostrar que há espaço para todos. Há muitas possibilidades para diversificação de negócios, de fontes de renda, de práticas econômicas. De acordo com Canclini (1996), nos constituímos contemporaneamente como ‘cidadãos-consumidores’ através dos estilos de vida e referências que absorvemos em meio aos ‘conflitos multiculturais da globalização’, materialidade que nos alcança e afeta, mesmo que apelássemos à liberdade individual e escolhêssemos viver como eremita, isolado numa ilha.
Diretamente associadas aos inúmeros estilos de vida atualmente praticados, as tendências de mercado apontam para o consumo de tecnologias; a diversificação de modelos de serviços de alimentação, de saúde, de educação; consciência ecológica; consumo refletido; práticas de boicote econômico; crescimento gradual do mercado de orgânicos, ecoturismo, turismo rural, dentre outros em escala massiva.
Assim, os cálculos não devem ser tão primários – matemática é uma ciência exata, economia não. Como se sabe, no jargão econômico, lucro alto e o lucro pelo lucro são indissociáveis de um alto custo (investimento). A relação custo-benefício não é, decisivamente, uma equação simples do primeiro grau. Melhorar arrecadação depende da diversificação de fontes.
Também já está economicamente comprovado, através das experiências dos países europeus relativas às consequências da revolução industrial no solo, biodiversidade e principalmente nos recursos hídricos, que proteger ativos ambientais é mais lucrativo do que recuperar passivos, tendo sido, inclusive, muitas das indústrias os agentes dessas mudanças que têm como palavra de ordem “desenvolvimento em parceria com o meio ambiente”. Enfim, o ICMS Ecológico pode representar, sem bem aplicado, mais uma oportunidade de investimento na qualidade de vida das pessoas nos espaços urbanos e rurais tendo a sustentabilidade como meta das ações que apoia.
Os municípios têm um papel determinante nesse trajeto, precisam se antenar com as atuais tendências e demandas do mercado global, identificar perfis e estilos de vida, sintonizar-se com os painéis intergovernamentais, adequar e fortalecer políticas nacionais, observar e respeitar convenções das quais seu país é signatário, promover agendas com a sociedade civil e captar recursos nessas frentes por meio do registro e sistematização de seu importante e fundamental trabalho.
O papel do local tem sido a grande ênfase dos estudiosos da globalização econômica e da mundialização da cultura. Os locais precisam ser criativos para tornarem-se um Lugar*, para se situarem no mundo. Isso exige um engajamento coletivo voltado ao bem do lugar, à saúde da morada. Uma casa receptiva e cheia de muito verde constrói certamente um ambiente acolhedor a todos.
* A grafia em maiúsculo aqui faz menção ao Lugar como conceito de domínio das ciências sociais – quando define um espaço marcado por seus contextos históricos, de memória, constituindo-se pelas relações identitárias – identidade do lugar.
Andrea Jakubaszko
Coordenadora do Programa de Direitos Indígenas da OPAN