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Uma aposta promissora

Amazonas regulamenta pesca do pirarucu e precisa escutar mais de perto o que dizem as comunidades.

Amazonas regulamenta pesca do pirarucu e precisa escutar mais de perto o que dizem as comunidades.

Por: Andreia Fanzeres/OPAN

Manaus – Nos interiores do Amazonas, em centenas de comunidades que vivem às margens de seus majestosos lagos, o clima é de efervescência. Entre setembro e outubro intensificam-se as movimentações para viabilizar a pesca manejada do pirarucu em boa parte do estado. Este ano, com uma novidade: ao lado do Ibama, o governo do Amazonas vai também passar a licenciar a atividade exclusivamente em unidades de conservação estaduais, áreas de acordos de pesca e regiões consideradas de relevante interesse socioambiental. Para o governo, este é um sinal do compromisso do estado em estruturar o manejo do pirarucu como carro-chefe de uma economia de viabilidade social, econômica e ambiental. Para manejadores e instituições que dão suporte técnico às comunidades, este é um passo importante, mas para concretizar todas as promessas os desafios ainda são gigantescos.

Basicamente, o Decreto Estadual 36.083 de 23 de julho de 2015 estabelece que a contagem do pirarucu – técnica que estima a quantidade de peixes existentes nos lagos autorizados para a pesca – só poderá ser exercida por profissional certificado e cadastrado no órgão ambiental competente. E as unidades de manejo (áreas em que a atividade efetivamente ocorre) terão três anos para totalizar a certificação de seus contadores. Por sorteio aleatório, 5% dessas unidades de manejo terão suas contagens validadas pelo Comitê de Gestão e Manejo de Pirarucu, instância criada pelo decreto que reúne governo estadual, Ibama, institutos de pesquisa, associações de manejadores e organizações da sociedade civil envolvidas no ramo, responsáveis por discutir e aprimorar a política.

Foto de Adriano Gambarini/OPAN

Assim como a definição previamente estabelecida para os licenciamentos conduzidos até agora pelo Ibama (regidos pela Instrução Normativa 34/2004), a cota de captura de peixes pode chegar a 30% dos indivíduos adultos e a autorização para a pesca sairá em até 90 dias após a aprovação do plano de manejo. Os peixes só poderão ser vendidos inteiros, eviscerados, com lacre, guia de transporte e de comercialização. Será preciso, ainda, ter uma declaração de venda, de responsabilidade do vendedor do produto na origem. Para a renovação da licença, é exigido relatório técnico anual.

Na prática, para os manejos realizados em terras indígenas e unidades de conservação federais nada muda, uma vez que as autorizações continuarão sendo concedidas pelo Ibama. Na opinião do superintendente do órgão no Amazonas, Mário Lucio da Silva Reis, a regulamentação estadual da pesca do pirarucu vem em boa hora. “Criar regras para o manejo é disciplinar o uso do recurso pesqueiro, principalmente por se tratar de uma espécie que preocupa pela ameaça de extinção e/ou sobrexplotação, fato já ocorrido em alguns lagos do estado do Pará”, diz. Para ele, considerando que as populações que manejam o pirarucu já adotam critérios técnicos estabelecidos neste novo decreto, a atuação deve melhorar no que concerne às etapas pós-captura, ou seja, transporte e comercialização.

Ascenção meteórica

A pesca do pirarucu, proibida no estado desde os anos 90 por causa da pesca predatória, voltou a ser autorizada segundo estratégia de manejo que se espalhou como rastro de pólvora pelos rios amazônicos. Nos últimos 15 anos, o manejo ascendeu como uma das mais relevantes atividades produtivas no estado do Amazonas. Só nas 11 comunidades assessoradas pelo Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, em 2002 foram capturadas três toneladas de pirarucu. Hoje, são cerca de 500 toneladas anuais – o equivalente a um terço do total manejado no Amazonas. A proposta do manejo expandiu-se para além dos limites estaduais, passando a ocorrer também em outras regiões do país e em nações vizinhas como Peru e Bolívia.

Sucesso na pesca do pirarucu é resultado direto do fortalecimento das comunidades.
Foto de Adriano Gambarini/OPAN

A rapidez da disseminação do manejo no Amazonas resultou em padrões muito distintos de qualidade do pirarucu. “Tínhamos projetos com 45 páginas detalhando ao máximo cada etapa do manejo e outros com duas páginas, só com dados da contagem. E o manejo é muito mais do que contar e pescar, tem geração de renda, empoderamento das comunidades e conservação do recurso”, explica Ana Cláudia Torres, coordenadora do Programa de Manejo e Pesca do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá.

Para Felipe Rossoni, presidente do Instituto Piagaçu (IPI), o decreto deve nortear um movimento de padronização de procedimentos (organização, planos de manejo, sistemas de contagens). “O que temos visto é um desbalanço entre locais que já estão manejando. Há locais onde o manejo está sendo tratado num formato mais criterioso e outros onde o “sistema” está mais “flexível” (com organização comunitária insuficiente, contadores não capacitados e tampouco certificados, falta de regimento interno etc.) e isso deixa o próprio sistema bastante fragilizado.

De acordo com o Ibama, em 2014 foram emitidas 23 autorizações de pesca manejada em unidades de conservação, acordos de pesca e terras indígenas em 13 municípios do Amazonas (Jutaí, Juruá, Fonte Boa, Tefé, Tonantins, Santo Antônio do Içá, Beruri, Lábrea, Canutama, Japurá, Maraã, Carauari e Iranduba). Isso corresponde à permissão de cota para captura de 43.296 indivíduos, tendo sido efetivamente pescados 28.716 pirarucus (1.550 toneladas). O Ibama considera que esse desempenho foi baixo devido ao regime das águas, que dificultou a pesca porque a vazante foi lenta e de curta duração.

Pontos em aberto

Justamente essa variação da calha dos rios, motivada por fatores geográficos e climáticos, merece, na opinião de diversos pesquisadores e manejadores, um estudo pormenorizado. Esta foi uma das discussões realizadas em oficinas e seminário temático chamado pelo próprio governo do Amazonas antes da edição do decreto que, no entanto, ainda não prevê instrumentos de flexibilidade nesse sentido. “Oficialmente o período de pesca deve terminar em novembro, mas há locais em que o rio ainda está cheio nessa época, não havendo tempo hábil para a pesca. É preciso fazer uma análise mais criteriosa e respeitar as especificidades de cada região”, diz Gustavo Silveira, coordenador do Programa Amazonas da OPAN.

A falta de investimentos em pesquisa por parte do estado nos últimos anos refletiu-se na constatação de que, mesmo após cerca de 15 anos da existência deste tipo de manejo do pirarucu no Amazonas, ainda não há parâmetros seguros para mensurar o crescimento dos estoques da espécie. “Para que tenhamos parâmetros seguros é preciso que o governo invista em pesquisas específicas. As pesquisas em andamento contam com recursos financeiros das próprias instituições, através de projetos de financiamento/patrocínio. Não temos nem mesmo apoio minimamente coerente com a causa para o acompanhamento técnico do manejo, ficando à mercê da “vida de projetos” e as marés altas e baixas ligadas a isso”, explica Rossoni, do IPI.

Foto de Adriano Gambarini/OPAN

Embora o estado do Amazonas exija certificação de manejadores e acompanhamento técnico para as demais etapas do manejo, há um déficit de corpo técnico hoje para assessoria e capacitação dos pescadores. O Instituto Mamirauá, que idealizou e disseminou um modelo para esse tipo de treinamento para outras instituições e comunidades, continua recebendo muitas demandas para a realização de seus cursos, inclusive para formar os técnicos do próprio governo. Por isso, para efetivamente regulamentar o manejo no Amazonas não há condições de trabalhar sozinho. “Esses institutos poderão validar as contagens. Todos eles terão forte contribuição nos treinamentos. Eles precisarão treinar os manejadores e também os técnicos que darão assistência às unidades de manejo”, diz Hamilton Casara, secretário executivo de Políticas Agropecuárias da Secretaria de Estado da Produção Rural e Sustentabilidade do Amazonas (Sepror).

Outra questão é a expectativa de que no decreto 36.083/2015 o tamanho mínimo do pirarucu adulto fosse mais elevado do que o estabelecido atualmente, o que não se concretizou. “Fez-se toda a discussão, mas o decreto saiu com 1.50m. A gente sabe que em algumas regiões o pirarucu se reproduz com uma medida que vai até 1.65m. Mas faltam pesquisas em outras regiões”, diz Ana Cláudia, do Instituto Mamirauá. Para o governo do Amazonas, essas questões ainda estão em aberto e, de dois em dois anos, o decreto deverá passar por aperfeiçoamentos na medida em que as bases de pesquisa com pirarucu forem sendo ampliadas para as regiões dos rios Japurá, Juruá e Purus.

Segundo Casara, tudo isso será discutido dentro do Comitê de Gestão da Pesca do Pirarucu, uma instância de controle e pesquisa criada por esta nova legislação que conta com representantes da sociedade civil, Ibama, Ministério da Pesca, Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), universidades, Funai, Secretaria de Estado para Povos Indígenas (Seind) e outros. “Fazemos pesquisas de impacto econômico sobre as comunidades considerando uma possível variação no tamanho mínimo do pirarucu. Elevando para 1.55m o impacto não seria grande para manejos mais antigos, mas para manejos novos, como os do povo Kokama, do Acordo de Pesca da Ilha da Paciência e de comunidades iniciantes, os impactos seriam muito grandes”, justifica Casara. Para ele, a ideia do comitê é exercitar um modelo integrado como espaço de resolução de conflitos, operando junto com sociedade civil e órgãos federais e sendo um grande orientador desse processo.

Do ponto de vista do secretário executivo, no entanto, a questão do tamanho mínimo não é tão prioritária quanto o desafio da fiscalização, do monitoramento e da extensão pesqueira. Sobre isso os manejadores concordam. “A gente espera que o estado se aparelhe melhor para fazer a fiscalização, que não precisa ser necessariamente feita no lago, mas nas cidades que compram o pirarucu, especialmente em Manaus, que concentra cerca de 95% do mercado”, diz Antônio Cândido Gomes, presidente da Associação dos Comunitários Que Trabalham Com Desenvolvimento Sustentável do Município de Jutaí (ACJ). A associação atualmente reúne 58 comunidades e tem previsão de pescar 200 toneladas de pirarucu em 2015, um aumento de 20% em relação ao ano passado. Mas isso, segundo Gomes, não é nem metade de seu potencial da região. “Temos hoje 700 lagos catalogados só no rio Jutaí e hoje atingimos uma pequena parte deles”.

“Não sabemos quanto pirarucu ilegal sai destas áreas. A fiscalização é quase nula – salve os locais onde as próprias comunidades fazem seus sistemas de proteção, através de vigilância comunitária. O pirarucu ilegal é um grande vilão do manejo”, diz Rossoni, do IPI. Em resposta, o governo do Amazonas afirma que está dialogando com o Ibama e com o Ministério da Pesca e Aquicultura, além do Ipaam, do Batalhão Ambiental e da Secretaria de Segurança Pública para trabalhar algumas unidades de controle e vigilância em pontos estratégicos para fortalecer a fiscalização. Aposta, ainda, nos agentes ambientais voluntários, reeditando estratégia já adotada pelo governo federal.

Foto de Adriano Gambarini/OPAN

O gargalo da comercialização

Apesar do clima de otimismo com relação às expectativas de que o manejo do pirarucu seja estruturado como uma forte política pública no Amazonas, as comunidades temem que o estado comece a cobrar demais sem antes dar condições para adequações. E não é à toa. A limitação de comercialização do peixe eviscerado é uma exigência que deverá ser ainda mais intensificada a partir de agora pela Agência de Defesa Agropecuária e Florestal do estado do Amazonas (ADAF). “Não se pode colocar a carroça na frente dos bois. Se o estado não criar mecanismos melhores, o decreto em si pode atrapalhar, em vez de ajudar”, diz Gomes, da ACJ.

Para Antônio Almires das Chagas Bondin, presidente da Associação dos Moradores da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Uacari (Amaru), sediada no município de Carauari, falta ainda na regulamentação do manejo um olhar mais voltado às dificuldades das comunidades, especialmente quanto à logística. “Tenho certeza de que temos de fazer a evisceração, mas precisamos de barco, câmara frigorífica 100% limpa e higienizada. É possível lavar o peixe com água tratada. Mas em que o governo vai ajudar?”, indaga. “Temos linha de crédito da Agência de Fomento do Amazonas (Afeam), mas eles vêm aqui uma vez por ano. Tem ano que nem vêm. Queremos que haja políticas públicas que incentivem a produção e que sejam a custo zero. Trabalhamos com projetos a fundo perdido para conseguir curso de contadores”, diz Almires, da Amaru.

A Amaru congrega 10 comunidades manejadoras de pirarucu desde 2012. Em 2014, foram produzidas 42 toneladas. Este ano, a perspectiva é de que essa quantidade suba para 60 toneladas. “Nosso problema chama-se comercialização. A gente vê muita burocracia. Ano passado, nossa produção foi enviada para Manaus, mas até hoje tem gente que ainda não recebeu, vendeu fiado.  Este ano, estamos tentando buscar mercado em Cruzeiro do Sul, no Acre, mas não sei se vamos conseguir. O governo já estaria ajudando muito se nos apoiasse com novos mercados”, reclama.

Ainda em julho, o governo do Amazonas anunciou R$ 3 milhões para os manejadores de pirarucu. “Isso é para apoiar o custeio dos manejadores, como compras menores, para não os deixar nas mãos do atravessador”, diz Casara, da Sepror. Em agosto, foi a vez do Plano Safra Amazonas, prometendo R$ 362 milhões para o setor primário do estado entre 2015 e 2016, dos quais R$ 4 milhões destinados à pesca manejada do pirarucu. Mas acessar esses recursos não é tarefa fácil. Depende, sobretudo do grau de organização comunitária. “Os mecanismos de crédito são dificilmente alcançáveis e a questão é delicada, pois os riscos de um grupo de manejadores (seja em formato qualquer, associação etc.) não cumprir com os compromissos de pagamento da dívida assumida são bastante grandes”, pondera Rossoni, do IPI.

A Sepror acredita que as oportunidades aumentarão em breve e está montando um núcleo integrado de áreas manejadas. “Isso vai nos permitir criar musculatura e instrumentos necessários para estruturar o setor da pesca manejada, abrangendo linhas de financiamento específicas, que apoiarão desde o momento da contagem até o controle e principalmente a estrutura de comercialização”, diz Casara.

Desafio ainda maior será fazer tudo isso diante do quadro generalizado de desestruturação dos órgãos ambientais estaduais e federais, que hoje contam com poucos técnicos, poucos recursos e pouco prestígio frente à guinada governamental de apoio ao agronegócio e aos megaempreendimentos de infraestrutura. Talvez por isso mesmo, a semente do manejo do pirarucu seja uma esperança para essas centenas de comunidades amazonenses. “Sabemos que o decreto ele abre perspectiva de envolvimento maior do estado e da sociedade. Eu sou muito entusiasmado com a questão do manejo, acredito que ele tenha condição de transformar o Amazonas em grande produtor de alimento, pois o manejo traz renda, melhoria de qualidade de vida”, diz Gomes, da ACJ.

O diferencial dos Paumari

Foto de Adriano Gambarini/OPAN

A premiada iniciativa de manejo sustentável do pirarucu implementada pelo povo Paumari do rio Tapauá, na região do Médio Purus há mais de cinco anos tem revelado como essencial a consolidação de uma base sólida, principalmente na vigilância e no fortalecimento da organização comunitária. “Temos tido também um cuidado especial com as boas práticas, com a qualidade do pescado, como deixá-lo pouco tempo fora do gelo, com a limpeza e que o espaço tenha boa sanidade. Na comercialização, os Paumari firmam contrato e garantias de pagamento”, conta Gustavo Silveira, coordenador do Programa Amazonas da OPAN.

O sucesso da iniciativa deveu-se, também, aos diferentes parceiros que trabalharam em conjunto. “O Instituto Piagaçu entrou com a técnica de manejo, a Funai apoiando a fiscalização e infraestrutura, a Conservação Estratégica (CSF-Brasil) deu suporte à comercialização, a Cooperativa Mista Agroextrativista Sardinha (Coopmas) acreditou e investiu localmente no negócio e nós, da OPAN, com a expertise indigenista no fortalecimento da organização comunitária”, relata Silveira. Juntar toda essa estrutura foi uma oportunidade rara para os Paumari, que tinham em sua dinâmica características específicas que também favoreceram os impactos positivos do manejo, como o histórico de atuação da OPAN no Sul do Amazonas, a fartura da região, a baixa densidade populacional, abrindo chance de envolver todos no processo. “O dia da pesca virou um evento, um momento de socialização. É mais do que a simples comercialização do peixe. Esse é o diferencial”.

Para a pesca deste ano, que deve acontecer no início de outubro, os Paumari foram autorizados pelo Ibama a capturar 215 peixes, mas devem cumprir uma cota de no máximo 140 pirarucus. Com os recursos da pesca de 2014, os Paumari decidiram comprar mais um flutuante para vigilância territorial, totalizando três dessas embarcações nos lagos do Tapauá. Dois desses flutuantes já têm uma boa estrutura, como computador, gerador de luz, balança digital e impressora.

Em maio de 2015 o manejo do pirarucu dos Paumari foi reconhecido pelo Ministério do Meio Ambiente na categoria sociedade civil no Prêmio Nacional da Biodiversidade. Em agosto do mesmo ano a Fundação Banco do Brasil certificou a iniciativa como Tecnologia Social.

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